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Leia a transcrição da entrevista de Marco Aurélio Garcia ao UOL e à Folha

Do UOL, em Brasília

19/10/2013 06h00

Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, participou do "Poder e Política", programa do UOL e da Folha conduzido pelo jornalista Fernando Rodrigues. A gravação ocorreu em 18.out.2013 no estúdio do Grupo Folha em Brasília.

 

Marco Aurélio Garcia - 18/10/2013

Narração de abertura: Marco Aurélio Garcia tem 72 anos. É professor aposentado de história da Universidade de Campinas.

Marco Aurélio Garcia graduou-se em Filosofia e Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes e vereador de Porto Alegre no início da década de 60, pelo antigo Partido Republicano.

Marco Aurélio Garcia exilou-se no Chile e na França durante a ditadura e, ao voltar ao Brasil, fundou o Partido dos Trabalhadores. Em 2006, ocupou a presidência da legenda. Foi secretário de Cultura de Campinas, na gestão de Jacó Bittar, e de São Paulo, durante o governo Marta Suplicy.

Coordenou o programa de governo de 3 campanhas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da campanha da presidente Dilma Rousseff.

Marco Aurélio Garcia é assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais desde o início do governo Lula.

Folha/UOL: Olá internauta. Bem-vindo a mais um "Poder e Política - Entrevista". Este programa é uma realização do jornal Folha de S.Paulo e do portal UOL. A gravação é realizada aqui no estúdio do Grupo Folha, em Brasília.
O entrevistado desta edição do Poder e Política é o professor Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais.

Olá, como vai o senhor, tudo bem?
Tudo bem.

Mudou alguma coisa na condução da política externa brasileira no governo Dilma em relação ao governo Lula?
Acho que, em primeiro lugar, mudou o mundo. Essa é a questão mais importante. Evidentemente essa mudança no mundo acarretou, seja na parte da presidenta, você sabe que o presidente tem, no Brasil, uma importância muito grande na condução da política externa, seja no ponto de vista do Ministério de Relações Exteriores também algumas alterações. Mas evidentemente não se pode afastar o fator subjetivo. Contexto mundial.
O contexto mundial de um lado, mas o fator subjetivo também. Quer dizer, o fato de que, evidentemente, o estilo de condução da presidenta Dilma é diferente do estilo de condução do presidente Lula, aliás é normal que seja. Da mesma forma que o [ex-ministro] Antônio Patriota, que até pouco tempo ocupava as funções de chefia do Itamaraty, também tinha um estilo distinto do Celso Amorim. Agora, eu acho que em substância nós não tivemos mudanças maiores. Eu acho que continuou aquela linha de política externa que foi inaugurada em 2003.

Mas é possível elencar um, dois ou três itens que, por conta de fatores diversos, se alteraram de Lula pra Dilma?
Eu acho que passou-se a dar uma importância maior aos termos econômicos, do ponto de vista internacional. Isso não decorre não só do fato da presidenta ser uma economista e ter um interesse enorme pelos temas econômicos, mas também pelo fato das questões econômicos começaram a ocupar um lugar mais importante nas relações internacionais. Você veja, nós tivemos no final do governo Lula, quer dizer, fim 2008, os efeitos da crise do Lehman Brothers. Isso se estendeu, praticamente começou a incidir em 2009, 2010, mas os efeitos mais diferidos começaram, efetivamente, a ocorrer já no governo Dilma e ela teve que se confrontar com essa questão. Uma própria instituição como os Brics [grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e China], por exemplo, que no governo anterior tinham uma dimensão bem mais acanhada, passou a ter um papel mais importante. Esse seria um dos elementos diferencias significativos.

O Brasil acaba de fechar um contrato no valor, aproximado, de R$ 2 bilhões com a Rússia para comprar baterias antiaéreas, desse país, a Rússia. Há indícios também de que o Brasil pode participar da produção de um caça, que está sendo desenvolvido por Moscou junto com a Índia. Qual o significado dessa operação pra política externa brasileira?
Bom, em primeiro lugar, eu acho que tem uma dimensão interna. Você veja o seguinte, nós no final do governo Lula aprovamos um documento de grande importância, que foi a Estratégia Nacional de Defesa. Essa Estratégia Nacional de Defesa ela estava absolutamente impregnada pela nossa visão de mundo. Ao propor, por exemplo, uma estratégia dissuasiva, isso estava significando uma redefinição das nossas relações com a América do Sul, América Latina, de uma maneira geral. Ora, uma consequência óbvia dessa nova Estratégia Nacional de Defesa, era uma reorganização do armamento brasileiro, do armamento de defesa. Mais do que isso, inclusive, nós estamos naquele momento colocando a necessidade de uma política industrial de defesa que, inclusive, não deveria se restringir exclusivamente ao Brasil, mas deveria abranger o conjunto da América do Sul. No documento que nós aprovamos de constituição do conselho de defesa sul-americana, que teve adesão de todos os países da região – isso é muito importante – inclusive, países que não adeririam, mas que vieram, finalmente, a participar do conselho. Aí está colocado como uma grande importância também, não só da ideia de posição dissuasiva, mas também de uma política industrial de defesa da região.

Mas a escolha do país que será o fornecedor, dos equipamentos, obviamente atende a critérios técnicos muito objetivos e também a uma parte política. Nesse sentido, o fato de ter sido a Rússia o país escolhido pra fornecer os equipamentos, que impacto tem, de novo, na política externa, na sua opinião?
Eu acho que, simplesmente, põe em evidência o caráter de que o Brasil tem uma política externa independente e que, portanto, ele não está alinhado aqui ou ali. Nós temos opções das mais variadas. Se você for examinar outras opções do campo da defesa você vai ver coisas que são feitas com os Estados Unidos, há coisas muito importantes que estão sendo feitas com a França, todo o programa do submarino nuclear e dos submarinos convencionais estão sendo feitos com a França. Nós temos com a Espanha, também algumas coisas no âmbito naval. Com o Reino Unido e, evidentemente, com a Rússia.

Para o Brasil, do ponto de vista estratégico, é melhor fechar parcerias com países dos Brics ou com Europa Ocidental e Estados Unidos?
Eu acho que pro Brasil é melhor fechar parceria, em primeiro lugar, com aquelas países que tenham equipamentos de grande qualidade e ajustados à nossa estratégia de defesa e, por outro lado, com países que nos assegurem o uso soberano desses equipamentos. Isso é uma coisa importante. Nós não podemos ficar dependentes. Eu sempre dou um exemplo: Se eu me sinto ameaçado, aqui em Brasília, e decido comprar um revólver – estou dizendo uma hipótese absurda, eu nunca comprei um revólver –, o vendedor não pode me dizer “olha, eu lhe dou o revólver, mas as balas, quando o senhor se sentir ameaçado, o senhor telefona pra minha loja que eu lhe mando as balas pro senhor carregar o revólver e usar”. Não pode ser assim.

