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NYT: Notre-Dame é a personificação de Paris feita de pedra e fé

Michael Kimmelman

16/04/2019 22h23

A Notre-Dame ocupou o centro de Paris durante a maior parte de um milênio, com suas torres gêmeas medievais erguendo-se da pequena ilha central entre as margens esquerda e direita da cidade. Hoje, a França está queimando.

O incêndio na Notre-Dame aconteceu no dia em que o criticado presidente do país, Emanuel Macron, deveria explicar como pretende abordar as exigências do movimento dos coletes amarelos. Um país angustiado e inquieto luta para enfrentar a rebelião que dura meses e a rede de segurança social desgastada que gerou os protestos. Gerações que tiveram de contar com essa rede social, como uma questão de orgulho e identidade nacional, a veem sumir em forma de fumaça.

Na segunda-feira (15), o mesmo aconteceu com a catedral, que durante séculos representou uma ideia em evolução da "francesidade". O simbolismo foi evidente. Este incêndio não é como outras calamidades recentes.

Quando as chamas mataram dezenas de pessoas presas na Torre Grenfell em Londres, expuseram uma escandalosa falta de supervisão e uma cidade de desigualdades desastrosas. Quando uma ponte despencou em Gênova, na Itália, também tirando vidas, revelou a grande cobiça da privatização e a ausência congênita de liderança na Itália. Quando o Museu Nacional no Brasil queimou, também por negligência do governo, apagou da face da Terra uma parte tangível da história sul-americana, incinerando registros antropológicos de civilizações perdidas.

Notre-Dame, onde ninguém morreu, representa outro tipo de catástrofe, não menos traumática, mas mais ligada à beleza, ao espírito e ao simbolismo.

Visitada por cerca de 13 milhões de pessoas por ano, a catedral, erguida durante o século 12, é a maior atração arquitetônica de Paris. É um emblema da cidade antiga, a personificação da Paris de pedra e fé, assim como a Torre Eiffel exemplifica a Paris da modernidade, "joie de vivre" e mudança.

Não que Notre-Dame não tenha mudado. Atacada por diversas vezes, ela é uma espécie de palimpsesto da história francesa. Ao considerar sua arquitetura gótica fora de moda e enfeitada, Luís 14 destruiu grande parte do interior da igreja e o trocou por um considerado mais de acordo com o gosto clássico.

Durante a Revolução, insurgentes saquearam a catedral, roubando tesouros e decapitando estátuas de figuras do Antigo Testamento na fachada do edifício, que tomaram por retratos de reis franceses. Eles rededicaram Notre-Dame ao Culto da Razão e fundiram seus grandes sinos.

Na época em que "O Corcunda de Notre-Dame", de Victor Hugo, imprimiu a catedral na mente de inúmeros leitores, o prédio estava bastante arruinado. Hugo chamou a igreja de "vasta sinfonia em pedra", tão "poderosa e fecunda quanto a criação divina", e se desesperou porque ela havia se transformado num objeto ridículo.

A popularidade do livro ajudou a reposicionar Notre-Dame como um símbolo da identidade francesa, inspirando sua restauração pelo arquiteto do século 19 Eugène Viollet-le-Duc. Viollet tentou restaurar o caráter gótico do templo, empreendendo um vasto projeto de reinvenção arquitetônica e imaginação particular, refazendo as figuras da fachada, recriando vitrais e acrescentando muitos toques ornamentais, incluindo a agulha ou flecha que acaba de queimar.

Quando a flecha caiu, todas essas camadas de história pareceram se evaporar.

Através de suas muitas transformações, Notre-Dame continuou sendo "o grande palco onde grandes eventos na França foram ensaiados e repetidos durante séculos", como disse o historiador Robert Darnton --onde o arcebispo da catedral abençoa as bandeiras carregadas pelos Exércitos franceses que partem para a guerra, diante de multidões que choravam por pais e maridos. Onde os parisienses choraram na segunda-feira nas margens do Sena e na Praça do Hôtel de Ville.

Em 1871, os "communards", com sua revolta morrendo, adotaram uma política de terra arrasada e queimaram o Hôtel de Ville, com suas pinturas de Delacroix e Ingres. Assim, o prédio de onde os parisienses assistiram ao incêndio é uma reconstrução.

A catedral vinha passando por uma ampla restauração. As gárgulas estavam quebradas, balaustradas tinham desmoronado, arcobotantes estavam manchados de poluição. A água vazava pelas rachaduras na estrutura de madeira da flecha.

Que triste paradoxo seria se chegarem à conclusão de que foi a restauração que levou acidentalmente à conflagração. Pelos primeiros relatos, parece que foi a agulha de madeira que acelerou o incêndio, fazendo a maior parte do telhado desabar.

Prometendo ao povo francês que reconstruirá Notre-Dame, que chamou de "epicentro de nossas vidas", o presidente Macron cancelou o discurso que faria sobre os coletes amarelos. Ele ainda pretende seguir adiante com suas propostas.

A França hoje luta para encontrar um modo de se reinventar para uma nova era. Considerando o grande período de tempo, a rebelião dos coletes amarelos sem dúvida passará a ser apenas mais um ponto na longa evolução de uma nação que sobreviveu a reveses e retornou, repetidamente, a uma glória duradoura.

Em sua notável série de televisão "Civilização", parado diante de Notre-Dame, o historiador Kenneth Clark perguntou: "O que é civilização? Não sei. Não posso defini-la em termos abstratos, ainda. Mas acho que sei reconhecê-la quando a vejo".

Ele se virou para a catedral: "E estou olhando para ela agora".

Um dia, o incêndio de 2019 poderá se dissipar na história de Notre-Dame. Poderá levar muitos anos para se repararem os danos. Mas a grande catedral também se reinventará.

Vídeo mostra o interior de Notre Dame após o incêndio

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