Em reunião, Bolsonaro e Funai incentivam indígenas a pedir por agronegócio
"Estamos envolvendo presidente da República, querendo ajudar, ministros, eu tenho que escutar essas ladainhas sobre cooperativa? A paciência acabou. Querem ficar com ONG? Maravilha, fique com essas malditas ONG, só que lembre-se: Estão dentro do Brasil. General Mourão, Exército, Polícia Federal, vai pra cima", diz o madeireiro João Gesse em áudio vazado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e confirmado pelo Observatório da Mineração.
O áudio é sobre reunião realizada em Brasília na quarta-feira, 24 de março, com a presença de Gesse, Jair Bolsonaro, Marcelo Xavier, presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), e uma comitiva de lideranças Kayapó do sul do Pará. O encontro não constou na agenda oficial de Bolsonaro.
Na reunião, o presidente incentivou os indígenas a pressionarem por mineração e pelo agronegócio em suas terras.
Já o presidente da Funai orientou o madeireiro Gesse a entrar com uma ação popular contra uma associação indígena que não concorda com o garimpo e se ofereceu a financiar uma visita de uma comitiva de lideranças Kayapó às terras dos Paresis, no Mato Grosso, que plantam soja de maneira controversa.
A cooperativa citada no áudio é a Kayapó Ltda, fundada em 2018 com a articulação de Gesse e do ex-deputado federal e cantor Sérgio Reis, amigo de Bolsonaro. Em seu estatuto, a cooperativa lista como objetivo a "extração, exploração agroindustrial, produção e comercialização em comum", entre outros, de "recursos minerais existentes na Reserva Kayapó".
Hoje, a mineração em terras indígenas é proibida. Em fevereiro de 2020, Bolsonaro encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei 191/2020, que pode permitir a mineração, o garimpo e outras atividades dentro de terras indígenas. Com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara, o projeto agora é considerado prioritário.
Ao tomar conhecimento dos objetivos da cooperativa, lideranças e caciques do povo Kayapó divulgaram carta pedindo a extinção da entidade.
Em entrevista, Gesse confirmou o teor do áudio e disse que a presidência da Funai o procurou para saber se poderia usar o estatuto da cooperativa como referência para outros povos indígenas do Brasil. De acordo com Gesse, no entanto, os indígenas são livres para decidir se querem ou não continuar com a cooperativa.
Em vídeo gravado no fim da reunião, Bolsonaro diz que os indígenas "querem que as suas terras sejam usadas" para a "agricultura, pecuária, exploração mineral, recursos hídricos", o que não seria "fácil", mas é possível. Para isso, o presidente disse na reunião que os indígenas precisam pressionar os deputados a aprovar o projeto de lei.
Procurada diversas vezes, a Presidência da República não respondeu às perguntas enviadas.
Niti Kayapó, liderança que esteve na reunião, disse que "não pode falar que é contra o garimpo" e que essa atividade "precisa ser discutida com todos os Kayapó". Em 2019, novos garimpos desmataram 330 hectares de floresta na área dos Kayapó, segundo dados do Sirad-X, da rede Xingu+. É o dobro do registrado em 2018.
Presidente da Funai recomendou ação contra ONG indígena
Em outro trecho do áudio revelado pela Apib, Gesse ataca o MPF (Ministério Público Federal) e diz que Xavier, presidente da Funai, o teria orientado a entrar com uma ação popular contra a ONG AFP (Associação Floresta Protegida), organização indígena do Povo M'bêngôkre/Kayapó que representa 3.000 indígenas de 31 aldeias no sul do Pará.
E já que esse MPF omisso, podre, não levantou as denúncias que fizemos, vamos entrar com ação popular que daí ninguém segura. Você não viu o presidente da Funai, que é delegado da Polícia Federal, falar isso pra nós? O general também falou. É o que vamos fazer."
João Gesse
A denúncia feita por Gesse contra a Floresta Protegida ao MPF em 2017 por supostas atividades irregulares e desvio de recursos foi arquivada. Em entrevista, Gesse confirma que a orientação do presidente da Funai.
"O Xavier me falou: "Gesse, o caminho é uma ação popular", porque Ministério Público não adianta. Então é o que nós vamos fazer. Contra quem for necessário", disse Gesse. Procurado, o MPF não quis comentar.
Para Bepnhoti Atydjare, conhecido como Amauri, coordenador-executivo da Associação Floresta Protegida, a perseguição de Gesse visa atrapalhar as atividades da organização. A AFP é contra garimpo em terra indígena.
"É fácil fazer denúncia sem provas e barrar todo o financiamento para a AFP. Isso que ele tentou e não conseguiu. Ele tá querendo criar uma briga entre os Kayapó", disse Amauri.
Questionada diversas vezes sobre o teor da reunião e as afirmações levantadas, a Funai não comentou.
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