O que está por trás da seita anticomunista que traz balé Shen Yun ao Brasil
Se você é de São Paulo, Curitiba ou Porto Alegre, provavelmente já viu um anúncio do Shen Yun Performing Arts na rua ou na internet. A companhia de dança chinesa se apresenta nestas cidades entre abril e maio e tem feito investimento pesado em divulgação. Mas você sabe toda a ideologia que existe por trás das apresentações?
Shen Yun, Falun Gong e a extrema-direita
O grupo, que se autodenomina uma "sensação global", é associado à extrema-direita e já foi chamado de "seita" ultraconservadora. Criado em 2006, em Nova York, por imigrantes chineses adeptos do Falun Gong (ou Falun Dafa), a companhia tem caráter religioso e é declaradamente anticomunista.
Eles usam as apresentações para divulgar o Falun Gong, denunciar uma suposta perseguição por parte do Partido Comunista Chinês (PCCh) e defender um "renascimento da cultura tradicional" fora da China, já que ela estaria sendo "erradicada" para que o governo chinês imponha "sua própria cultura".
No número final da dança, um grupo de seguidores do Falun Dafa, que usavam azul e amarelo e seguravam livros de ensinamentos religiosos, lutava por espaço numa praça pública com jovens corrompidos. (A corrupção era evidente porque estavam vestidos de preto, olhando para os celulares e, no caso de dois homens, de mãos dadas). O presidente Mao apareceu, e o céu ficou preto; a cidade no cenário digital foi arruinada por um terremoto e depois destruída por um tsunami comunista. Um martelo e uma foice vermelhos brilhavam no centro da onda, que tinha a face de Karl Marx estampada, conta a escritora Jia Tolentino sobre o que viu no espetáculo em coluna publicada na revista The New Yorker.

De fato, o Falun Gong foi banido na China em 1999 num movimento do governo contra a disseminação do que chamou de pseudociência. Antes disso, em 1998, Li Hongzhi, fundador da filosofia, já havia se autoexilado nos Estados Unidos, onde vive até hoje.
As visões religiosas e conservadoras do grupo nunca foram segredo e seguem os ensinamentos de Li sobre proporção entre virtude e karma: o que você faz de bom e ruim conta como pesos numa "balança" que define sua prosperidade nessa vida ou na próxima.
O que é visto como ruim, porém, revela suas raízes ultraconservadoras. No "karma", entram casamento inter-racial, homossexualidade, feminismo, ateísmo e até mesmo acreditar na teoria da evolução ou aceitar atendimento da medicina moderna.
Um homem subiu ao palco para cantar uma música em chinês, que foi traduzida na tela atrás dele. 'Seguimos o Dafa, o Grande Caminho', ele começou cantando sobre um Criador que salvou a humanidade e fez o mundo novo. 'Ateísmo e evolução são ideias mortais. As tendências modernas destroem o que nos torna humanos', cantou, escreveu Tolentino.
Acusações de seita
Em 2015, a Embaixada da China nos EUA definiu o Falun Gong como uma "seita antissociedade". "Esta organização prega falácias heréticas que são anti-humanidade e anticiência, e exerce extrema manipulação mental sobre os seus seguidores. É um culto que prejudica gravemente a sociedade e viola os direitos humanos, e é um câncer no corpo da sociedade moderna e civilizada", escreveu a entidade.

Depois de passar uma década trabalhando com mais de 50 ex-membros do grupo e suas famílias, Rick Alan Ross, autor de "Seitas de Dentro para Fora: Como as Pessoas Entram e Podem Sair", defende que o grupo pode ser considerado uma seita, já que os seguidores tratam Li como "Buda vivo".
Grande parte do suposto poder de cura do Falun Gong baseia-se na crença de que Li Hongzhi pode inserir telecineticamente em seus discípulos o "falun" giratório ou a "roda da lei" mística. Feito isso, o "Buda vivo" pode supostamente transferir energia para o devoto.
Rick Alan Ross
Segundo Fernando Pureza, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do livro "História da Ásia", o Falun Gong nasce com uma ideia de redescoberta do folclore tradicional, recebendo inclusive investimentos do próprio PCCh, mas, quando começa a se institucionalizar como religião, passa a incomodar.
O PCCh pensa: 'Uma coisa é vocês recuperarem o folclore, outra muito diferente é o Li Hongzhi organizar protestos contra a laicidade do Estado ou contra o comunismo', coisas que atentavam, no entendimento do PCCh, contra a própria estrutura do país. E não é só uma crítica ao comunismo e uma defesa da democracia liberal. Vem junto de um pacote de valores de extrema direita: a defesa da homofobia, uma posição racista e misógina, conta Pureza.
