'Eles foram para o sonho americano' diz irmã de homem afogado com filha na fronteira dos EUA
Pai e filha estão deitados de rosto para baixo na água lamacenta à margem do Rio Grande, ela com a cabeça minúscula enfiada na camiseta dele, um braço pendurado no pescoço.
O retrato do desespero foi captado na segunda-feira (24) pela jornalista Julia Le Duc, horas depois que Óscar Alberto Martínez Ramírez se afogou com sua filha Valeria, de quase 2 anos, quando tentavam atravessar o rio que separa o México dos Estados Unidos.
A imagem representa uma síntese pungente da perigosa jornada que os migrantes enfrentam no trajeto para o norte, até os Estados Unidos, e as trágicas consequências que muitas vezes passam despercebidas no debate ruidoso e cáustico sobre as políticas de fronteira.
Ela lembrou outras fotografias poderosas e algumas vezes perturbadoras que chamaram a atenção do público para os horrores da guerra e o sofrimento agudo de refugiados e migrantes. Histórias pessoais que muitas vezes são obscurecidas por acontecimentos maiores.
Assim como a foto icônica de uma criança síria sangrando, arrancada dos escombros em Aleppo depois de um ataque aéreo, ou o instantâneo de 1993 de uma criança faminta com um abutre próximo, no Sudão, a imagem de um pai com sua filha pequena na beira do Rio Grande tinha o potencial de perfurar a consciência pública.
Enquanto a foto repercutia pelas redes sociais na terça-feira (25), os deputados democratas na Câmara se agilizavam para aprovar uma lei emergencial de ajuda humanitária no valor de US$ 4,5 bilhões para tratar da difícil situação dos migrantes na fronteira.
O deputado democrata Joaquin Castro, do Texas, presidente do Cáucus Hispânico, ficou visivelmente emocionado ao falar sobre a fotografia em Washington. Ele disse esperar que ela faça diferença entre os legisladores e o público americano em geral.
"É muito duro ver aquela foto", disse Castro. "É a nossa versão da foto da Síria, do menino de 3 anos morto na praia. É exatamente isso."
A jovem família de El Salvador, Martínez, 25, Valeria e sua mãe, Tania Vanessa Ávalos, chegaram no último fim de semana à cidade fronteiriça de Matamoros, no México, na esperança de pedir asilo nos Estados Unidos.
Mas a ponte internacional estava fechada até segunda-feira, segundo lhes informaram as autoridades, e enquanto caminhavam pela margem do rio a água não parecia perigosa.
A família partiu no meio da tarde de domingo. Martínez nadou com Valeria em suas costas, enfiada sob a camisa. Ávalos seguiu atrás, nas costas de um amigo da família, segundo ela disse a autoridades mexicanas.
Mas quando Martínez se aproximou do barranco, carregando Valeria, Ávalos pôde ver que ele estava se cansando nas águas agitadas. Ela decidiu nadar de volta para a margem mexicana.
Novamente no lado mexicano, ela virou-se e viu o marido e a filha, perto da margem americana, afundarem no rio e serem carregados.
Na segunda-feira, os corpos foram recuperados pelas autoridades mexicanas a algumas centenas de metros rio abaixo, presos no mesmo abraço assustador.
"É muito lamentável que isso aconteça", disse o presidente Andrés Manuel López Obrador, do México, em entrevista coletiva na terça-feira. Mas na medida em que mais migrantes são rejeitados pelos Estados Unidos, disse ele, "há pessoas que perdem a vida no deserto ou atravessando o Rio Grande".
As últimas semanas expuseram ao público os perigos ao longo da fronteira, embora nenhum tão graficamente quanto a morte de Martínez e Valeria.
No domingo, dois bebês, uma criança e uma mulher foram encontrados mortos no Vale do Rio Grande, derrubados pelo calor escaldante. Uma criança da Índia foi encontrada morta no Arizona no início deste mês.
E três crianças e um adulto de Honduras morreram quando sua jangada virou dois meses atrás, enquanto cruzavam o Rio Grande.
A dissuasão tem sido uma estratégia preferida entre os funcionários dos Estados Unidos que tentam conter a onda de migração, desde antes de o presidente Donald Trump assumir o cargo.
Em 2014, o presidente Barack Obama pressionou o México a fazer mais, depois que dezenas de milhares de crianças desacompanhadas apareceram na fronteira sul buscando por parentes nos Estados Unidos.
As detenções no México aumentaram sob o chamado Plano Fronteira Sul.
Mas Trump, desde o início de sua campanha eleitoral, fez da repressão à imigração ilegal uma peça central de sua presidência.
Seu governo tem procurado criminalizar os que entram ilegalmente nos Estados Unidos, separar os pais dos filhos e diminuir drasticamente a capacidade dos migrantes de solicitar asilo nos Estados Unidos.
Mais recentemente, a Casa Branca impôs um plano para enviar milhares de solicitantes de asilo de volta ao México para aguardar seus processos judiciais.
Sob a pressão constante de Trump, o México tem intensificado sua própria repressão à migração nos últimos meses.
Esse esforço se acelerou nas últimas duas semanas como parte de um acordo entre o governo de López Obrador e Washington para impedir as tarifas de importação potencialmente paralisantes.
Na segunda-feira, o governo mexicano tinha enviado mais de 20 mil forças de segurança para as fronteiras sul e norte, para tentar impedir a passagem de migrantes não autorizados para os Estados Unidos, disseram autoridades.
Mas especialistas em direitos humanos, defensores de imigrantes e analistas de segurança alertaram que a mobilização poderá levar os migrantes a buscar rotas mais perigosas na tentativa de chegar aos Estados Unidos.
Apesar de todas as políticas linha-dura, centenas de milhares de migrantes continuam embarcando na perigosa jornada para os Estados Unidos, da América Central e de outros lugares.
Para todo migrante que decide fazer a viagem, seja a pé, amontoado em caminhões de carga ou no teto de trens, o medo do que ficou para trás supera o do que está por vir.
Alguns estão fugindo de bandos que dominam a região e matam à vontade. Outros buscam uma tábua de salvação econômica.
Esse foi o caso de Martínez e sua mulher, que deixaram El Salvador no início de abril com a intenção de recomeçar a vida nos Estados Unidos, segundo Jorge Beltran, repórter do "El Diario de Hoy" em El Salvador, que entrevistou alguns parentes do casal.
"Eles foram atrás do sonho americano", disse Wendy Joanna Martínez de Romero em sua casa em El Salvador.
Martínez deixou o emprego no Papa John's, onde ganhava cerca de US$ 350 por mês. Até então, sua mulher já tinha deixado o trabalho como caixa em um restaurante chinês para cuidar da filha.
O casal vivia com a mãe de Martínez na comunidade de Altavista, um complexo habitacional de pequenas casas de concreto a leste de San Salvador, segundo Beltran.
Embora o Altavista esteja sob o controle de gangues, o casal não estava fugindo da violência, disse Rosa Ramírez, mãe de Martínez. A dificuldade para sobreviver como uma família com US$ 10 por dia se tornara incontrolável.
Parentes fizeram um apelo ao público na terça-feira, pedindo dinheiro para ajudar a repatriar os corpos de Martínez e Valeria. O custo era estimado em cerca de US$ 8.000, uma soma inimaginável para os parentes reunirem.
Horas depois, o governo mexicano concordou em cobrir os custos.
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