Episódios recentes podem ter aumentado a desconfiança que existe, nesse caso de transferência de tecnologia e parceria, entre Brasil e Estados Unidos, na sua opinião?
Você está se referindo à bisbilhotice?

A esse episódio de espionagem que agências de inteligência, vamos dizer assim, dos Estados Unidos tiveram em diversos países, inclusive no Brasil.
Eu acho que pode ter a sua influência, mas nós estamos na expectativa de que sejam dadas explicações e, sobretudo, que sejam feitas correções necessárias. Se isso for ocorrer ou não, eu não quero antecipar. Mas sem dúvida é um pouco um alerta. Mas eu acho que, de maneira nenhuma, deve ser entendido que a partir disso nós vamos interromper relações. Não, nós vamos continuar com nossas relações amplas, porém, evidentemente, esse episódio nos faz pensar.

Desde a época passada, 2001, tem esse programa que visa a renovar os caças da Força Aérea Brasileira, mais de dez anos. Na fase final, aí da escolha, ficaram três países: França, Estados Unidos e Suécia. No caso dos Estados Unidos, na sua avaliação, há um ruído a mais agora que dificulta fechar um negócio com eles?
Olha, eu diria que há um ruído a mais. Agora, essa é uma questão que pela sua importância cabe, efetivamente, a uma avaliação mais concreta do comandante, ou no caso, da comandante-em-chefe das Forças Aéreas, no Brasil, que é a presidenta. Quer dizer, esse tema foi se arrastando. O governo Fernando Henrique passou para o governo Lula, o governo Lula chegou em um determinado momento a dar uma indicação de qual seria a preferência, depois resolveu sustar essa decisão. Essa decisão, é uma decisão que está em aberto. Pela sua importância, pela sua transcendência, eu acho que quanto menos gente falar sobre o assunto melhor. Porque é uma decisão que cai nas mãos da comandante-em-chefe das Forças Armadas.

Agora, ainda assim, esse episódio da espionagem aqui no Brasil, que também ocorreu em outros países. O Brasil, oficialmente por meio de seu governo, solicitou explicações do governo norte-americano que até agora não as forneceu. No momento, imagina-se que isso eventualmente nem ocorra. Essa hipótese não está descartada: que nunca venha uma explicação totalmente satisfatória. Isso daí seria nocivo para as relações, inclusive, nesse caso da compra dos caças?
Olha, o chanceler Patriota usou uma expressão que eu acho interessante. Ele disse que isso criava uma sombra nas nossas relações. Como nós somos tropicais e gostamos de sol, eu acho que essa sombra deveria ser eliminada. O presidente Obama, na conversa telefônica, longa – a imprensa disse que foi de 20 minutos, foram 42 minutos – que teve com a presidenta Dilma, ele reconheceu que...

O senhor participou da conversa?
Eu assisti, estive junto. Nessa conversa, ele, reconhecendo que tinha sido criado, digamos, uma situação constrangedora para o governo brasileiro disse “olha, nós vamos investigar, vamos apurar. Tem coisas que nem eu mesmo tenho conhecimento e controle”. Agora, como eu sei que essa investigação demorará algum tempo, eu acho que isso pode ter uma incidência sobre a nossa visita.

Digamos que o governo norte-americano demore muito ou nem dê a explicação que o governo brasileiro considere satisfatória. Essa sombra nas relações permanece e o efeito especifico pra compra dos caças qual seria?
Olha, veja bem, os Estados Unidos é um país, desnecessário dizer a importância que os Estados Unidos têm no mundo, mais ainda a importância que ele tem na região. Nós somos os dois grandes países das Américas. Nós devemos de alguma maneira, e eu acho que haverá um esforço da parte do governo brasileiro e tenho a impressão que por parte do governo norte-americano, de resolver essas tensões que existem entre Estados Unidos e Brasil e que existem em função, basicamente, desses acontecimentos que foram, recentemente, revelados. Eu não tenho condições de avaliar, eu insisto nisso. Eu acho que uma questão que tem que ser decidida no mais alto nível. Eu se for solicitado darei minha opinião, como já dei em outro momentos sobre esse tema. Mas eu acho que isso corresponde fundamentalmente ao ministro da Defesa, mas sobretudo à comandante-em-chefe.

O senhor acha plausível que em algum momento, em um mês, dois meses, um ano, os Estados Unidos se dirija ao Brasil e diga: “Houve a espionagem. O que foi espionado foi isso, aqui está tudo o que foi espionado, e nós nos comprometemos, pedimos desculpa e nunca mais vamos espionar o Brasil”. Isso seria, basicamente, o que a presidente Dilma demandou. O senhor acha plausível que os Estados Unidos venha e cumpra todos esses requisitos?
Os Estados Unidos já pediram desculpas em outras ocasiões. Assim, eu acho que pode ser plausível. Os Estados Unidos estão passando hoje por...

Mas revelar tudo que eles espionaram e, dois, prometer que nunca mais vão espionar?
Isso é o que nós esperamos.

Mas o senhor acha plausível isso?
É o que nós esperamos.

O senhor falou que assistiu à conversa da presidente Dilma com o presidente Barack Obama, durou aproximadamente 42 minutos. Satisfaça a curiosidade de quem nunca acompanhou isso, a maioria dos brasileiros. Esses telefonemas como eles se dão, operacionalmente? É em viva voz, com tradutor, como funciona?
É em viva voz e com um tradutor de lá e um tradutor daqui.

Fala um presidente, o presidente americano fala em inglês, o tradutor daqui, ao lado da presidente...
Não, não. O tradutor de lá. A praxe diplomática é a seguinte: se eu sou presidente eu tenho o meu tradutor, porque o meu tradutor é quem exprime a minha voz, não é? No caso concreto a presidenta entende bem inglês, fala um pouco, mas de qualquer maneira, nessas ocasiões, nós preferimos, digamos, tendo em vista a natureza da conversação, o formalismo da tradução. Então, portanto, havia o tradutor da Casa Branca, que aliás é um tradutor que vem do tempo do Bush, é um brasileiro muito bom tradutor. E nós tínhamos aqui um tradutor. Nós temos um tradutor de inglês e também de outras línguas, outros tradutores. No caso aí foi um diplomata que trabalha comigo, que teve que ser improvisado. Tendo em vista que a conversação foi marcada de uma hora para a outra. Foi no dia em que houve aquele atentado, inclusive, contra o prédio na Marinha, lá nos Estados Unidos.