O grupo é expulso da China quando se estabelece uma narrativa, nos anos 90, de que queria a dissolução do PCCh e a criação de um regime teocrático, explica o professor.
Eles, por sua vez, alegam que, por serem críticos ao PCCh, viram milhares de seus membros serem mortos sob custódia do Estado e dizem que alguns teriam sido usados para extração de órgãos — isso é contestado por diversos especialistas e até advogados que trabalharam com adeptos do Falun Gong.
Liang Xiaojun, que afirma ter defendido de 300 a 400 praticantes do Falun Gong em casos civis, revelou ao jornal Washington Post em 2017 que sabia de apenas três ou quatro mortes na prisão. "Nunca ouvi falar de órgãos retirados de prisioneiros vivos", afirmou.

De onde vem tanto dinheiro e poder?
Classificado como uma organização sem fins lucrativos, o Shen Yun teve rápido crescimento e viu sua receita crescer de US$ 8 milhões em 2011 para US$ 46 milhões em 2022 e quase US$ 230 milhões em ativos totais hoje, conforme dados declarados ao IRS, a "Receita Federal" dos EUA.
Na primeira turnê, eram cerca de 90 dançarinos. Em 2009, já havia três companhias e orquestras completas. Hoje, são seis que viajam pelo mundo simultaneamente, com cerca de 40 artistas cada.
Além do Shen Yun, o Falun Gong também está por trás do jornal The Epoch Times, fundado em 2000 por John Tang e outros sino-americanos afiliados ao movimento religioso. Apesar das ligações entre os dois, o Epoch Times nega que seja afiliado direto do Shen Yun e se declara "parceiro de mídia" da companhia de dança (veja a resposta completa do jornal abaixo).
Com o lema "Verdade, tradição e esperança" e uma linha editorial voltada majoritariamente para se opor ao governo do PCCh, o jornal tem sede em Nova York e portais em 36 países — incluindo o Brasil.
A origem do dinheiro que financia o The Epoch Times foi definida pelo New York Times como "um mistério". Uma reportagem da NBC News diz que o jornal teve um grande crescimento a partir do final da década passada, quando expandiu sua presença online: de US$ 7 milhões em assinaturas em 2019, o faturamento saltou para US$ 76 milhões em 2021.
Parte desse dinheiro tornou o The Epoch Times o segundo maior financiador de publicidade pró-Trump no Facebook, atrás apenas do próprio comitê de campanha do ex-presidente.
Um ex-funcionário de uma operação regional do jornal revelou que, para direcionar as ações de publicidade, o The Epoch Times comprou listas de endereços de corretores de dados, especificamente de conservadores com 60 anos ou mais.
O jornal é dividido em organizações sem fins lucrativos, que receberam R$ 8,4 milhões em contribuições e subsídios em 2020 e 2021, segundo dados declarados ao IRS acessados pela NBC.
Entre os doadores listados, estão organizações cristãs e conservadoras, como a National Christian Charitable Foundation, que conecta doadores anônimos com causas cristãs, e o Donors Trust, um fundo para doadores conservadores e libertários.
No Brasil, os dados de faturamento do The Epoch Times não são públicos: o jornal está inscrito desde setembro de 2022 no CNPJ de uma microempresa com sede em Curitiba (PR). O capital social declarado é de apenas R$ 1.000.
Em seus canais, o The Epoch Times Brasil alega que funciona à base de doações e assinaturas, o que daria ao jornal mais "independência".
As teorias da conspiração do The Epoch Times
Na edição brasileira, a EpochTV, divisão de documentários do jornal, é pautada pela divulgação de notícias comprovadamente mentirosas, por exemplo, sobre a China propagar intencionalmente a covid, teorias da conspiração alinhadas com o movimento QAnon, falsas alegações de fraude nas eleições dos EUA e propaganda antivacina.

Maria Estela Andrade, pesquisadora em estudos culturais e autora do artigo "Documentário e Conspiração: o caso The Epoch Times Brasil", explica que o jornal usa a narrativa clássica das teorias da conspiração e a promessa de "abrir os olhos" em seus vídeos.
Eles usam uma forma clássica de documentário: entrevistas e narração. Não é uma 'voz de Deus' clássica, mas tem uma voz de autoridade que vai costurando todos os fatos para criar uma linha discursiva, que estaria acima da ideologia, um 'acadêmico' que sabe do assunto. Depois entrar com um final moralizante, um chamado para a ação, conta.
