Projetos que criminalizam homofobia empacam no Congresso desde 2001
Na próxima quarta-feira, o STF (Supremo Tribunal Federal) volta a julgar a criminalização da homofobia e deve decidir se o Congresso Nacional tem a obrigação de criar uma lei sobre o tema. Mas uma decisão do Supremo pode esbarrar na disposição dos parlamentares.
Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, a ideia de tratar como crime ofensas e agressões motivadas por discriminação a homossexuais e transexuais não tem conseguido avançar entre deputados e senadores.
Até hoje, apenas um projeto sobre homofobia chegou a ser votado. Aprovado pela Câmara, ele terminou arquivado depois de tramitar por nove anos no Senado sem ir a plenário.
A proposta, apresentada em 2001, levou 14 anos em tramitação no Congresso até ser arquivada em definitivo por força de uma regra do Senado que impede a tramitação por mais de três legislaturas. A legislatura é o período de quatro anos correspondente ao mandato dos deputados.
Autora do projeto, a ex-deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), hoje vereadora em Sorocaba (SP), afirma que o Congresso se tornou mais conservador e diz que hoje seria difícil a aprovação de uma proposta semelhante à que tramitou entre 2001 e 2014. "Não vejo chances no Congresso atual. Pelo contrário, nós podemos perder muitos avanços que a gente conseguiu na pauta dos direitos humanos como um todo", ela afirma.
Ao menos outros dois projetos contra a homofobia passaram pelo Congresso.
Em 2014, um novo projeto foi apresentado à Câmara para tratar do tema. De autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra dos Direitos Humanos nos governos do PT, o projeto trata dos chamados crimes de ódio, que abrangem a homofobia, mas também se aplicam a agressões contra imigrantes, moradores de rua, idosos e deficientes, por exemplo.
"Ele cria a ideia de que um crime de ódio é aquele direcionado a uma pessoa por sua identidade, pelo que ela é e não deixará de ser", diz Rosário.
Apresentado em 2014 na Câmara, não foi nem sequer votado pelas comissões temáticas, pré-requisito para que o projeto possa ir a plenário, onde ocorre a votação final em cada casa legislativa (a Câmara e o Senado). O projeto deve voltar a tramitar neste ano.
"Já há muito tempo nós tentamos criminalizar a homofobia no Brasil, equiparando os crimes de ódio contra as pessoas LGBT a crimes outros existentes. O fato é que nenhuma lei brasileira usa a expressão de proteção às pessoas homossexuais, isso num contexto em que vários grupos vulneráveis estão protegidos por leis específicas, acaba fomentando, fazendo um processo de aceitação, de naturalização da violência contra os homossexuais", afirma a deputada.
Para Maria do Rosário, a principal resistência a projetos sobre o tema vem da bancada religiosa. "Por que nós não legislamos até hoje sobre isso? Porque, nesta Câmara dos Deputados, há setores que confundem a dimensão religiosa fundamentalista com a vida civil do país e que tratam as pessoas LGBTs como cidadãos de segunda categoria", diz.
É uma resistência que usa do fundamentalismo religioso para auferir votos e que promove o ódio contra as pessoas por serem gays, lésbicas, transexuais, por terem uma identidade sexual diferenciada, isso é inaceitável
Maria do Rosário, deputada (PT-RS)
O projeto tramita há mais de quatro anos sem ter sido votado por nenhuma das três comissões por onde deverá tramitar antes de ir a plenário.
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Iara Bernardi também cita os religiosos e diz que o projeto encontrou maior resistência depois de ser enviado ao Senado. "Entendo que foi o momento significativo em que setores religiosos e conservadores entenderam que essa questão LGBT era um tema que unificava as igrejas. A sociedade é muito conservadora em relação aos homossexuais. Eles focaram nesse projeto", afirma.
Os senadores começaram a colocar, e isso era repetido nas igrejas, que esse projeto iria cercear os pastores, que iria colocar os pastores na cadeia, que não se poderia mais falar em cura gay, que iria exigir das igrejas fazer casamento gay
Iara Bernardi, ex-deputada
Em dezembro de 2017, a criminalização da homofobia voltou a ser tema de um novo projeto em tramitação no Senado. A Comissão de Direitos Humanos decidiu transformar em projeto de lei uma sugestão apresentada por meio do portal do Senado na internet.
O projeto atravessou todo o ano de 2018 sem sair do lugar e este ano está à espera de receber parecer do relator na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça).
