Erros marcam atuação da agência de inteligência francesa no caso "Charlie Hebdo"

Matthieu Suc

  • Remy de la Mauviniere/AP

A agência de inteligência francesa encobriu seus erros por não ter monitorado suficientemente os irmãos Kouachi

A cena se passou um dia após a chacina do "Charlie Hebdo". Eram 19h50 de quinta-feira, 8 de janeiro, quando um agente da inteligência territorial telefonou para o ex-policial sindicalista Jo Masanet, contando-lhe sobre a célula de crise criada "com Bernard Cazeneuve e todas as agências de inteligência" no Ministério do Interior. Então o agente hesitou, procurando palavras para falar sobre os irmãos Kouachi que ainda estavam sendo procurados: "Bem, mas... deve-se dizer, que, hã... já tínhamos as informações sobre os indivíduos... nós os havíamos acompanhado, eles estavam em nossa base de dados..." Eles os conheciam, mas não os monitoravam.

"Constatou-se que a DGSI (direção geral da segurança interna) não deu conta, certo? Então temos um grande problema aí..." Essa conversa, ouvida por investigadores que trabalhavam em um caso de tráfico de influência, ilustra aquilo que muitos pensam mas não dizem oficialmente. E isso mesmo dentro da DGSI, que desde então tem sido alvo de questionamentos legítimos sobre suas escolhas estratégicas e seus métodos de trabalho.

A reportagem do "Le Monde" revela esses problemas mencionados pelo interlocutor de Masanet. Não se trata de afirmar que os atentados que deixaram 17 mortos em janeiro poderiam ter sido evitados, mas sim ter uma dimensão exata dos erros cometidos, em um momento em que o governo apresenta um projeto de lei que atribui plenos poderes técnicos às agências de inteligência, além de questionar a versão oficial apresentada após os atentados.

Polêmica

Depois que o "Le Monde" publicou no dia 10 de janeiro um artigo descrevendo "a cegueira das agências de inteligência", que ficaram obcecadas pelo jovens que partiam para a Síria, deixando de lado veteranos da jihad como Chérif Kouachi, o Ministério do Interior organizou à tarde um "debriefing" com a imprensa para abafar a polêmica. No Ministério do Interior, comunicados de colaboradores do ministro – Patrick Calvar, diretor da DGSI, e Lucile Rolland, chefe da subdireção encarregada do combate antiterrorista – detalhavam em off para dez jornalistas o dispositivo que tinha como alvo os irmãos Kouachi.

Nos dias seguintes, a imprensa reproduziu a mensagem: Chérif Kouachi foi monitorado até o fim do ano de 2013 e seu irmão Said até o verão de 2014, mas nada permitia pensar que eles preparavam um atentado e, de qualquer forma – afirmam artigos que citam "Ministério do Interior" ou "certos oficiais da inteligência" - , as escutas tiveram de ser interrompidas a pedido da Comissão Nacional de Controle das Intercepção (CNCIS), a autoridade administrativa independente encarregada do controle dessas investigações.

Na segunda-feira (12), a CNCIS desmentiu a informação: "Em nenhum momento (a Comissão) manifestou oposição (...). As afirmações contrárias, consequentemente, são na melhor das hipóteses inexatas, e na pior uma manipulação." Esse comunicado teve pouca repercussão. A operação funcionou, e a DGSI se livrou da polêmica.

No entanto, as informações que ela forneceu durante a perseguição permitiam questionar se os irmãos Kouachi eram realmente monitorados. No dia 7 de janeiro, a nota informativa sobre Said Kouachi tinha menos de duas páginas, e eram anteriores a 2012.

Ali não constavam as duas fichas "S" – de segurança de Estado – que o apresentavam como um "indivíduo propenso a ter ligação com uma rede islâmica radical internacional" cujas "viagens ao exterior poderiam comprometer a segurança nacional". Na nota não se mencionava nem mesmo se ele era casado e tinha filhos. Foi só no dia 9 que uma nota "atualizada" pela DGSI comunicou seu estado civil completo.

