Renúncia de Bento 16 dessacraliza a figura do pontífice e revoluciona percepção da hierarquia eclesiástica, dizem especialistas
Alba Tobella e Susana G. Vejo
Em Madri
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Reprodução de vídeo/Radio Vaticana
Papa Bento 16 celebra missa da quarta-feira de Cinzas na Basílica de São Pedro, no Vaticano
A renúncia do papa humaniza uma figura que durante séculos esteve além do bem e do mal, segundo explicam historiadores e teólogos de universidades do mundo inteiro. Consideram-na a dessacralização de um cargo para eleitos, que só era abandonado para passar ao reino dos céus. Bento 16 retrocedeu e se transformará em 28 de fevereiro no primeiro ex-papa da história moderna. Para os estudiosos, sua decisão coloca mais perguntas que respostas e, afirmam, abre um novo caminho mais terreno na dinastia pontifícia.
"É uma revolução de um alcance tão amplo que muda toda a percepção da hierarquia eclesiástica. Era um monarca vitalício e não é mais. Enquanto ninguém imaginava que a demissão do papa fosse possível, ele o fez", explica Marina Caffiero, professora de história moderna do catolicismo na Universidade de La Sapienza, em Roma. "Até agora o papa era uma figura mística, um patrimônio pela vida inteira que se dessacralizou", acrescenta Natalia Nowakowska, doutora em história medieval na Universidade de Oxford. Segundo a pesquisadora, o fato de se falar em abdicação no caso dos papas anteriores e de renúncia em relação a Bento 16 obedece a uma nova forma de interpretação do papado. "Com essa decisão, Bento 16 dá a entender que para ser papa hoje é preciso estar em boas condições para poder viajar, mostrar a cara ao público e movimentar-se. Parece que ele considera tratar-se de um trabalho e não de uma missão perene, como antes", diz a pesquisadora.
Conheça os favoritos a papa
Veja Álbum de fotosENTENDA O PROCESSO SUCESSÓRIO DO PAPA
Quando o chefe da Igreja Católica renuncia a sua função ou morre, seu sucessor é eleito pelos cardeais reunidos em conclave na Capela Sistina, onde ficam isolados do mundo exterior.
Cinco cardeais brasileiros deverão participar do conclave que se reunirá para eleger o sucessor do papa Bento 16. Segundo a última lista do Vaticano, há um total de 116 cardeais aptos a votar no conclave.
Para poder votar na escolha do papa, o cardeal precisa ter menos de 80 anos. O Brasil tem um total de nove integrantes no Colégio Cardinalício do Vaticano, mas quatro deles já ultrapassaram a idade limite.
E com isso Bento 16 marca um ponto de inflexão fundamental em relação a seus antecessores. "João Paulo 2º chegou até o final para se fazer santo, enquanto Bento declarou não ter condições físicas para continuar", esclarece.
Bento 16 tinha enviado sinais de que não sofreria sua velhice em público, segundo considera Francis Schussler Fiorenza, catedrático de estudos católicos na Universidade de Harvard: "Antes de ser papa, quis se demitir da chefia da Doutrina da Fé. Os últimos meses de João Paulo 2º foram um exemplo que não quis seguir, e muitos aplaudem que não o tenha feito".
Caffiero explica que durante seu pontificado muitos elementos próprios dos humanos passaram a ser limitações para o papa: a idade, a doença, o cansaço. "Na realidade, é um gesto de grande modernidade, levando em conta que no século 18 era um vice-deus", aponta. A historiadora contrapõe a figura idolatrada de João Paulo 2º, "com grande impacto nos meios de comunicação de massas", com o "impacto negativo" de Ratzinger nas redes sociais. "Em vez de ser um meio de apoio, a metade dos tuítes é para criticá-lo", observa.
Só quatro pontífices haviam abandonado o imenso poder concentrado em um frasco diminuto, um dos Estados menores e mais antigos do mundo, com mais tentáculos em todo o planeta. Da saída de Bento 16 se lembrará que foi uma decisão excepcional. "Nenhuma das renúncias que houve no passado pode ser considerada no sentido moderno da palavra", esclarece o professor da Universidade de Cambridge Richard Rex, explicando que o contexto e o papel que o Vaticano desempenhava nessas ocasiões - séculos 2º, 3º, 12 e 15 - era muito diferente.
Mas dos quatro papas só com Celestino 5º se pode falar em uma renúncia voluntária de um papa legítimo. "Embora segundo uma antiga tradição Clemente 1º teria sido papa de 88 a 97, hoje se sabe com certeza que era um simples presbítero de Roma", afirma Ramón Teja, presidente da Sociedade Espanhola de Ciências das Religiões, que explica que tanto Ponciano quanto Gregório 12 abdicaram devido a circunstâncias externas. O primeiro foi expulso para a Sardenha e substituído por outro em 235. O segundo, obrigado a renunciar em 1415 para terminar com o Cisma do Ocidente, onde reinavam três papas. "Um em Avignon, outro em Pisa e outro em Roma, e não estava claro que algum fosse legítimo", diz Teja.
Pontificado de Bento 16
Leia mais sobre a renúncia
O catedrático vê a demissão de Bento 16 como o fim de um império: "Na pessoa do papa se concentram os poderes executivo, legislativo e judiciário, tanto do Estado do Vaticano como da Igreja enquanto instituição. Pode-se dizer que é o único monarca absoluto que sobrevive no Ocidente. E eles nunca renunciam ao trono".
"Essa demissão tem muito a ver com a precariedade dos tempos atuais. É a própria imagem de que ninguém, nem mesmo o papa, pode se perpetuar no poder uma vez terminado seu trabalho", observa Grado Giovanni Merlo, historiador do cristianismo na Universidade de Milão e autor do livro "O cristianismo medieval no Ocidente", que analisa a relação entre a Igreja e a sociedade.
Um dos aspectos mais polêmicos de sua demissão consiste em esclarecer se as lutas no seio da Santa Sé reveladas pela detenção do mordomo de Bento 16 em 25 de maio passado, por roubar correspondência do papa, influíram em sua decisão. "Suspeito que o assunto tenha algo a ver. Possivelmente levou Bento 16 a perceber que havia muitos movimentos nos bastidores para preparar o que aconteceria depois de sua morte. Não é questão de tradicionalistas ou reformistas. Tudo parece ser uma disputa entre diferentes facções pessoais, mais que questões de ideologia na Igreja em geral", analisa Roger Collins, especialista da Universidade de Edimburgo e autor do livro "Guardiães das chaves do céu: uma história do papado".
"O Vaticano foi uma luta de poder desde a Idade Média até hoje. De um modo ou de outro, a política está sempre presente no pontificado. Houve papas mais fortes e mais fracos, mas nunca estão à margem", descreve o historiador de Milão. "É outro dos elementos chaves de sua demissão. Com a idade e o cansaço, não creio que se considerasse com forças para enfrentar a Cúria Romana e não quis ficar em suas mãos velho e doente, como fez seu antecessor", acrescenta.
Joseph Ratzinger, condenado ao esquecimento por ser um papa de transição, garantiu sua vida eterna ao dar um passo sem precedentes, segundo interpreta Collins. O especialista britânico considera que "sua escolha adiou a necessidade de tomar uma decisão mais radical" e que "o próximo conclave será muito importante para ver se chegam ou não as mudanças que não puderam ser adotadas em 2005", quando Bento 16 foi eleito.
Conheça os favoritos a papa
Veja Álbum de fotosTradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves