Brasileiras denunciam racismo em evento nos EUA: 'Tem piolho nas tranças?'
Duas mulheres negras denunciaram ter sido vítimas de racismo durante a 10ª edição da Brazil Conference, evento que aconteceu neste final de semana em Cambridge, Massachusetts. Elas fizeram a denúncia neste domingo, segundo dia de conferência no MIT (Massachusetts Institute of Technology).
O que aconteceu
Naira Santa Rita e Marta Melo fazem parte do programa de embaixadores da Brazil Conference 2024. O projeto tem como tema "Unseen Heroes" (Heróis Invisíveis), e tinha como objetivo destacar líderes que geram impacto.
As duas embaixadoras disseram que o caso aconteceu ontem, durante o primeiro dia de evento, em Harvard.
Na ocasião, elas assistiram ao painel do apresentador Tiago Leifert, como ouvintes. Elas ouviram três brasileiras brancas falando, em inglês, sobre o cabelo das duas, enquanto riam: "Veem essas negras? Será que tem piolhos nessas tranças e dreads?".
O que elas não esperavam é que eu falasse em inglês. Eu imediatamente as olhei de forma que elas entenderam o que eu havia entendido. O racismo que estava acontecendo ali. E as mesmas se retiraram.
A embaixadora destacou que em outras situações, as teria confrontado, mas escolheu não fazê-lo naquele momento. "Eu e a Marta, mulheres negras, temos muito mais a perder do que três meninas brancas de Harvard. Se nós tivéssemos confrontado, nós teríamos sido vistas como mulheres negras raivosas, escandalosas e até mesmo vitimistas. Porque é assim que nos contam".
Naira falou especificamente sobre este ocorrido, mas disse que passaram por outras situações de violência durante os dois dias de evento. A denúncia aconteceu durante o painel dos embaixadores, momento em que ela questionou a organização do evento, que tinha como tema "O Encontro dos Vários Brasis", e chamou a atenção dos patrocinadores, reiterando sobre a importância de impedir que práticas como esta aconteçam.
"O Brasil que está aqui é o Brasil que é fruto do privilégio do histórico escravocrata? O Brasil que está aqui reflete os herdeiros do Brasil? Os indicados do Brasil? O Brasil que tem legado de tráfico, de exclusão, violência e exploração dos corpos negros, indígenas e plurais? Enquanto estivermos com discursos cheios de práticas vazias, não só o Brasil, mas também a Brazil Conference e suas estruturas vão continuar refletindo e perpetuando a manutenção das estruturas racistas e excludentes que não representam o Brasil que queremos de forma alguma."
Durante a cerimônia de encerramento, os copresidentes do evento relutaram em utilizar a palavra "racismo". Eric Navarro, que fez o último discurso, declarou, durante sua fala, que o tema seria discutido após a conferência. Ele foi questionado pela plateia, que perguntou o que de fato seria feito a respeito ou se seria esquecido. Eric afirmou que o que for discutido se tornará público.
Ao UOL, Marta disse que faltou cor na copresidência da Brazil Conference. "Quando eu recebo o receio de falar a palavra 'racismo', que é o que realmente aconteceu, isso é o retrato do Brasil, o que nós viemos discutir aqui. As pessoas têm receio de falar, de mostrar o que realmente é um crime. A gente entende toda a organização, o tempo que é para fazer isso aqui acontecer, mas é preciso que nós tenhamos voz também neste lugar. É muito doloroso, porque a gente vem de uma realidade muito dura. E a gente vem aqui com o sentimento de que é uma comunidade antirracista, e o que a gente viu hoje aqui não é. Agora é focar em uma solução para deixar isso aqui, de verdade, na prática, antirracista. É preciso que mais Bárbaras Carine (escritora e educadora antirracista), Carlas Akotirene (pesquisadora do feminismo negro) estejam neste ambiente aqui palestrando para que essas pessoas majoritariamente brancas entendam o que de fato é o racismo e como combater."
Após o evento ser encerrado, Daiane Pettine, pesquisadora visitante no MIT, subiu ao palco e falou que o evento deveria ter sido encerrado por uma pessoa negra. "Esta conferência é um retrato do Brasil, e o Brasil é o país mais racista do mundo". Ela afirmou que o ocorrido foi um reflexo da falta de representatividade na organização e falta de equidade nos painéis, além do desrespeito com os embaixadores.
"[O racismo] não está só no que é explícito. O que eu acho que tem a ver com esse caso é como as outras coisas sutis que aconteceram também revelam o racismo intrincado na nossa sociedade. Essas pessoas que vieram aqui, a maioria negra, que representam movimentos sociais e negócios sociais, eles não foram convidados para o jantar que teve dos speakers, por exemplo. Não estavam no primeiro dia da programação. Como a gente realmente valoriza a cultura negra e indígena? A gente dá um lugar real de protagonismo".
Ela acredita que a reação após o caso poderá ser vista a partir de agora, e espera ações verdadeiramente concretas por parte da organização do evento. "Eu acho que a gente também tem que enxergar que essas situações, elas são traumas, são gatilhos para a nossa população, mas são uma oportunidade de mudança. É só a gente ser ouvido, as soluções também estão aqui. Acho que agora a organização tem uma grande oportunidade de levar esse incidente como uma inspiração e transformar este evento num real representante do Brasil. Se a gente teve 10 anos de sub-representatividade, no próximo vamos fazer um evento 100% negro e indígena".
A gente só quer um lugar de equidade. Também merecemos um lugar na mesa para a gente valorizar quais são as nossas narrativas e histórias. Eu tenho certeza que esse discurso e esse incidente vai reverberar. E a gente quer ver ações concretas de mudança de programação na próxima conferência. As pessoas negras não podem ser só objeto de estudo. Elas também são sujeitos, elas podem mediar, elas podem ser vice-presidentes das ações, elas podem ser presidente da conferência. Elas podem estar falando sobre coisas que não têm a ver só com a favela. A favela é potência, que bom que teve a favela aqui nesse evento. Que bom, porque a favela também é Brasil, mas o Brasil não é só a favela.
Em nota, o evento diz que "reconhece e reitera seu compromisso contra o racismo em todas as suas formas". "Repudiamos veementemente qualquer ato de discriminação racial e não compactuamos com tais comportamentos em nossos eventos. É fundamental destacar que a Brazil Conference está comprometida em promover um ambiente inclusivo e diverso, onde todas as vozes são respeitadas e valorizadas. Lamentamos profundamente qualquer incidente de racismo que tenha ocorrido durante o evento e estamos tomando medidas para endereçar o acontecido".
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Quero receberEm uma segunda nota divulgada no final do dia, a organização afirmou que "o conselho e a coordenação do evento se reuniram para tratar da gravidade do episódio de racismo ocorrido na plateia e encontrar os encaminhamentos adequados". A organização informou que que deve publicar até a próxima sexta-feira (12) os próximos passos para a Conferência de 2025 e destaca que "princípios norteadores estão o comprometimento de que tais episódios não irão se repetir, em nome do compromisso da organização com a equidade, o antirracismo e a construção de um novo Brasil".
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