Outra lacuna se constatou quando os três endereços fornecidos para seu mandado de prisão se revelaram "errados", e depois disso um novo mandado foi emitido com mais três endereços, com o mesmo resultado. Um deles, em Pantin, era de um homônimo seu de 81 anos... Na verdade, o terrorista vivia em Reims havia anos, e seu endereço nunca havia mudado, com exceção de um detalhe: o nome da rua havia sido trocado no dia 16 de fevereiro de 2014, período no qual a DGSI deveria estar monitorando-o.

Viagem para a Síria

A nota sobre Chérif Kouachi, condenado em 2008 no caso da organização iraquiana de Buttes-Chaumont, não era mais informativa e se revelou ainda mais sumária que a de seu cunhado, um jovem de 18 anos que manifestou na internet seu desejo de viajar para a Síria, a obsessão das agências de inteligência. Bem ilustrativo da falta de conhecimento sobre aqueles que eles deveriam ter monitorado durante quase três anos foi o fato de que a DGSI grampeou, após a chacina do "Charlie Hebdo", uma linha telefônica atribuída aos pais de Chérif e de Said na Argélia, antes de descobrir que eles haviam morrido há mais de vinte anos.

No dia 8 de janeiro, o "New York Times" revelou que Said Kouachi teria ido ao Iêmen no verão de 2011. Essa viagem seria mencionada durante o "debriefing" no Ministério do Interior: os Estados Unidos haviam alertado as agências de inteligência francesas, acrescentando ainda que Salim Benghalem, um delinquente que se radicalizou dentro da prisão, o acompanhava. Mas a DGSI omitiu um elemento crucial.

Como parte de um processo sobre uma organização jihadista, a Justiça havia ouvido, nos dias 28 e 29 de janeiro de 2014, uma testemunha que relatou as confidências feitas por Salim Benghalem a respeito da viagem ao Iêmen, onde Benghalem encontrou "um membro em posição de poder" da Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA). "Salim recebeu treinamento em manejo de armas. (...) Alguém lhe dera como missão cometer um atentado na França, me parece que contra uma universidade americana na França. (...) Ele deveria ir até o local com uma arma e matar todo mundo." No dia seguinte, a testemunha ainda complementou: "seu grupo era constituído de vários franceses."

A testemunha não mencionou o nome de Kouachi, mas sua descrição de um comando treinado para cometer atentados na França foi considerada suficiente para voltar a colocar Said sob escuta no início de 2014, mas não o suficiente para fazer disso uma prioridade e enviar efetivos para segui-lo. Considerando o modus operandi da chacina do "Charlie Hebdo" e sendo que esta foi reivindicada pela AQPA, contentar-se com escutas para um indivíduo que há uma dezena de anos estava acostumado a não dizer nada no telefone soa como um erro, passados os acontecimentos.

O que faz lembrar um outro episódio doloroso para a contraespionagem francesa: a DCRI – antigo nome da DGSI – havia interrompido a vigilância sobre Mohamed Merah seis meses antes de ele matar sete pessoas em março de 2010 em Toulouse e Montauban. Assim como no caso dos Kouachi, a agência de inteligência se justificou dizendo que Merah não tinha "nenhuma atividade radical aparente" e ainda que a CNCIS não havia autorizado as escutas.

A história se repetiu, com exceção de um detalhe. Nomeado após o episódio Merah, o ministro do Interior, Manuel Valls, havia garantido que era "do interesse do Estado que a verdade fosse conhecida". Foi retirado o sigilo de 24 documentos, e então descobriu-se que os relatórios da DCRI contradiziam a versão da... DCRI. Merah não era "um lobo solitário" que se autorradicalizou, pelo contrário: ele era um "alvo privilegiado" dentro de uma rede identificada. Ninguém pediu ainda pela retirada de sigilo dos relatórios de monitoramento dos irmãos Kouachi entre 2011 e 2014. O Ministério do Interior, que criou a DGSI em maio de 2014 para atenuar esses problemas, não quis comentar.

Tradutor: UOL

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