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Onde crianças morrem por tiro de fuzil

Ágatha, 8, foi atingida nas costas quando estava em uma Kombi - Reprodução
Ágatha, 8, foi atingida nas costas quando estava em uma Kombi Imagem: Reprodução

Do UOL, no Rio

21/09/2019 12h40

Uma criança pode morrer de várias maneiras. A ordem natural, segundo a qual os mais jovens enterram os mais velhos, é subvertida a todo momento por doenças, quedas, desastres ambientais. No mundo inteiro, é assim que meninas e meninos perdem a vida. Mas não no Rio de Janeiro.

Essa cidade outrora simpática, até chamada de maravilhosa, é um dos únicos lugares do planeta onde não há guerra declarada e uma criança corre o risco de morrer alvejada por tiro de fuzil.

A tragédia se repetiu na sexta-feira (20), no Complexo do Alemão: Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, foi atingida nas costas quando estava em uma Kombi. Segundo testemunhas, os tiros foram disparados por policiais que tinham como alvo um motociclista suspeito.

Nem todas as crianças cariocas correm o risco de morrer como Ágatha. Os pequenos moradores das favelas são as vítimas em potencial, pois convivem diariamente com tiroteios cada vez mais frequentes. Segundo o aplicativo Fogo Cruzado, 16 meninos e meninas foram baleados no Grande Rio neste ano; cinco morreram.

O perigo nessas comunidades, que já era grande, aumentou desde janeiro, quando assumiu o governador Wilson Witzel (PSC), adepto de acirrar o confronto contra os bandidos, doa a quem doer. Seja por terra ou por ar, em inacreditáveis operações nas quais agentes aboletados em helicópteros disparam contra seus alvos, como num videogame, policiais aterrorizam ainda mais comunidades que já eram aterrorizadas pelo tráfico. Não há inteligência, é o inverso da Segurança Pública.

Somente a investigação poderá determinar se o tiro que matou Ágatha realmente partiu da arma de um policial. O certo é que a intensificação desse tipo de operação fez com que o número de vítimas aumentasse muito.

Em julho, segundo informa o Instituto de Segurança Pública, ocorreu o maior número de mortes em confrontos com a polícia no estado desde que o levantamento começou a ser feito, em 1998. Foram 194 óbitos nessa circunstância, média de um caso a cada quatro horas. No mesmo período, a taxa de homicídios dolosos caiu 25%. Witzel, como lhe convém, comemora o segundo indicador e minimiza o primeiro.

A polícia comandada pelo governador já tinha ido ao Alemão na quarta-feira e deixou saldo de cinco mortes. Cansados, os moradores do lugar prometem protestar e subiram no Twitter a hashtag #AculpaEDoWitzel.

Não é apenas o governador, porém, o responsável pela necropolítica que faz da morte tema de debate para futuras conquistas eleitorais. Desgastada pela escalada da criminalidade nos últimos anos, a população fluminense que não mora nas favelas assiste aos embates sangrentos com diferentes graus de cumplicidade. Seja por estridentes manifestações de apoio em redes sociais ou pelo silêncio.

Mortes como a de Ágatha costumam quebrar essa frieza e causar comoção mesmo na parcela da sociedade que apoia as operações violentas. Alguns até vão chorar ao ler no noticiário ou ver na TV o avô da menina repetir que ela era "inteligente, estudiosa, uma garota de futuro". No roteiro já visto em tragédias semelhantes, Witzel dará as explicações que achar necessárias, mas nada indica que enviará à tropa orientação diferente da atual.

Como se viu antes, os dias seguirão, e tanto o rosto de Ágatha, que aparece sorridente em uma foto, quanto o drama de sua família serão esquecidos. Pelo menos até a próxima ocorrência parecida.

Fora das favelas, imersos na falta de empatia que é marca do nosso tempo, os moradores do Rio de Janeiro continuarão tocando a vida, alimentando a absurda ilusão de que a cada sobrevoo de helicóptero nas comunidades a cidade estará mais segura. Mesmo que as crianças desses lugares pobres continuem expostas a receber um tiro de fuzil.