"Situação é das mais complicadas na história brasileira", diz filósofo sobre paralisação
“Existem múltiplas tentativas de explicar o que acontece hoje. A mais sólida é que estamos chegando ao ápice de uma crise de Estado e sociedade na qual não existe mais condições de comando e obediência”, resume o doutor em filosofia Roberto Romano, professor de ética da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), sobre o desenrolar da greve dos caminhoneiros, iniciada na semana passada.
“Um presidente tem de demonstrar e exercitar sua autoridade, o que não acontece hoje. Michel Temer é um pato manco [termo usado nos EUA para um político que deixará em breve o cargo], não tem voz de comando. Essa crise se agrava desde o governo Dilma [Rousseff], que pouco antes do impeachment já não governava mais, estava apenas defendendo seu mandato.”
Mas naquela ocasião, lembra, a ex-presidente contava com um grupo forte de apoiadores do PT (Partido dos Trabalhadores) e da esquerda. “Hoje a situação é muito pior, pois o presidente da República tem oposição da esquerda e não tem o apoio efetivo da direita. Temos um presidente que é temporário, foi eleito como vice, cumprindo um mandato tampão. Isso tira força de suas palavras e seus gestos”, continua o especialista.
É uma situação complicadíssima, das mais complicadas na história brasileira. Passei pela ditadura, fui torturado e tenho muito receio dessa voz corrente [que pede o retorno dos militares]
Roberto Romano, professor de ética da Unicamp
O filósofo faz o alerta para as possíveis consequências desse tipo de desobediência civil, como vem sendo testemunhada nos últimos dias. “Temos um grupo de empresários do transporte, poderosos e antidemocráticos, desafiando os poderes instituídos: até Forças Armadas e policiais. Isso pode ser uma oportunidade para setores da sociedade passarem a concorrer com o poder do Estado”, alerta. “Fica impossível de viver em uma sociedade onde não existe autoridade.”
Ele compara esse tipo de ação ao que fazem as facções criminosas, quando determinam toque de recolher em determinado bairro, por exemplo. E diz que, se desta vez foram empresários bem-sucedidos a fazer as reivindicações, futuramente podem ser outros grupos --que, inclusive, abririam caminho para um poder paralelo.
Uma coisa é questionar a política do governo. Outra são grupos poderosos se sentirem autorizados a desafiar o poder público, defendendo seus interesses e colocando a população como refém
Roberto Romano, professor de ética da Unicamp
À falta de uma liderança e de políticos capazes de levar negociações adiante --Romano diz que “comparar Ulysses Guimarães com o ministro Carlos Marun, secretário de Governo de Temer, é comparar o original com uma cópia ruim”-- soma-se o que o especialista considera um erro histórico: a política viária brasileira.
“O mapa ferroviário crescia no país nos anos 1950, mas então houve a opção pelo transporte rodoviário. Isso em um país que poderia ter uma grande rede ferroviária e com capacidade fluvial enorme para o transporte de pessoas e mercadorias. Investiu-se bilhões em estradas de rodagem, o que também foi a chave para a corrupção das empreiteiras. Hoje o que se tem é uma malha viária em péssimo estado, mesmo nos trechos terceirizados. Some isso ao preço dos combustíveis e estamos no pior dos mundos”, conclui.
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