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Vídeos colocam imparcialidade do juiz do caso Samarco sob suspeita 

Maurício Angelo

Do Observatório da Mineração

22/03/2021 04h00Atualizada em 22/03/2021 14h31

Registros de reuniões feitas entre o juiz responsável pelo caso do desastre de Mariana e advogados do Espírito Santo em 2020 e 2021 indicam uma possível suspeição do juiz Mário de Paula Franco Júnior. Nos vídeos, obtidos com exclusividade pelo Observatório da Mineração, o juiz da 12ª Vara Federal de Minas Gerais admite que muita gente que não deveria receber nada vai receber e quem deveria receber vai ficar de fora.

Os encontros também revelam que Mário de Paula orientou uma comissão de São Mateus (ES) antes da sua criação em 2020 e, em janeiro de 2021, se reuniu com membros e advogados de comissões de várias cidades para acalmar os ânimos, garantindo a continuidade de pagamentos de indenizações.

O artigo 145 do Código de Processo Civil diz que há suspeição do juiz que "aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa". Ignorando o acordo original firmado na Justiça com diversas instituições envolvidas, como o Ministério Público Federal, os pagamentos fazem parte de um novo modelo que se espalhou pelas cidades atingidas e gerou uma explosão de escritórios de advocacia.

O "Sistema Indenizatório Simplificado" determinado pelo juiz atende trabalhadores informais, que devem obrigatoriamente contratar um advogado, que fica com 10% da indenização. Os valores de cada uma variam de R$ 17 a R$ 567 mil.

Até o momento, já foram pagos R$ 700 milhões para 8.000 pedidos. Advogados de Minas e do Espírito Santo receberam R$ 70 milhões. Fontes confirmam, no entanto, que muitos advogados estão fechando acordos por fora do sistema, exigindo até 30% do valor total.

Para o MPF, há fortes indícios de que esse novo modelo foi criado pelo juiz Mário de Paula em conluio com as mineradoras Vale, Samarco e BHP, responsáveis pelo desastre, a Fundação Renova, criada para reparar os danos e os advogados locais.

Ao aderir ao sistema, a pessoa é obrigada a aceitar a quitação definitiva de qualquer indenização em aberto, inclusive do Auxílio Financeiro Emergencial, que a Renova tentou cortar no meio da pandemia.

O atingido também precisa abrir mão de eventuais processos judiciais no exterior e concordar com o fechamento do cadastro de novas pessoas.

Para Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça e doutor em direito, o juiz Mário de Paula "perdeu completamente a imparcialidade", o que ele está fazendo é "muito conveniente para a Vale" e "lesa grande parte dos atingidos".

"Boas" e "más" lideranças

"Identifiquem quem são as boas lideranças e procurem identificar as más lideranças que só querem prejudicar o sistema. Tranquilizem todos. As indenizações vão continuar avançando", diz Mário de Paula na reunião de janeiro.

A legitimidade das comissões de Minas e do Espírito Santo é questionada pelo Ministério Público Federal, que aponta diversas irregularidades como falsificação de assinaturas.

Atingidos ouvidos pela reportagem também afirmam que essas comissões foram criadas às pressas, sem representação efetiva e desrespeitando anos de deliberações locais.

O sistema foi abraçado pelas mineradoras Vale, Samarco e BHP e pela Fundação Renova, que criou um Portal do Advogado para facilitar o acesso direto ao novo modelo.

Manifestação conjunta de agradecimento

A assessoria de comunicação da Justiça Federal de Minas Gerais respondeu ao primeiro pedido de entrevista com o juiz Mário afirmando que "em razão de impedimentos legais, o juiz não comenta processos em andamento". Procurada novamente, a resposta oficial foi que o sistema indenizatório recebe aprovação dos atingidos.

Segundo a nota, as comissões enviaram uma manifestação conjunta de agradecimento e elogio para expressar a satisfação com o novo sistema. Na opinião do juiz Mário de Paula, o novo sistema seria "um marco na história do Poder Judiciário nacional".

Até o momento, 18 territórios em Minas Gerais e no Espírito Santo entraram no formato de indenização. Processos em outros locais estão em andamento. Ao entrar com um mandado de segurança em outubro, o Ministério Público Federal alegou "reiteradas condutas abusivas praticadas pelo juízo da 12ª Vara Federal de MG". Em palestra de 2017, Mário de Paula se comparou a Sergio Moro, que agora tem a suspeição julgada pelo Supremo Tribunal Federal.

Ativismo judicial

A nota divulgada pelo TRF-1 afirma que Mário de Paula resolveu aplicar ao caso Samarco o conceito de "Rough Justice", importado do direito norte-americano, que está sendo utilizado "de forma inédita no Brasil" através da matriz indenizatória simplificada, que "prioriza a efetividade do sistema de justiça".

Para Lenio Luiz Streck, professor de direito constitucional, não existe nenhuma hipótese em que a imparcialidade do juiz possa sofrer exceção. Este seria um caso típico de "ativismo judicial" e não é aceitável a ideia de "fazer o possível", algo que não pode se espalhar pelo Brasil. "Não existe no direito a tese de que eu posso burlar a lei pelo bem", afirma Streck.

O MPF, o MPMG e as Defensorias Públicas de MG e do ES recorreram de decisão de Mário de Paula que reduziu pela metade o valor do auxílio financeiro emergencial pago pela Renova a atingidos. Considerando que a Fundação Renova não cumpre as suas obrigações e representa o interesse de Vale, Samarco e BHP, o MP-MG recentemente pediu a extinção da Renova.

A Fundação Renova disse que "não comenta casos específicos". A Vale afirmou que a adesão ao novo sistema é totalmente facultativa. Para a Samarco, quem não concordar com os termos pode buscar o judiciário. A BHP informou que "nunca fez qualquer tipo de acordo com advogados locais antes de essas ações serem impetradas nesses municípios".