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Análise: Após insuflar amor e ódio, julgamento do mensalão faz evoluir a democracia e a qualidade do debate

Thiago Anastácio*

Especial para o UOL

18/12/2012 06h00

Terminou ontem o julgamento de um caso criminal por excelência, daqueles que insuflam amores e ódios, que causam excitação pela concretização de certezas pré-concebidas e também horror por impor verdades que alguns (ou muitos) jamais aceitarão.

Desde que Roberto Jefferson afirmou a existência de um sistema da compra de votos no Congresso Nacional, articulado e proposto pelo Executivo (então de mandato recente do Partido dos Trabalhadores), o furor se instalou.

O maior rival do PT, o PSDB, acusou-o de despreparo na governança e de hipocrisia, já que fora o PT o maior ativista pela moralidade da vida pública no Brasil enquanto era oposição ao governo do PSDB.

 

Os críticos de processos judiciais que não leram todo o processo são tão capazes quanto os críticos literários que não leem os livros que criticam

O PT e seus simpatizantes contra-atacaram politicamente, afirmando que tal esquema se iniciara no mandato de Fernando Henrique Cardoso com a PEC [proposta de emenda à constituição] da reeleição. Relembraram a alcunha do procurador-geral da República Aristides Junqueira, que em gracejo era chamado de “engavetador-geral” da República, exatamente por não ter prosseguido qualquer investigação sobre aqueles supostos fatos. Mais tarde Aristides Junqueira afirmaria que o mensalão do PT também não existiu. Posição equivocada, segundo o STF. Também teria se equivocado lá atrás?

Porém, tal reação se revelou uma defesa política de péssima qualidade. Um erro jamais justificará o outro. E desde então muita coisa aconteceu.

Histórico de embates

O primeiro embate apaixonado foi o julgamento político de José Dirceu ocorrido na Câmara dos Deputados. Quando sua defesa – acertadamente – impetrou mandado de segurança no Supremo Tribunal contra ilegalidade naquele julgamento e quando um empate se avizinhou (discutia-se a inversão na produção das provas, pois as testemunhas de defesa foram ouvidas antes que as de acusação), um dos mais respeitados ministros da história, José Paulo Sepúlveda Pertence, foi bombardeado por inúmeras insinuações sobre estar ajudando “o amigo de um amigo seu” (José Dirceu e Lula, respectivamente), e em tom veemente, afirmou, não sem antes lembrar que defendeu dois ex-presidentes da República (FHC e Lula), seus amigos pessoais:

“Pelo Supremo Tribunal é que me preocupa a semana que vimos de viver, todos nós, porque membros da instituição, e, de modo particular, V.Exa. – seu Presidente – e eu mesmo, dado que, ausente na semana passada, me tornei o foco das expectativas – melhor diria, das exigências raivosas deste final de julgamento, que certa mídia se vem acostumando a instilar com presunção crescente.

Por isso, nesses dias, sequer me pouparam da dúvida de que, de fato, estivesse doente, porque – chegou-se a sugerir – a hora da minha doença anunciada teria sido conveniente ao amigo de um amigo meu...

Poupo, é claro, o Tribunal da resposta comprovada à mentira dissimulada em tão velhacas insinuações, que não ousam afirmar-se para não ter sequer a coragem da calúnia.

Mas não posso deixar a respeitabilidade deste Tribunal – instituição que tenho venerado e à qual dediquei, com honradez e sem nenhum pesar, décadas irrecuperáveis da minha vida -, sem o repúdio veemente e indignado a certo modo de fazer imprensa que, para fugir à responsabilidade do que não se pode sustentar, se esconde sob o manto protetor da insinuação que não se ousa assumir.”

 

O recado estava dado. Os ministros – ao menos os que compunham a Corte naquele período – não permitiriam ataques pessoais às suas posições jurídicas ou quaisquer “velhacas insinuações” e estabelecia-se um alicerce elementar às relações dos quatro poderes (incluo a imprensa): o respeito. O Supremo Tribunal Federal ainda era o Tribunal de Sepúlveda Pertence e ecoavam os quase 30 anos da magistratura de Moreira Alves, gigantesco ministro, conservador quanto à interpretação da lei e quanto às relações com a imprensa.

