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Franceses questionam "generosidade seletiva" dos super-ricos com doações a Notre-Dame

Doações para a Notre-Dame superam os R$ 3,5 bilhões

Band Notí­cias

Liz Alderman e Steven Erlanger

Em Paris (França)

18/04/2019 16h18

François-Henri Pinault, o segundo homem mais rico da França, ofereceu a incrível quantia de 100 milhões de euros (cerca de R$ 470 milhões) para reconstruir a Catedral de Notre-Dame, enquanto os bombeiros ainda jogavam água nas últimas chamas na igreja na manhã de terça-feira (16). Para não ficar atrás, Bernard Arnault, o mais rico herdeiro da França e um feroz rival de Pinault e de seu pai, François, aumentou o lance para 200 milhões de euros algumas horas depois.

Na quarta-feira (17), o governo tinha aceitado cerca de 850 milhões de euros (quase R$ 4 bilhões) oferecidos em nome do patriotismo e para salvar o tesouro cultural, enquanto jorrava dinheiro de famílias ricas e empresas francesas, além de corporações internacionais.

Mas o espetáculo dos bilionários tentando superar-se rapidamente intensificou os ressentimentos sobre a desigualdade que foram expostos durante o movimento dos coletes amarelos, exatamente quando o presidente Emmanuel Macron tentava transformar a calamidade em uma nova era de união nacional. Houve acusações de que os extremamente ricos estavam tentando lavar suas reputações num momento de tragédia nacional.

"Você pode imaginar, 100 milhões, 200 milhões em um clique!", disse Philippe Martinez, chefe do sindicato militante CGT. "Isso realmente mostra as desigualdades deste país."

"Se eles puderam dar dezenas de milhões para reconstruir Notre-Dame, deveriam parar de dizer que não têm dinheiro para pagar as desigualdades sociais", acrescentou ele.

O filósofo e romancista francês Olivier Pourriol resumiu o sentimento com mais humor.

"Victor Hugo agradece a todos os generosos doadores dispostos a salvar Notre-Dame e propõe que eles façam o mesmo com os Miseráveis", escreveu ele no Twitter, referindo-se a outra famosa obra de Hugo, sobre a vida dos pobres.

Manon Aubry, uma figura importante no partido de esquerda radical França Insubmissa, chamou as doações de "um exercício de relações-públicas". Ela disse que a lista de doadores "parece uma classificação de empresas e pessoas localizadas em paraísos fiscais".

Ela acrescentou: "Eu quero dizer a eles: comecem pagando seus impostos. Isso aumentará a verba do Estado para cultura".

A discussão foi tão distante quanto se poderia imaginar da imagem de uma França unida que o presidente queria pintar em seu discurso nacional na terça-feira (16). Macron disse: "Cabe a nós transformar esta catástrofe" em um momento para sermos "melhores do que somos".

Sugestão de dedução fiscal gerou revolta

A tempestade de fogo começou quando Jean-Jacques Aillagon, um ex-ministro da Cultura e hoje assessor do pai de Pinault, foi ao Twitter depois que François-Henri Pinault anunciou sua doação na terça, para sugerir que as contribuições de empresas à restauração de Notre-Dame recebessem uma dedução fiscal de 90%, em vez dos 60% que as corporações normalmente recebem por contribuições beneficentes.

"Foi aí que a coisa explodiu", disse Pierre Haski, comentarista da estação de rádio pública France-Inter. "Isso produziu indignação, que esse ato de generosidade se transforme em vantagem fiscal."

A reação foi tão intensa que Aillagon foi à rádio na manhã de quarta-feira para retirar sua sugestão. A família Pinault então anunciou que não pediria dedução fiscal pela doação.

"Isso foi muito revelador sobre a sensibilidade de toda a questão", disse Haski, ocorrendo no meio de um grande debate nacional sobre os coletes amarelos e seus protestos contra a desigualdade e os privilégios fiscais.

Em geral muitos estão aliviados de que Notre-Dame continue de pé, e se hoje há 1 bilhão de euros para reconstruí-la, sem exigir demais de um orçamento nacional já apertado, isso pode bastar.

Mas os impostos foram uma das questões prementes no movimento dos coletes amarelos, e a que Macron teve maior dificuldade para debelar.