Em sinergia com o Falun Gong e o Shen Yun, o grande vilão nos vídeos do The Epoch Times é (quase) sempre o PCCh. Maria Estela conta que mesmo em um vídeo sobre as eleições brasileiras de 2022, o jornal acusa o governo chinês de estar apoiando o PT, do agora presidente Lula. "O grande objetivo deles é mostrar como o Partido é 'nefasto' e como eles fazem parte de uma grande conspiração para dominar o mundo", conta.
O que diz o Epoch Times
O Epoch Times solicitou, no dia 3 de janeiro de 2025, a inclusão de uma resposta à reportagem, publicada originalmente no dia 11 de abril de 2024. O UOL compilou, abaixo, o texto da resposta, que foi publicado na íntegra no site do jornal.
Devido às suas características ancoradas na tradição oriental de "auto-cultivo" -- de aprimoramento moral realizado fora de religiões -- pesquisadores ocidentais e orientais com conhecimento em primeira mão da República Popular da China, incluindo o autor vencedor do Prêmio Pulitzer Ian Johnson e o acadêmico David Ownby, apuraram que o Falun Gong não se enquadra como "culto" ou "seita" porque é uma disciplina essencialmente apolítica com orientações voltadas à introspecção e ao autoconhecimento.
A tentativa de associar pejorativamente o Falun Gong a "visões religiosas e conservadoras" ou dizer que seus valores são de "extrema direita" é anacrônica, preconceituosa, eurocêntrica, e descarta sua origem ancestral e seus fundamentos em 5000 anos de civilização. Crenças sobre gênero, sexualidade e tradição familiar com milhares de anos, ocidentais ou orientais, não podem ser resumidas a "direita ou esquerda" em um espectro político inconsistente com sua origem.
A perseguição dita "suposta" na publicação é comprovada por uma diversidade de fontes publicamente disponíveis. Registros até agora não desmentidos pelo Partido Comunista Chinês demonstram crimes contra a humanidade e violações de direitos humanos comparáveis em crueldade com o que há de pior na história.
A publicação ecoa a narrativa do Partido Comunista Chinês ao tentar desacreditar o Shen Yun como sensação global "autoproclamada". A mentira é que essa proclamação não vem da imaginação do grupo, mas das principais celebridades e autoridades para arte e cultura no mundo. Os parlamentares e autoridades que louvam o Shen Yun incluem celebridades à esquerda do espectro político, à direita do espectro político, e moderados com ideologias diversas.
O Epoch Times é, orgulhosamente, um parceiro de mídia do Shen Yun. Possivelmente nos únicos fatos verdadeiros em meio à desinformação do artigo, o UOL noticia as cidades em que o Shen Yun estará presente no Brasil: São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
A reportagem decide estigmatizar essas pessoas [praticantes do Falun Gong] e o que fazem como parte de uma espécie de conspiração, e maliciosamente liga suas atividades a teorias que o Epoch Times não endossa e às quais não se associa.
Nossos fundadores não escondem o fato de praticarem Falun Gong, e os valores da disciplina -- verdade, compaixão e tolerância -- inspira nosso jornalismo, mas o Epoch Times não é de propriedade "do Falun Gong" nem é operado "pelo Falun Gong".
O UOL cita mentiras do New York Times sobre a fonte de financiamento do Epoch Times ser "um mistério". O Epoch Times é sustentado por assinantes.
Adicionalmente, por se enquadrar como uma organização sem fins lucrativos, o Epoch Times eventualmente recebeu doações. Isso somente é aceito pelo Epoch Times quando feito de forma a resguardar tanto nosso jornalismo independente quanto nosso cumprimento da legislação pertinente.
O UOL, a seguir, copia a mentira já refutada no exterior de outro concorrente do Epoch Times, a NBC News -- uma mentira publicada quando o crescimento do Epoch Times disparava de forma meteórica nos Estados Unidos -- sobre financiamento à campanha de um candidato presidencial.
A base para essa mentira é de que, nos EUA, o Epoch Times publicou vídeos promocionais nas redes sociais para comercializar assinaturas para o jornal, e em alguns desses vídeos havia trechos de reportagens que noticiaram sobre um candidato à presidência aparecendo brevemente. Isso não transforma os anúncios em anúncios de campanha e é estapafúrdio relatar o fato desta forma.
O UOL novamente mente ao dizer que a linha editorial do Epoch Times é majoritariamente voltada a se opor ao governo do PCCh. O Epoch Times hoje exerce ampla cobertura noticiosa.
Além dos EUA, o Epoch Times está presente em 36 países, operando em 22 idiomas. As edições locais do veículo possuem ampla independência e noticiam também sobre regimes totalitários e violações de direitos humanos.