A conversa durou 42 minutos, então com tradutores de parte a parte no viva voz. Quem acompanha, nesses casos, a reunião? Além da própria presidente, o senhor que é assessor especial pra assuntos internacionais, um tradutor...
E eu tenho em geral um ou dois tomadores de nota, dependendo. Em algumas circunstâncias se o ministro está interessado ele vem. No governo anterior o ministro participava mais. Nesse governo o ministro Patriota um pouco menos, mas em geral eu estou sempre...

Essas conversas ficam gravadas?
Não, elas não ficam gravadas. Nós fazemos um minuta delas bastante boa, diga-se de passagem.

Não seria prudente gravar?
Eu gostaria que sim. Até porque como professor de história, me interessaria ter essa documentação.

Há alguma razão pela qual não são gravadas?
Não, não. É um praxe que não se adotou. Eu acho que a essa altura já não teria muito efeito. Mas nós temos sim notas dessas conversas.

Quanto tempo depois de ocorridas essas conversas de alto nível do presidente da República com seus contrapartes de outros países... quanto tempo essas minutas devem ficar em reserva e guardadas em sigilo?
Aí é conforme a lei de acesso à informação.

Eu não tenho notícia de que tenha sido divulgadas as do passado.
Na maioria dos casos nós qualificamos como secretas essas notas. Salvo quando são...

Secreta são 15 anos.
É isso, então... porque, evidentemente, se o presidente decidir em determinado momento liberar isso será por sua conta.

A presidente fez bem em cancelar a visita de Estado que faria agora, em outubro, para os Estados Unidos diante do que aconteceu?
Acho que sim.

Não haveria alternativa?
Não. Acho que não porque a visita ficaria absolutamente contaminada por esse assunto. Quer dizer, não tem muito sentido que a presidenta se reúna no Salão Oval – eu já estive em algumas reuniões no Salão Oval – em geral, nós procuramos sempre ter uma agenda mais expandida. Imagine você essa conversa dando voltas em torno do problema da bisbilhotice e, com uma particularidade, sem que o governo americano estivesse pronto para dar resposta. Aliás esse foi um dos argumentos que o Obama disse “eu gostaria muito que venha, mas entendo”.

A conversa já começou assim ou no começo dela se procurou encontrar uma saída e se evoluiu pra decisão de adiar?
Não, eu diria que estava mais ou menos subentendido, desde o começo, seja da parte dele, seja da nossa parte. Obviamente a ele interessaria que essa visita ocorresse, mas não...

Havia uma impressão durante o governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva que ele se deu melhor, se relacionava de maneira mais amena, com o presidente George W. Bush do que com o presidente Barack Obama. É correta essa impressão?
Olha eu não sei. Acho que aí há um problema temporal também. O presidente Lula coincidiu muito mais tempo com o Bush do que com o Obama. Mas as conversas dos dois, que eu presenciei foram muito, muito, muito calorosas, do presidente Lula e do presidente Obama. Eu me lembro, em Áquila, durante a reunião ampliada do G8, nós tivemos um encontro muito caloroso. Ocasião, na qual, não sei se foi dito até agora, o Obama pediu para o Lula ajudá-lo na questão no Irã.

Que foi inclusive aquele episódio em que o presidente atuou. Teve aquela carta inclusive, né?
Depois dessa conversa teve uma carta, inclusive.

Por que acabou sendo mal sucedido aquilo lá? A que o senhor credita aquele episódio e faça uma recapitulação para todos entenderem do que se trata.
Não, veja bem, o presidente Lula, recapitulando. O presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, a pedido do Mahmoud Ahmadinejad se encontrou com ele em Nova York. Conversaram sobre uma série de questões. Eu me lembro que um dos temas que foi evocado foi, o Lula, no seu estilo muito franco disse pra ele: Escuta, que maluquice é essa do holocausto? “ah, não é isso”, “ah, então se não é isso, diga que não é isso.” Mas enfim, em substância o que foi tratado ali foi o seguinte: precisamos encontrar uma solução para o problema nuclear. O presidente iraniano reiterou que não havia disposição de produzir bomba atômica, etc. etc. e a partir daí houve uma disposição do governo brasileiro de procurar a fazer sondagens...

Mediar um acordo?
Mediar um acordo em cooperação com os turcos. Porque o primeiro ministro da Turquia também estava muito empenhado nisso. Nessa reunião do G8 ampliada, em Áquila na Itália, teve uma conversa muito simpática. O presidente Lula deu de presente uma camiseta da Seleção Brasileira, com assinaturas de todos os jogadores, para o Obama. Enfim, foi uma conversa extremamente cordial e o Obama nesse momento pediu isso. E nós continuamos a fazer as demais... o ministro Amorim fez várias viagens a Turquia e ao Irã, reservadas, etc. etc. até o momento em que nós consideramos que a coisa estava mais amadurecida, mas não definida. Eu me lembro que nós fizemos uma viagem triangular, que começou por Moscou, continuou no Qatar e terminou no Irã.
Depois ela continuou, depois teve um desdobramento em Madrid, durante a reunião Europa-América Latina. E nessa ocasião, o presidente da Rússia era o atual primeiro ministro, não era o [Vladimir] Putin, era o [Dmitri] Medvedev. E o Medvedev disse que estava cético sobre as possibilidades de um acordo e nos revelou que tinha havido uma pressão muito forte dos americanos para que esse acordo não se materializasse porque eles sabiam que o presidente Lula ia passar por Moscou. No Qatar foi a mesma coisa. O emir mencionou que tinha havido longuíssimas chamadas telefônicas, anteriores à presença do Lula, em Doha, para que não houvesse essa... para que não se materializasse o acordo. Bom, quando nós chegamos em Teerã houve uma reunião, enfim, essas reuniões protocolares. Depois nós tivemos um encontro com o líder supremo, mas o encontro com o líder supremo foi mais discussão sobre temas mundiais. Enquanto que com o presidente Ahmadinejad se avançou, além de uma agenda bilateral entre os dois países, se avançou na questão do acordo.
Nós tínhamos conversado, meses antes, com o presidente [Nicolas] Sarkozy sobre isso. E o presidente Sarkozy disse “olha, eu não tenho a possibilidade de fazer um acordo porque os iranianos prenderam uma professora francesa lá”. E o Lula disse “eu vou me empenhar para que eles liberem”. E, efetivamente, houve uma série de iniciativas nossas. E nesse dia, na primeira reunião que nós tivemos em Teerã o presidente Ahmadinejad disse “olha, eu quero lhe dar uma boa notícia, presidente Lula. Há poucos minutos embarcou para Paris a professora francesa.” Bom, mas de qualquer maneira as coisas estavam um pouco paralisadas. Nós tínhamos um jantar, à noite, de conclusão. O chanceler Amorim estava em negociações, então fui eu pra mesa com o Lula e com o Ahmadinejad e um de seus assessores. Em um certo momento o Lula disse “Escuta, vamos ou não vamos chegar a um acordo sobre a questão nuclear?” e ele disse “eu acho que sim porque está chegando, nesse momento, a Teerã, o primeiro ministro da Turquia”. Nós ficamos muito otimistas e, efetivamente, no dia seguinte, com algumas dificuldades ainda, houve a assinatura do acordo.
O Amorim telefonou um pouco depois para a Hillary Clinton, que era a secretária de Estados dos Estados Unidos, e informou, E ela reagiu um pouco... E o Amorim disse “Escuta, o acordo é muito próximo do que o presidente Obama expressou na sua carta”. Houve um silêncio e o ministro ficou com a nítida impressão de que a secretária de Estado não conhecia a carta. Depois disso nós tivemos o quê? O Conselho de Segurança votou as sanções, o que efetivamente desfez qualquer possibilidade, e a impressão que eu tenho é que os acordos que vão ser feitos agora, provavelmente, sejam aqueles que nós propusemos há dois anos. Aliás o [jornalista da Folha de S.Paulo] Clóvis Rossi escreveu algo a respeito há alguns dias.