A defesa de cidadãos acusados pelo poder público e a informação dirigida a todos os cidadãos são irmãs siamesas que a horda das paixões políticas ainda ousa separar!

Adversários de visão do mundo, inabaláveis quanto às suas reputações éticas e intelectuais, faziam daquele tribunal um recinto de discussões ásperas, duras, mas de elegância e absoluto domínio do direito. Nada de ofensas! Ganhava-se pela capacidade intelectual, pelo saber dos livros e pelo saber argumentar. Jamais se pôde dizer que Pertence ou Moreira Alves travestiram-se de partes (acusação ou defesa) ou que quisessem ser ouvidos para além dos autos e por outros motivos que alheios à estrita decisão das causas.

Àquele tempo, José Dirceu já percebia a iminente perda de seu mandato e a execração pública materializava-se com as bengaladas de um cidadão aposentado (ato violento e por tal, patético). A denúncia foi recebida e o processo criminal foi instruído pelas provas até que o julgamento em si fosse agendado. Hoje, passada a complexa tormenta, seria impossível em menos de 2.000 ou 3.000 páginas a análise de cada uma das decisões. Nem seria adequado fazê-lo. Sem trânsito em julgado, qualquer advogado cometeria violação às regras éticas da profissão. Ademais, os críticos de processos judiciais que não leram todo o processo são tão capazes quanto os críticos literários que não leem os livros que criticam.

Ataques às defesas

Um fenômeno que não é novo e sim uma quinquilharia histórica – que certas vontades políticas ainda nos impõem em pleno ano de 2012 – são os ataques à defesa. Estes ataques indicam a falta de compreensão do que é estado democrático de direito e tornam-se mais graves quando lançados por jornalistas: ambos os exercícios profissionais que são o primeiro alvo dos ditadores e objetos indiciários do grau evolutivo das democracias. A defesa de cidadãos acusados pelo poder público e a informação dirigida a todos os cidadãos são irmãs siamesas que a horda das paixões políticas ainda ousa separar!

A unanimidade não faz bem a ninguém, muito menos às carreiras jurídicas

Seja por atuações consideradas abaixo das expectativas, seja pelo uso de instrumentos legais, esses ataques aos advogados revelaram que ainda não temos o Estado como um prestador de serviços de poderes limitados pela lei (graças à sua nefasta história de abusos e inações), mas sim como o representante do que certo e errado, de poder quase divinal e de certos funcionários públicos tratados nas ruas como se fossem sacerdotes de Osíris. Será mesmo? Proponho a reflexão.

Quem aceitaria um hospital público de erros em diagnósticos na faixa dos 30%? Pois esse é o percentual de erros do Ministério Público na AP470. Algum engraçadinho pouco atento à lei dirá: “mas a defesa errou mais”. Sim, mas a defesa deve defender de alguma forma, mas sempre defender, enquanto o Ministério Público poderia pedir absolvições, discurso que é parte do péssimo argumento de autoridade de muitos promotores em todo país que afirmam estar agindo por convicção ao pedir condenações, pois caso contrário, se pensasse diferente, poderiam pedir a absolvição!

O julgamento dos recursos requentará os debates apaixonados que agora se acalmarão, e novamente a imprensa e redes sociais travarão argumentos e posições, fato que só faz evoluir a democracia e a própria qualidade do debate

A unanimidade não faz bem a ninguém, muito menos às carreiras jurídicas.

De qualquer modo, muito ainda acontecerá. O julgamento dos recursos requentará os debates apaixonados que agora se acalmarão, e novamente a imprensa e redes sociais travarão argumentos e posições, fato que só faz evoluir a democracia e a própria qualidade do debate.

Por ora, o resultado do julgamento parece ser: o Estado comprou votos do próprio Estado, [réus] foram investigados pelo Estado, acusados pelo Estado e foi o Estado que condenou cidadãos.

Como diriam os franceses: “Quando a política entre no recinto do tribunal, a Justiça foge pela janela para ganhar aos céus”. Espero que a história demonstre que a política, para essa festa, perdeu o bonde.

* Advogado criminalista em São Paulo