Os protestos que começaram no outono (no hemisfério norte) foram causados originalmente por um imposto sobre a gasolina, mas se transformaram em uma revolta coletiva maior pela queda dos padrões de vida que, segundo muitos franceses, tem origem nos altos impostos, enquanto as classes médias-altas das grandes cidades, quanto mais os ricos, vão muito bem.

Os manifestantes atacaram Macron por beneficiar os muito ricos ao eliminar um imposto sobre a riqueza como parte de seu plano para estimular a economia, entre outras induções.

Desde então ele anunciou uma série de modestos cortes fiscais para ajudar as pessoas em dificuldades a pagar as contas, mas se recusou a restabelecer o imposto sobre fortunas, um tapa simbólico no rosto dos manifestantes que redobrou sua raiva.

Ingrid Levavasseur, uma das fundadoras e líder dos coletes amarelos, disse que a França deveria "voltar à realidade".

"Há uma raiva crescente nas redes sociais sobre a inércia das grandes corporações sobre a miséria social enquanto elas se mostram capazes de mobilizar uma quantia louca de um dia para o outro por Notre-Dame", acrescentou ela.

Super-ricos

As empresas que contribuem estão entre as maiores da França, e representam dezenas de milhares de empregos no país e no exterior nos setores de consumo de luxo, energia e construção.

Mas, para muitos, elas também são símbolos de uma classe intocável de super-ricos que continuam enriquecendo, graças a uma série de vantagens fiscais.

Arnault e Pinault fizeram fortuna no mundo do luxo. Arnault construiu o império LVMH Louis Vuitton, e a família Pinault possui a Kering, segundo maior grupo de luxo da França.

As famílias dos dois bilionários foram rivais desde a chamada "guerra das bolsas", quando lutaram pelo controle do grupo italiano Gucci. A família Pinault acabou vencendo.

Ambos reuniram fortunas pessoais imensas, embora a de Arnault, que a Forbes calcula em 76 bilhões de euros, supere em muito a de Pinault, estimada em meros 26 bilhões de euros.

As duas famílias possuem coleções de arte inestimáveis e se esforçaram para superar-se ao longo dos anos com novos museus na França e na Itália para abrigar seus tesouros.

Assim, quando os bilionários anunciaram suas generosas doações a Notre-Dame, os críticos rapidamente comentaram que as amplas deduções seriam compensadas pelos contribuintes franceses.

"Esses bilionários querem se passar por heróis", disse no Twitter Esther Benbassa, senadora pelo Partido Verde. "Seria melhor eles renunciarem à evasão fiscal e à otimização fiscal."

No passado, Pinault pai também recusou uma dedução fiscal pela reforma da histórica Bolsa de Paris, no centro da cidade, que ele está transformando em um museu de arte moderna, dizendo que os contribuintes franceses não deveriam pagar a conta de seus gastos pessoais.

Quando parecia que outros doadores ricos poderiam se beneficiar de um generoso desconto fiscal por sua generosidade, o primeiro-ministro Edouard Philippe tentou acalmar as tensões em uma entrevista coletiva na quarta-feira.

"Devemos estar deliciados que indivíduos de muita baixa renda, indivíduos muito ricos e também companhias queiram participar do esforço para reconstruir uma catedral que está no centro de nossa história", disse ele.

"Lavagem de reputação"

Até agora, outros doadores ricos ficaram calados sobre o assunto. Arnault, que rapidamente dobrou a oferta de Pinault, não fez mais declarações.

Tampouco outro doador rico, a gigante dos cosméticos global L'Oréal. Os herdeiros da empresa, os Bettencourt-Meyers, anunciaram uma doação de 200 milhões de euros para Notre-Dame na terça-feira por meio da Fundação Bettencourt Schueller.

"É claro que há lavagem de reputação envolvida", disse a comentarista francesa Anne-Elisabeth Moutet, que viu as doações iniciais como basicamente sinceras.

"Há uma memória musculosa do catolicismo na França, e ela voltou", disse ela. "Somos um país secular, mas na hora H" os sentimentos religiosos vêm à tona.

Para alguns franceses, como Grâce Kitoudi, representante de serviços ao cliente que trabalha num aeroporto, a questão parece exagerada.

Na opinião dela, a crise dos coletes amarelos e o incêndio de Notre-Dame "são duas discussões muito diferentes", disse ela. "Não devemos confundir tudo. Se tivermos doações para reconstruir esse monumento incrível, está ótimo."

Vídeo mostra o interior de Notre Dame após o incêndio

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