Agora, e tudo aquilo aconteceu, o senhor atribuiria a quem o obstáculo maior para que aquilo não tenha sido efetivado naquela época? Ao Obama, à Hillary Clinton, a um preconceito dos Estados Unidos em relação ao Brasil e Turquia terem sido protagonistas, o que foi?
Eu acho que houve um preconceito das grandes potências em geral.

Em relação do protagonismo de Brasil e Turquia?
Exatamente.

Das grandes potências ou dos Estados Unidos?
Dos Estados Unidos, mas também da França, com quem nós tínhamos relações muito boas, naquele momento. Muito boas. Eu acho que é aquela ideia de que isso aqui é coisa de cachorro grande, entende? Cachorro pequeno não se mete nessa briga aqui.

O senhor diria que esse preconceito hoje persiste?
Eu acho que diminuiu um pouco. Mas ele ainda persiste.

O senhor acha que, nesse caso, esse preconceito ele não é uma coisa abstrata. Ele precisa se materializar, pela ação, pelas palavras de dirigentes de algum lugar. No caso dos Estados Unidos foi o próprio presidente Obama e a então secretária Hillary Clinton ou é errado dizer isso?
Eu acho que é difícil dizer, né? Você conhece melhor os Estados Unidos do que eu. E sabe concretamente que a política externa, nos Estados Unidos, ela tem muitos vetores. Eu sem ser um estudioso da política externa norte-americana experimentei isso concretamente. Por exemplo, sobre questões hemisféricas, sobre esse tema mesmo. Não só nós víamos diferenças entre a posição da Casa Branca, do Departamento do Estado, do Departamento de Defesa, pra não falar de outros departamentos. Eu, por exemplo, tinha uma relação muito estreita com o National Security Advisor James Jones. Ele me telefonou, inclusive, no dia da votação do Conselho de Segurança [da ONU] pedindo que nós votássemos a favor das sanções. E lhe disse “olha, seria uma enorme desmoralização pro Brasil depois que tudo que fez votar as sanções. Então, você me desculpe...” mas em outros episódios nós também conversamos muito e ele tinha uma visão muito aberturista.

O senhor tá dizendo que o preconceito é latente e enraizado dentro da administração pública federal dos Estados Unidos e que não é só o próprio presidente, no caso, Barack Obama, e a secretária de Estado. Eles são compelidos a agir dessa forma, é isso que o senhor disse?
Isso. Pode ser que seja assim, mas eu acho que tem um problema...

Mas aí é muito fácil. Daí não vai mudar nunca.
Muda.

Porque se o presidente não toma a frente e assume posições menos preconceituosas, nesse sentido que o senhor diz, então...
Veja bem o seguinte. Há duas coisas. Eu acho que, em primeiro lugar, os Estados Unidos têm um problema de um sentido de missão no mundo. Isso eu não preciso fazer nenhuma análise do discurso oficial dos Estados Unidos. Qualquer um deles está impregnado desse sentido. Então eu acho que isso atenta muito contra uma visão multilateral, primeiro. E em segundo lugar, os Estados Unidos têm impulsionado com êxito, quanto ele assume algo de multilateralismo, têm impulsionado muito uma visão de um diretório da política mundial. Esse diretório da política mundial foi o G7, depois o G8. Em momento agudo de crise, que foi em novembro de 2008, o presidente Bush convocou aquela reunião, em Washington, 15 de novembro, que era uma reunião que iria se debruçar fundamentalmente sobre as questões econômicas. Naquela momentos o G20, o Lula foi um dos que propôs que fosse o G20, que já existia, não mais em nível ministerial, mas em nível presidencial. Que assumisse essas funções de debater. Naquele momento, os Estados Unidos estavam um pouco fragilizados. O presidente Bush estava em fim de mandato. O presidente Obama já tinha sido eleito. De uma certa forma, a conta da crise estava sendo debitada na administração republicana. Enfim, estava um pouco fragilizado. Mas foi possível, naquela reunião, na reunião de Londres, na reunião de Pittsburgh, do G20, de uma certa maneira criar alguns mecanismos, definir algumas metodologias que tiveram uma certa eficácia na redução dos riscos de uma crise mais catastrófica. Depois disso eu acho que o G20 foi perdendo um pouco a sua eficácia.

Até com o arrefecimento dos efeitos da crise de 2008.
Até com isso. Agora, ele tem uma agenda. O multilateralismo do G20 se restringe, quase que exclusivamente, a uma agenda econômica.

O senhor acha que falta mais comprometimento por parte do presidente Barack Obama em caminhar para uma posição à favor do multilateralismo ou não?
Eu acredito que ele queira fazer. E nós temos alguns indícios disso. O discurso que ele fez no Cairo, que ele fez na Universidade de Beijing. Eram discursos que mostravam isso. Eu teria que ser um analista mais fino da política americana para lhe dizer, não de forma simplificada, que eu acho que existe constrangimentos muitos grandes que impendem que os Estados Unidos assumam uma posição mais clara nesse sentido. E seria muito importante porque é uma país com reservas...