Temos expandido a partir de 2020 nossa operação no Brasil com uma base crescente de assinantes.
O UOL mente ao alegar vagamente que nossa divisão brasileira de vídeos é "pautada pela divulgação de notícias comprovadamente mentirosas" sem especificar com sucesso uma única mentira comprovada em qualquer um de nossos conteúdos.
Isso inclui a descontextualização de nossa cobertura sobre a COVID-19 e sobre as medidas empregadas pelo regime chinês antes, durante e depois da crise sanitária.
A possibilidade da COVID-19 ter sido instrumentalizada pelo Partido Comunista Chinês, dita "comprovadamente mentirosa" no artigo do UOL, é um debate que figurou em conteúdo do Epoch Times, mas não como teoria da conspiração ou acusação leviana. Foi veiculada em segmentos opinativos municiados por evidência, ou foi aventada por entrevistados, em meio a conteúdo noticioso, mas em caráter opinativo.
Essa possibilidade, classificada como "comprovadamente mentirosa" pela reportagem, não era descartada por autoridades mundo afora no período em que o Epoch Times noticiou o assunto, começando em 2020.
O UOL tenta levianamente associar o Epoch Times ao movimento QAnon sem qualquer prova. É uma acusação pejorativa e infundada com aparente intuito de estigmatizar e desacreditar o Epoch Times replicando qualquer mentira que possa fortalecer um suposto rótulo de "extrema direita".
Prosseguindo, o UOL ainda alega que o Epoch Times tenha replicado "falsas acusações de fraude" nas eleições dos EUA, sem registrar uma única acusação falsa a ser desmentida nesta resposta.
Apesar da inconsistência da acusação, vale ressaltar que o Epoch Times cobriu notícias de relevância quanto a alegações de fraude em eleições americanas.
Casos a respeito dos quais o Epoch Times noticiou poderiam beneficiar candidatos ou narrativas de diferentes matizes políticas ou de nenhuma, demonstrando a fragilidade da mentirosa narrativa do UOL sobre nossa publicação e o compromisso de nossa redação com independência e verdade.
Diferentemente da maioria dos outros veículos de mídia americanos, o Epoch Times jamais declarou apoio a um candidato a um cargo eletivo.
O artigo do UOL cita uma pesquisadora chamada Maria Estela Andrade para tentar embasar a teoria de que nosso conteúdo promove "teorias da conspiração" e usa uma citação de um trabalho de Estela que em nada comprova isso.
Nossa cobertura exibiu um vídeo de um oficial do Partido Comunista Chinês dizendo, em maio de 2022, em uma reunião do Foro de São Paulo, que torcia pela vitória de Lula da Silva no Brasil; noticiou sobre intercâmbio de experiências entre o Partido Comunista Chinês e partidos no exterior; e noticiou sobre dinheiro cedido pelo Partido Comunista Chinês a entidades historicamente ligadas ao Partido dos Trabalhadores -- todos fatos publicamente documentados na imprensa periódica.
O Epoch Times cobre violações de direitos humanos e as atrocidades perpetradas pelo Partido Comunista da China. Isto não é um alinhamento político à "extrema direita" nem uma disputa política leviana. Isso não é "conspiração". É parte de nossa missão e uma responsabilidade da qual não nos omitimos.
Não declaramos posição política nas eleições brasileiras de 2022, e continuamos a não tomar posição política ou partidária, apesar de, em termos de valores, professar uma linha editorial anticomunsita.
Nos orgulhamos de oferecer ao público conteúdo que não está matizado pelas ideias que levaram à morte de mais de 100 milhões de pessoas e seguem sustentando a perseguição, prisão e tortura de inocentes por sua fé, incluindo alguns de nossos funcionários e seus familiares.
* A reportagem entrou em contato com a Embaixada da China em Brasília e com a Associação Falun Dafa no Brasil, mas, em ambos os casos, não obteve retorno. O espaço permanece aberto para manifestações.
8 comentários
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Daniel Perez Vieira
Vale lembrar que o Epoch vem recebendo vários expoentes da direita brasileira para entrevistas, mostrando o alinhamento do Brasil com a Extrema-Direita Mundialista
André Manzatto
Mais uma seita de loucos que colocam a religião acima de tudo. Não acreditar em vacinas, não acreditar na ciência, são fatores de gente doida. Infelizmente a desinformação traz este tipo de narrativa. Estão completamente fora da realidade e o pior que muita gente embarca nessa loucura. A estratégia é fazer um espetáculo bonito e bem produzido, para depois tentar colocar as suas ideias malucas no ar. Tem gente que embarca.
Pascoal Fineto Junior
O espetáculo é maravilhoso!!!