Manifestações refletem crise mundial e contrariam mito "povão x coxinhas"
Em um dos momentos de maior polarização da história democrática recente do Brasil, manifestações pró e contra o impeachment têm acontecido semanalmente. Os discursos variam, mas existe uma interpretação comum: do lado do governo, o povo e as camadas mais populares; do lado a favor da saída da presidente Dilma Rousseff, a elite. Pelo menos em São Paulo, isso parece ser apenas um mito.
Em conjunto com os professores Marcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado, ambos da USP (Universidade de São Paulo), a socióloga espanhola e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Esther Solano vem estudando as manifestações políticas que eclodiram no país – especificamente em São Paulo – desde 2013. Na pesquisa, eles concluem que os atos refletem uma crise de representatividade que é mundial e acabam com a ideia de que há uma divisão entre "povão" e "coxinhas".
“A pesquisa acaba por desconstruir essa crença comum, de que são os 'coxinhas' a favor do impeachment, e o povo contra. A grande maioria das pessoas na manifestação de apoio ao governo continua sendo de classe média, com ensino superior completo. O perfil de renda e escolaridade é bem parecido”, explica ela, que considera o momento político brasileiro não só um questão nacional, mas retrato de uma crise de representante comum a vários países.
Sobre o perfil dos manifestantes, os números corroboram sua tese – no ato contra o impeachment do último dia 31 de março, segundo a pesquisa dos professores, 58,1% dos manifestantes tinham curso superior completo, 60,20% eram brancos e 53,3% tinham renda mensal superior a R$ 4.400. A margem de erro é de 4,3%.
Em pesquisa do instituto Datafolha, apontou dados semelhantes. A média de renda e instrução dos manifestantes, por exemplo, é muito superior à da cidade de São Paulo. Também é maior entre esses grupos a taxa de pessoas que fazem parte da chamada população economicamente ativa –ainda que os tipos de ocupação tenham diferenças entre um e outro.
Dos entrevistados pelo Datafolha no dia 18, 51% disseram ter renda familiar entre 5 e 50 salários mínimos, cerca do dobro do percentual registrado nessa faixa em São Paulo, de 25%. No protesto do dia 13, 63% pertenciam a essa faixa.
Manifestações de 2013 perderam o foco
Para entender as manifestações atuais, Esther Solano relembra os protestos populares de 2013, que levaram milhões de pessoas às ruas em todo o Brasil, e explica que, em vez de atingir os problemas do sistema político brasileiro, elas foram conduzidas à polarização.
“Essa é uma pergunta que fazemos. Aquilo foi um momento de catarse, insatisfação com o sistema, todo mundo na rua, mas sem um caminho muito claro. Ali a mídia não cumpriu sua função social. Teria que jogar as cartas de uma reforma política, mas não foi para esse debate, foi para a polarização. Isso foi muito bem aproveitado pelos grupos pró-impeachment, como o Movimento Brasil Livre. Eles conseguiram canalizar esse sentimento antissistema em antipetista. De lá para cá, nada foi construído, não houve reflexo político, debate produtivo.”
Para a socióloga, a reforma política ainda é onde pode estar a solução para o momento delicado. “A saída para a crise, a mais legítima, seria uma profunda reforma política, mas isto não está na mesa de ninguém, não entra em pauta. O que se discute são saídas superficiais, transitórias. É colocar um band-aid na ferida e seguir prolongando crises profundas para as quais esses sistemas de partidos tradicionais não conseguem mais dar a resposta.”
Crise é profunda e mundial
A professora considera ainda que a crise é muito mais do que uma turbulência política: é uma insuficiência do modelo de representatividade das instituições e já atinge vários outros países.
“É um problema mundial. É uma crise no sistema de representatividade, que não está conseguindo dar uma resposta. Na Europa, por exemplo, na Grécia e na Espanha, surgiram partidos que se colocaram como alternativas novas, mas na hora de entrar na engrenagem política fracassaram. O Brasil está no olho do furacão desse impasse mundial.”
No Brasil, Esther Solano aponta que as instituições já têm funcionado fora de suas funções democráticas – aí inseridos mídia, judiciário, governo e oposição. Isso gera uma descrença da população.
“Você tem um funcionamento anômalo das instituições, contrário à ordem democrática. O Judiciário, o governo, a oposição também. Infelizmente, esvazia muito a democracia. Não existe uma tentativa de reforçar o papel democrático, um debate profundo, o que se tem são figuras personalistas. Há projetos de poder, mas não tem um projeto de Estado.”
“Heróis” e culto à personalidade
“Há também o assunto do personalismo. Nessa crise das instituições, figuras que estão sobressaindo, como [Sérgio] Moro [juiz federal de Curitiba que vem julgando a Operação Lava Jato] e [Jair] Bolsonaro [deputado federal pelo PSC], aparecem como se fossem de fora desse jogo político, viram figuras de heróis. A crise de representatividade tem como efeito trazer esses 'outsiders' perigosos para o jogo político. Nos Estados Unidos tem o exemplo do [Donald] Trump [empresário, celebridade e pré-candidato à Presidência], por exemplo”, afirma a professora.
“O grupo a favor do governo ainda acredita mais no partido político tradicional. De alguma forma, se sente talvez mais representado por uma política mais tradicional.” Dentre os manifestantes contra o impeachment do dia 31 de março, 67,7 % vê nos movimentos sociais, ONGs e participação popular a solução para a crise. Os contrários ao governo petista responderam à mesma pergunta em abril de 2015: a resposta mais escolhida, com 43,7%, foi “entregar o poder a um juiz honesto”.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.