O senhor acha que é mais fácil para um democrata ou para um republicano caminhar nessa direção?
Eu não sei hoje em dia. O passado nos mostra que os republicanos fizeram piruetas mais audazes do que os democratas. Lembramos que o [Richard] Nixon foi quem fez toda aproximação com a China. Eu acho que isso tá muito ligado, entre outras coisas, a certos temas de política interna. Vou dar um exemplo, um exemplo que é menor, mas que nem por isso deixa de ser irrelevante: por que os Estados Unidos mantem essa política absurda vis-à-vis Cuba, hoje? Durante um longo período, que parece que estaria mudando, isso responderia fundamentalmente a fatores de natureza interna. Eram alguns Estados-chave para quem quisesse ganhar a eleição teria que se posicionar dessa maneira. Eu acho que tem um conjunto de determinações ali que não facilitam concretamente uma inflexão muito grande. Eu acho que hoje nós estamos assistindo também a um problema, você me dirá melhor, com melhor conhecimento, um problema grave que é um certo impasse institucional decorrente de um choque muito forte de ideologias. Bem, na democracia o conflito não é só é necessário como explicável. Ele é um fator de revigoramento da democracia. Não há democracia se não há conflito. Mas quando esse conflito tem uma incidência sobre o funcionamento das instituições aí é grave. Esse episódio recente agora do Congresso, que não está encerrado, diga-se de passagem, demonstra claramente isso.

A presidente Dilma Rousseff fez um discurso muito duro na ONU a respeito do caso de espionagem dos Estados Unidos sobre comunicações brasileiras, inclusive as dela. E propôs um plano, no âmbito da ONU, mundial, pra governança da internet, enfim, e evitar situações do gênero. O senhor acha possível, exequível que a ONU consiga, primeiro discutir, e segundo, implantar tal plano?
Em primeiro lugar eu acho que é necessário. A primeira coisa quando você toma iniciativa política você tem que saber se essa iniciativa é necessária ou não. Eu acho que ela é necessária.

Mas a ONU como ela é hoje, nós conhecemos, tem condições de fazer isso?
Bom, se ela não tiver condições não serei eu quem vai falar da ONU aqui. O presidente Obama esses dias falou, mas eu não quero falar. Aliás, esse é um dos problemas também. Eu me lembro de uma conversa, vou fazer pequeníssima digressão aqui, na conversa que nós tivemos com o presidente Bush, em Camp David, ele disse “olha, a ONU se fizer um plebiscito aqui a maioria da população americana propõe a saída dos Estados Unidos da ONU”. Bom, eu acho de qualquer maneira que pode ser ruim com a ONU, mas será muito pior sem ela. Porque aí nós estaremos efetivamente vivendo um pouco sob absoluta ausência de normas. Essas normas elas são pouco respeitadas, mas em alguns casos elas são respeitadas. Essa recente crise na Síria demonstra isso. Foi um enfrentamento que não tinha solução no âmbito do Conselho de Segurança e que permitiu uma solução melhor do que aquela que os Estados Unidos isoladamente estavam propondo no primeiro momento. Então o que eu quero dizer é o seguinte: eu acho que nós temos que tentar. Eu acho que a política externa ela se faz também de valores, de iniciativas e isso que muitas vezes se reclama, pois bem, temos aí uma iniciativa. Vamos dizer que ela pode se dar âmbito da ONU, excelente. Se ela não puder dar no âmbito da ONU, em algum âmbito ela tem que ser tentada.

Nesse caso específico, aí da espionagem, ninguém é ingênuo e sabe que vários países têm serviço de espionagem e bisbilhotam, inclusive os seus aliados. No caso do Brasil houve um descuido, no sentido de se precaver contra a isso, nos últimos 10, 20 anos?
Veja bem, eu acho que isso é possível, possível não, é evidente que isso houve... mas eu gostaria de tocar esse argumento. Você sabe por quê?

Por quê?
Porque esse argumento tem sido muito utilizado, entende, para de uma certa forma relativizar a bisbilhotice, a espionagem. Entende? Vamos admitir que nós não tivéssemos tomado todas as providências necessárias para proteção, que não são fáceis de tomar. Agora isso não quer, de maneira nenhuma, isso não pode ser utilizado como um argumento para relativizar a gravidade de nós termos espionado o nosso governo como um todo, a presidenta como um todo, a Petrobras, outras empresas, com argumentos do tipo isso “ah, não, isso é uma ação pra precaver do terrorismo”.

Aliás, o senhor acha que o objeto principal era qual? Político ou econômico?
Eu acho que é global, abrangente. Abrangente, uma ideia de saber tudo sobre todos.

E sobre qualquer assunto?
Sobre qualquer assunto.

Não havia um interesse mais comercial econômico?
Também, seguramente.

Mas ele era prevalente, o senhor acha?
Não sei se prevalente, porque tem que ver concretamente que interesses estavam convergindo nesse processo de espionagem. A NSA, tenho entendido que é um braço da espionagem. Agora, os insumos para essa espionagem nós vimos aqui, quando foi divulgado. O [Edward] Snowden divulgou uma carta do embaixador dos Estados Unidos no Brasil agradecendo à NSA por ter espionado a delegação brasileira nas Nações Unidas no momento da votação do momento da crise com o Irã. Então quer dizer que a NSA operou. Aliás, nas conversas que houve, que o embaixador Guilherme Patriota, que trabalhava comigo, que foi coordenando a primeira delegação aos Estados Unidos que houve com a NSA, inclusive com o patrão da NSA, ele dizia isso “eu opero, eu opero”. Mas os insumos chegam dos mais variados setores.

Aquilo que eu perguntei sobre a necessidade de o Brasil ter um sistema capaz de, pelo menos, minimizar o risco de ser espionado de maneira alguma justifica a espionagem, claro. Espionagem tem que ser combatida. Agora, mencionei porque, por exemplo, o Pano Nacional de Inteligência está há anos parado ali dentro do Palácio do Planalto esperando uma ação da presidente da República. O senhor não acha que faltou aí, sem querer justificar a espionagem, mas faltou realmente um...
Eu não conheço detalhes desse plano, até porque me parece que ele deveria ser de natureza mais reservada. Eu acho que nós vamos ser impelidos, aliás já fomos e estamos tomando uma série de medidas no sentido de minimizar. Eu tenho claro que talvez seja muito difícil você eliminar completamente os riscos de ser espionado. Você pode reduzir enormemente e quando isso ocorrer, realmente, fazer a denúncia necessária.