O caminho do primeiro projeto
O projeto de Bernardi levou seis anos para ser votado e aprovado pela Câmara, em 2006, quando passou a tramitar no Senado. A ex-deputada diz que naquela época foi possível construir um consenso entre os deputados por causa do apoio do governo federal ao tema e da pouca atenção dada ao projeto pela oposição da bancada conservadora e religiosa.
"Era a configuração do Congresso na época. Nós tínhamos lá uma bancada que não era tão pequena de deputados religiosos, mas esse não era um tema para eles, pelo menos não influíram nem se meteram", afirma a ex-deputada.
Uma prova da concordância de diferentes partidos sobre o tema, diz Bernardi, foi o fato de o texto ter sido aprovado por votação simbólica, sem precisar da contagem voto a voto de todos os deputados. A votação simbólica costuma ser usada quando há acordo entre os partidos. Nesse tipo de votação, o presidente da sessão apenas pede que quem for contrário à proposta se manifeste e, se não houver número expressivo de deputados divergindo, o projeto é aprovado.
Até sua aprovação no plenário da Câmara, levou seis anos. Na CCJ, ficou até 2005. Iara Bernardi diz considerar natural o tempo de tramitação na Câmara, por este ser um tema complexo.
Às vezes você apresenta um tema e ele vai e volta. Esse da homofobia não é um tema de assimilação fácil. Eu consegui que o projeto fosse para pauta [de votações] em 2006. Outubro de 2006 que ele foi aprovado, por unanimidade, com assinatura de todos os líderes [dos partidos], nenhuma contestação
Iara Bernardi, ex-deputada federal
Aprovado na Câmara, o texto seguiu para o Senado, onde ficou por nove anos, até ser arquivado em definitivo, em dezembro de 2014. O projeto chegou a ser aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais, em 2009, mas nunca foi analisado nas comissões de Direitos Humanos e de Constituição e Justiça, por onde deveria passar antes da votação final no plenário do Senado.
Em dezembro de 2013, o plenário do Senado chegou a aprovar um requerimento para que o texto tramitasse em conjunto com o projeto de reforma do Código Penal. A anexação a um projeto mais extenso, na prática, torna mais lenta a tramitação do texto original. Um ano depois, em dezembro de 2014, o projeto sobre a criminalização da homofobia foi arquivado com o fim de sua terceira legislatura. O projeto de reforma do Código Penal continua em tramitação.
"Manobra" da bancada religiosa
O ministro Celso de Mello chamou de "manobra" da bancada religiosa a junção do projeto da homofobia pelo Senado, em 2013.
"Essa medida contudo sofreu a oposição de parlamentares da chamada bancada confessional, da bancada religiosa, contrários ao adimplemento das já referidas cláusulas constitucionais de incriminação da homofobia e da transfobia", disse. "Circunstância essa que os levou, em clara manobra protelatória destinada a frustrar a tramitação legislativa do projeto de lei que tipificava crimes contra a comunidade LGBT, a aprovar o requerimento que importou na anexação do projeto em questão ao de instituição do novo Código Penal brasileiro", afirmou o ministro em seu voto.
Ela conta que conversou com deputados evangélicos que disseram que o projeto ajudou a eleger muitos deputados que tinham que ir para o Congresso defender a família.
Antes do início do julgamento no STF, a bancada evangélica da Câmara se encontrou com o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, e pediu que as duas ações fossem retiradas de pauta. Um dos principais temores dos parlamentares é de que a criminalização interfira na liberdade de pastores pregarem contra a homossexualidade em templos religiosos.
A preocupação de religiosos com a criminalização da homofobia também foi tema de debate entre advogados durante o julgamento das ações pelo STF.
Entenda o julgamento
Em seu voto, o ministro Celso de Mello, relator de uma das ações, afirmou que a omissão do Congresso sobre o tema desrespeita a Constituição Federal.
Uma decisão determinando que os parlamentares legislem sobre o tema, na prática, não teria a força de obrigar o Congresso a produzir uma lei, pois não há punição caso a decisão seja descumprida. O julgamento, no entanto, pode funcionar como um elemento político de convencimento de deputados e senadores.
O STF retoma o julgamento na quarta-feira, com a conclusão do voto de Celso de Mello. Em seguida, devem votar o ministro Edson Fachin, relator da segunda ação sobre o tema, e os outros nove ministros que integram o tribunal.
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