O senador boliviano Roger Pinto Molina, que fugiu para o Brasil com auxílio do diplomata brasileiro Eduardo Saboia, foi nesta semana, quarta-feira, ao Senado, para um encontro com a bancada evangélica. Falou sobre tráfico de drogas, pediu apoio, etc. Molina, como se sabe, está pedindo refúgio aqui ao Brasil e aguarda uma resposta do governo. É correto ele se movimentar dessa forma, visitar o Congresso, pedir apoio como ele fez essa semana?
Não acho que seja, não acho que seja...

Ele errou ao ir ao Congresso pedir esse apoio?
Acho. Acho que sim. Eu já fui asilado e sei que uma das normas do asilo é boca calada.

O senhor acha que o prejudica nesse processo de pedido de asilo ao Brasil?
Eu não quero dizer isso, mas eu acho que foi uma conduta errada. Uma conduta errada dele. E tenho a impressão de que não é uma boa coisa.

O Brasil deve conceder asilo ao Molina?
O Brasil tinha concedido asilo. Ele saiu do asilo quando saiu da embaixada de forma irregular e então ele está aqui com asilo provisório. Isso vai decidido pelo Conare, o Conselho Nacional para os Refugiados. Então eu não quero opinar sobre isso porque o organismo deve ter todas as peças do dossiê.

Mas o senhor acha que é uma hipótese real, inclusive, não conceder, ter que devolvê-lo para a Bolívia, ou sugerir que ele peça asilo para outro país...
Devolvê-lo para a Bolívia não. Devolvê-lo para a Bolívia nós não devolveremos.

Mas enviá-lo a outro país onde ele possa pedir asilo?
Há duas possibilidades: ou ele pode ter asilo aqui ou ele pode ir para outro país. Analisando estritamente as hipóteses.

Devolvê-lo à Bolívia não?
Não.

Qual o saldo desse episódio para a política externa brasileira? Passou a imagem de uma certa falta de comando na política, no Itamaraty, vamos dizer assim. É correta essa imagem que acabou ficando?
Veja bem, o episódio do pedido de asilo dele é uma questão de... o pedido de asilo dele se arrastou por um período muito longo. Eu, em um primeiro momento, a informação que eu tinha, era que o governo boliviano estaria disposto a dar o salvo conduto.

E não deu?
Nesse particular, a minha opinião era que devíamos ter dado o asilo. A questão depois evoluiu numa outra direção. Não foi dado [o salvo conduto]. Eles alegaram uma série de razões, inclusive de ordem jurídica, para não dar, e criou-se um impasse. Esse impasse só poderia ter sido resolvido com base em uma negociação.

Por que a negociação não se deu?
Em primeiro lugar houve uma proposta que nós não aceitamos do governo boliviano ou de ministros do governo boliviano, não sei se era uma proposta do presidente [Evo] Morales, mas pelo menos um ministro, que ele fosse retirado do jeito que foi retirado, finalmente. E a presidenta foi muito clara, nesse particular, e disse “de jeito nenhum”.

Houve de fato essa oferta?
Houve.

“Tira ele daqui e a gente faz vista grossa.”
E nós dissemos “de jeito nenhum”.

Como foi feita essa oferta? Por telefone, por carta...
Não. Houve uma missão aqui de um funcionário de governo que fez essa proposta. Nem fez para o Itamaraty, importante dizer isso.

Fez para quem?
Para uma outra área do governo.

Do governo brasileiro?
Do governo brasileiro.

Qual área? O senhor poderia dizer?
Não. E nós recusamos essa proposta, claramente, porque acreditávamos que não estavam criadas as condições de segurança pessoal do senador e nós éramos responsáveis pela vida dele. As negociações se arrastaram, se arrastaram e então, em um determinado momento, o ministro Eduardo Saboia tomou essa decisão que eu considero profundamente equivocada. Inclusive com riscos muitos grandes, poderia ter ocorrido o pior. Eu me sinto, às vezes, um pouco culpado de não ter podido participar mais. Num determinado momento eu estava disposto, inclusive em ir à Bolívia pra tentar resolver, pra tentar somar aos esforços que o Itamaraty estava fazendo, mas eu tive problemas graves de saúde que, inclusive, eu tive problemas cardíacos graves, então eu fiquei interditado de subir os 4.200 metros do aeroporto de La Paz. Bom e a coisa terminou desse jeito. Eu acho que houve, sem sombra de dúvidas, um problema de comando.

Tanto é que trocou o ministro.
Tanto é que trocou o ministro. Com isso eu não estou fazendo nenhum julgamento sobre as qualidades do embaixador Antônio Patriota, com quem que eu, aliás, sempre tive relações, e continuo tendo, relações das mais cordiais possíveis.

A presidente Dilma não tem escondido uma certa impaciência com a forma com que atua o Itamaraty. Que tipo de mudança a gente tem que entender que ela deseja que ocorra no Itamaraty para que ela fique satisfeita com a gestão do ministério?
Olha, eu acho que essa questão da impaciência é uma questão que não é tanto assim. Eu acho que ela se transformou um pouco em uma boa notícia para a imprensa. Enfim, todo noticiário sempre tem que ter uma pimenta, e a pimenta é a impaciência. A presidenta ter dito, concretamente, o seguinte: “Estão equivocados aqueles que acreditam que nós fazemos diplomacia. Nós fazemos é política externa”. A diplomacia pode ser um meio, mas o instrumento efetivo de projeção do país, mas não só de projeção de país, mas até de constituição do nosso projeto nacional é a política externa.

O senhor acha que existe um excesso de valorização apenas da forma da diplomacia por parte do Itamaraty quando deveria priorizar mais a implantação de uma política externa?
Não, eu não diria isso. Em primeiro lugar, o Itamaraty é, sem dúvida alguma, de todos os ministérios, aquele que tem o melhor corpo de funcionários, absolutamente profissionalizados. No governo Lula e no governo Dilma essa tendência de profissionalização do Itamaraty foi muito fortalecida. Você veja bem o seguinte: nós hoje não temos nenhum embaixador que não seja diplomata de carreira. No passado tínhamos quatro ou cinco. Na maioria dos países nós temos um terço, metade, às vezes dois terços de embaixadores chamados políticos. Aqui não, nós privilegiamos essa questão.

Mas isso nem sempre é bom, né? Necessariamente.
Mas isso significa concretamente que todo aquele argumento de partidarização e de politização ou de idealização da política externa não tem muito apoio, a partir desse tipo de orientação. A orientação, no caso do Brasil e no caso da maioria dos países modernos hoje, é de que as grandes linhas da política externa são estabelecidas pelo presidente da República, ou se for pelo primeiro ministro, enfim. E que o Ministério de Relações Exteriores é um instrumento importante de formulação e de implementação dessa política. Eu acho que isso tem ocorrido. Me parece, no entanto, e essa é uma das questões que a presidenta Dilma, há algum tempo, havia enfatizado e que eu acho que o ministro Figueiredo vai retomar. Me parece que é chegado ou já passou, talvez, até o momento de nós fazermos uma formulação mais abrangente sobre as grandes linhas da política externa, que pudesse ser uma espécie de livro branco da política. Como foi a Estratégia Nacional de Defesa, entende? A Estratégia Nacional de Defesa nos permitiu, completamente, sair de um certo limbo que nós estávamos depois da ditatura militar, porque aquela doutrina não servia mais.

Não havia outra?
E não havia outra. Então nós tivemos... eu não vou dizer que nós estamos no limbo, porque a diplomacia a partir de 2003 foi muito ativa, mas não houve, talvez, uma sistematização e, sobretudo, não houve uma atualização em função dessas mudanças que nós tivemos nos últimos três, quatro anos. Eu comecei a sua primeira pergunta foi mudanças, eu digo, mudou a realidade, então nós teríamos que estar afiados com essas mudanças que a realidade está colocando.

Estamos com o tempo quase acabando e eu ia te pedir um pouco de concisão nas próximas. Venezuela. Nicolás Maduro está completando aí seis meses de governo, enfrentando um problema de desabastecimento de itens básicos, apagões, alta da inflação. Um cenário instável na Venezuela. O senhor acha que há algum risco de colapso de golpe na Venezuela?
Não. Eu acho que é uma situação difícil. Não acho que há risco de colapso. Os países da região estamos dispostos a ajudar essa parte material para resolver esses problemas de abastecimento atuais e outros problemas de gestão. Problema de golpe tampouco acho que seja viável, por uma razão muito simples: qualquer tentativa de golpe na Venezuela significaria marginalização da Venezuela do Mercosul, da Unasul, como aconteceu com o Paraguai.

A propósito do Paraguai. O presidente do Paraguai, Horacio Cartes, veio ao Brasil, mas ainda não anunciou retorno ao país no Mercosul. Qual o futuro do bloco?
O retorno vai de dar. Nas conversas que nós tivemos aqui...

Quando? Este ano não?
Nós esperamos que antes do fim do ano para que o Paraguai possa participar da reunião do Mercosul que será em Caracas.

Mas ele deu alguma indicação de que anuncia antes do fim do ano essa volta?
Ficou evidente que há um esforço muito grande. Eu diria que da parte da Venezuela também houve um gesto significativo. O chanceler Elias Jaua esteve em Asunción e uma das coisas que eles tinham insistido, que seria um gesto positivo, indicou o novo, pediu “agreemènt” para o novo embaixador da Venezuela no Paraguai.

O senhor acha, portanto, que em questão de semanas, ou meses, mas antes do final do ano o Paraguai volta ao Mercosul?
Eu espero que sim. Porque entre outra coisas, para o Paraguai usufruir dos benefícios do Mercosul como, por exemplo, o Focem [Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul], esse fundo que permite uma construção da linha de transmissão de Itaipu até Asunción, ele tem que estar no Mercosul formalmente.

A Unasul, no futuro, pode vir a substituir o Mercosul?
Não. Eu acho que são duas esferas. O Mercosul, originalmente, ele tinha uma dimensão muito comercial. Depois ele se alargou e, num determinado momento, eu acho que nos primeiros anos do governo Lula, que coincidiu também com o governo [Nestor] Kirchner na Argentina, o [Hugo] Chávez na Venezuela, houve uma atração muito grande dos países da região em direção ao Mercosul. Hoje todos os países da América do Sul ou são membros ou são associados ao Mercosul. No entanto, o Mercosul tem um problema, ele tem um limite para a associação efetiva que é a Tarifa Externa Comum, a nossa Tarifa Externa Comum é distinta de outros países, sobretudo aqueles que fizeram tratados de livre comércio com outros países. Então por isso se criou a Unasul. A Unasul se criou no sentido de se insistir na dimensão econômica e na dimensão política, menos do que na dimensão comercial.

Mas enfim, no futuro não seria o caso de tentar fazer uma coisa só?
Oxalá.

Mas é muito longe isso né?
Não sei se tão longe. Eu, pelo menos, seria um partidário disso, como eu tive muito envolvido na formação da Unasul.

O sr. tem uma carreira dentro da esquerda brasileira, dentro do PT, é um intelectual orgânico do PT, vamos dizer assim. Está há tanto tempo, ajudou a fundar o PT, veio da Academia, foi professor de história. Muitos quadros históricos do PT, semelhantes ao senhor, acabaram ao longo dos anos saindo, se afastando um pouco do partido. Como é hoje a relação, o senhor diria, dos intelectuais brasileiros com o PT e com a presidente Dilma?
Olha, eu acho que essa reação, num certo momento, ela se estremeceu, e vou dizer por que ela se estremeceu. Mas eu acho que sofreu uma evolução positiva. Sabe por que que ela se estremeceu? Pelo seguinte. Porque a perspectiva e o tempo do governo, dos intelectuais, enquanto expressão do pensamento crítico, e da sociedade, são distintas. O governo tem uma perspectiva, tem um tempo, para suas realizações. Os intelectuais também têm o seu. E não são constrangidos pelos limites que estar no governo significa. E a sociedade mais ainda. Eu diria que um exercício interessante dessa diferença de temporalidades e de perspectivas se deu nos últimos meses aqui no Brasil, com essas manifestações de rua, com o exercício mais claro por parte do pensamento crítico, ainda que eu queira dizer o seguinte. Eu tenho a impressão de que os intelectuais estamos em falta com o país. Estamos em falta com o país. Não em falta com o governo. Não. Estamos em falta com o país. Há uma reflexão pequena sobre o Brasil, isso não quer dizer que seja um fenômeno generalizado, talvez nós não venhamos mais a produzir como produzíamos nos anos 30, depois nos 50, 60, grandes pensadores, do tipo do Caio Prado, do Gilberto Freyre, do Antônio Cândido, do Celso Furtado, do Raimundo Faoro, mas era de se esperar que nós tivéssemos um pensamento crítico mais agudo, que desse conta das transformações pelas quais o país está passando.

Tem um ponto aí que diz muito respeito aos intelectuais, não só a eles, à sociedade toda, que é a discussão sobre biografias não autorizadas. Envolve artistas, alguns intelectuais que têm se posicionado a favor da retirada do mercado de biografias não autorizadas quando a pessoa biografada se sente ofendida. Qual é a sua opinião sobre isso?
Eu sou contra a censura de uma maneira geral.

O senhor acha um erro retirar um livro do mercado?
Acho, acho um erro.

Qual solução deveria ser dada?
A solução é o seguinte, se a pessoa se sente ofendida, difamada, enfim, o que seja, e isso tem amparo no Código Penal brasileiro, acione. Eu entendo que há um problema complicado que é a lentidão, muitas vezes, da Justiça, que faz com que essa difamação perdure. Mas isso é um problema não só nas biografias, mas isso na imprensa também. Muitas vezes nós vemos que o direito de resposta não é um direito assegurado plenamente, ele tem uma demora muito grande de ser atendido. Eu acho que uma das formas de evitar a censura, seja a censura de livros, seja a censura de qualquer meio de comunicação, é justamente assegurar procedimentos que permitam rápidas respostas e rápidas correções de eventuais distorções que sejam cometidas.

Pergunta de caráter econômico-ideológico. Deve ser realizado um leilão do campo de Libra, do pré-sal, na semana que vem. Sindicalistas, deputados, senadores, que antes tinham uma posição, agora têm outra, e vice-versa, e há greve de petroleiros dizendo que o governo do PT entrega o patrimônio nacional, comete um crime de lesa-pátria, perda de soberania... Mudou o mundo e mudou o PT, como é que se justifica isso?
Em primeiro lugar, o leilão vai se fazer no marco de uma lei que foi aprovada quando se discutiu o tema do pré-sal. É importante dizer essa lei foi amplamente discutida na sociedade brasileira, debatida no Congresso de forma muito claro e aí foi aprovada. Eu não acho esteja havendo nenhuma entrega de soberania nacional.

Essas pessoas não estão enxergando o que o PT enxerga? O que que é?
Não, essas pessoas tem posição diferente da posição que o PT tem, que o governo tem. Eu acho absolutamente normal que tenha, eu conheço pessoas, eu vi que uma das iniciativas legais que foi tomada é de autoria de uma pessoa pela qual eu tenho não só uma estima pessoal muito grande, mas um respeito intelectual e político enorme, que é o professor Fábio Konder Comparato. Portanto, enfim, são posições distintas. Por outro lado, eu quero dizer que se eu tivesse algum abalo nas minhas convicções, eu ficaria extremamente reconfortado pelas críticas que estão sendo feitas ao leilão, por assim dizer, pela direita. Um dos porta-vozes, digamos, da direita energética no país, se é que essa expressão é válida, eu escutei ontem à noite, hoje de manhã, há um professor aí muito crítico à política de energia do governo.

Mas diga quem é.
Esse é um enigma que eu deixo aí para todo mundo resolver. Fez críticas furibundas ao leilão de segunda-feira, dizendo que é estatista, que afugenta os capitais internacionais, etc.

Um bate-bola sobre 2014. Quais serão, na sua avaliação, os principais candidatos a presidente em 2014?
A presidenta Dilma, evidentemente, o Aécio [Neves] vai ser candidato, e eu acho que, em princípio, será muito difícil que o Eduardo [Campos] ceda a janelinha do ônibus para a Marina [Silva].

Haverá segundo turno na disputa do ano que vem?
Não sei. Eu espero que não, mas não sei.

Quem é o candidato mais forte, a esta altura, contra a presidente Dilma?
Acho que é difícil dizer porque nós vamos ter que ver como é que vai evoluir nos próximos meses. O que está claro é o seguinte. Está claro que há uma absoluta incerteza nas candidaturas de oposição.

Mas o sr. enxerga alguma personagem na oposição que pode vir a ser ou encarnar o principal candidato anti-PT, anti-Dilma?
Eu acho que, do ponto de vista de suas posições históricas, o principal candidato anti-PT, anti-Dilma, é o governador Aécio. Isso se ele não for deslocado pelo José Serra, que parece que está com os dentes muito afiados. Ainda hoje li na imprensa coisas a esse respeito. Mas eu acho que é isso.

Lula candidato ainda é uma hipótese?
Não.

Com certeza?
Com certeza. Eu espero que seja em 2018, mas aí é outra coisa.

Eu precisava perguntar para o senhor um negócio histórico, já antigo agora, de 2007, aquele episódio que o senhor acabou protagonizando, do gesto que o senhor fez na época do acidente do avião da TAM. Passados tantos anos, como o senhor analisa aquele episódio?
Eu analiso de duas formas. Primeiro lugar, como uma operação sórdida da Rede Globo, sórdida.

Por quê?
Porque foi uma invasão de privacidade, eu estava na minha sala, vendo televisão. E segundo lugar porque foi utilizado um artifício.

Qual seja?
Ah, vocês também estavam comemorando a notícia da Globo que a culpa não era do aeroporto, mas era do piloto? E aí foi dito “não, não estava comemorando nada, porque ninguém comemora uma coisa dessas, mas sim nós estávamos vendo o noticiário”. Eu poderia ter perfeitamente dito naquele dia que “não, não, aquele gesto foi feito em relação à derrota da seleção brasileira de vôlei, que jogou no Panamericano”, ou simplesmente poderia dizer “não, estávamos com a televisão desligada”, porque não aparecia a televisão. Entende? A jornalista induziu esse tipo de questão, então isso me provoca indignação. Mas por outro lado eu fiquei também muito chocado porque, involuntariamente, eu ofendi a memória dos familiares, entende? Isso para mim me deixou muito deprimido, muito deprimido, que isso possa ter sido entendido, por parte dos familiares, e eu entendo que assim eles o sentissem, como uma ofensa, como um desrespeito, à memória dos que morreram. E obviamente não era esse o meu, nunca seria esse o meu sentimento.

O sr. de vez em quando se lembra daquele episódio ainda, é uma coisa que ficou?
É uma coisa que ficou, uma coisa que eu preferia que não tivesse ocorrido, nem para mim, menos para o governo. Eu quero lhe dizer que no dia seguinte do noticiário eu apresentei a minha demissão ao presidente.

O presidente agiu como quando o senhor apresentou?
O presidente disse que não aceitava. Mas eu acreditei que... Nós estávamos vivendo uma crise muito grave naquele momento, eu lembro que no dia, nesse dia do episódio que você está mencionando, saiu um artigo na Folha de S.Paulo de uma pessoa que dizia que o presidente da República era responsável pela morte de 200 pessoas. Assim, nominalmente. Então, quer dizer, nós estávamos todos muito abalados, e com razão. Aquilo foi uma tragédia nacional, como tinha sido uma tragédia nacional o acidente da Gol em 2006. E ninguém poderia ficar insensível. No meu caso em particular, era um avião que estava vindo do Rio Grande do Sul. Portanto tinha um número muito grande de conterrâneos meus.

Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência da República, muito obrigado por sua entrevista à Folha de S. Paulo e ao UOL.
Eu que agradeço.