Bolsonaro distorce história da ditadura, diz ex-vice da Comissão da Anistia
Ex-vice-presidente da Comissão de Anistia, José Carlos Moreira da Silva Filho afirma que a fala "deplorável" do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre a morte de Fernando Santos Cruz é uma estratégia para desacreditar a importância da luta dos grupos opositores contra a ditadura militar brasileira.
Em entrevista ao UOL, o ex-integrante da entidade diz que, com sua declaração, Bolsonaro tem uma conduta que "um presidente da República jamais poderia ter".
"Ele precisa ter o mínimo de equilíbrio e bom senso", diz o jurista e professor da Escola de Direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Veja os principais trechos da entrevista:
UOL - Na sua avaliação, qual é o peso da declaração do presidente Jair Bolsonaro para a família de Fernando Santa Cruz e de outras vítimas que esperam até hoje por uma resposta sobre desaparecidos durante a ditadura?
José Carlos Moreira - Com relação à violência direta praticada contra os familiares, eu agradeço que a dona Elzita não tenha vivido para ver essa declaração deplorável feita pelo presidente da república. Ela foi o símbolo de uma mãe que buscou por um filho durante todo o resto da sua vida, desde fevereiro de 1974, que foi quando Fernando desapareceu. Ela faleceu neste ano e foi um baque para toda a sociedade que acompanhava de perto esta história. Por outro lado, é triste ver que ela morreu sem saber do seu filho, onde estão os restos mortais dele.
E não só a dona Elzita, mas também a dona Risoleta, que era a mãe do Eduardo Collier Filho, que estava junto com o Fernando no momento do desaparecimento. Elas foram militantes incansáveis em busca de informações ainda na época da ditadura, chegaram a fazer audiências com ministros militares e obtiveram respostas sempre evasivas. Chegaram a dizer que eram foragidos, ou seja, insinuando que outros desaparecidos, na verdade, teriam fugido.
É um peso realmente muito ruim para a família. São famílias que vivem sob uma situação de uma constante tortura, de não saber de como o seu ente querido morreu e onde estão os restos mortais para que sejam feitos os rituais necessários e importantes do ponto de vista social do luto. Toda família de desaparecido da ditadura passa por isso.
E o peso da fala de Bolsonaro para a sociedade?
Essa declaração infeliz do presidente se soma à celebração que ele fez do aniversário do golpe militar de 1964. Estas manifestações públicas procuram se esquivar do necessário reconhecimento de que, sim, nós tivemos uma ditadura. Uma ditadura que foi instalada a partir de um golpe de Estado e que esse Estado fez uso do seu aparato repressivo, das suas organizações e instituições para assassinar pessoas, desaparecer com seus restos mortais, estabelecer um clima de medo em toda a sociedade através da censura e do monitoramento e da perseguição política. Este Estado violou as próprias leis que estavam em vigor pelo regime autoritário.
Esse peso é muito negativo para a sociedade brasileira. Paira ainda um grande desconhecimento por parte de parcela expressiva da sociedade sobre o significado da nossa ditadura e tudo o que ela fez. E isso acontece por causa uma política que foi cuidadosamente conduzida pela transição democrática brasileira, que colocou um bloqueio sobre o debate e estabeleceu uma transição que foi feita aos poucos, bloqueando as pautas de reconhecimento das violências praticadas pelo Estado.
Além do peso para a sociedade e da falta de sensibilidade aos familiares, vem também toda uma conduta que um presidente da República jamais pode ter. Ele deve ter o mínimo de equilíbrio, de bom senso e não pronunciar palavras que ofendam dessa maneira a memória de pessoas que lutaram contra um regime autoritário e que foram atingidas pelo Estado brasileiro.
O senhor citou a tentativa de criar uma nova narrativa para a ditadura e o desconhecimento da população sobre o que foi o regime militar. Como o senhor avalia esta distorção da história?
Ela é a continuidade de uma atitude autoritária que quer fazer a apologia de golpes de Estado e do uso da violência completamente ilegal e desmedida por parte do Estado. Não se pode colocar no mesmo patamar grupos de pessoas que lutam contra instituições públicas ou contra um Estado autoritário com a deste mesmo Estado.
Em primeiro lugar, a correlação de forças é completamente desproporcional. O Estado tem ao seu serviço milhares de homens e mulheres treinados, um conjunto de recursos, aparato de Forças Armadas e todo um estabelecimento político, com juízes etc. É algo completamente desproporcional. Tanto é que quem passa a ser perseguido pelo Estado entra na clandestinidade ou vai para o exílio obter a proteção de um outro Estado, e isso ocorre até hoje no mundo.
Em segundo lugar, mesmo que o Estado lide com alguém que ele considera criminoso, deve-se respeitar os direitos e as leis que o próprio Estado cria. Mesmo nas leis da ditadura, não havia autorização para exterminar as pessoas extrajudicialmente, para torturá-las ou para desaparecer com os seus restos mortais.
Não só criaram uma outra narrativa, mas negaram a existente para a ditadura. Essa é uma estratégia muito comum de grupos que tentam justificar regimes autoritários ou transformar regimes autoritários em regimes que não o sejam.
A única forma de reforçar a distorção histórica é evitar que os fatos sejam conhecidos e reconhecidos e que sejam apresentados como realmente ocorreram, distorcendo as ideias. Estamos assistindo a uma tentativa de criar uma outra história que vai de encontro a todas as pesquisas sérias feitas sobre o assunto nas universidades, até mesmo fora do país, e tudo o que foi publicado. As publicações que discordam são as que estão relacionadas às pessoas que assumiram o regime autoritário e o deflagraram, tentando normalizar e negar os fatos que foram praticados.
Como o senhor vê a tentativa de culpabilizar a esquerda pela morte de Fernando Santos Cruz?
A polarização que está colocada hoje se apoia numa narrativa completamente fora da realidade. Ela tenta reeditar uma linguagem que ocorreu no período da Guerra Fria para um tempo em que não faz sentido estabelecer as mesmas condições e preocupações que existiam naquela época. Essa é uma estratégia da própria doutrina de segurança nacional que, de certa forma, o presidente atual procura repetir em seu discurso, que é focar no inimigo interno, que reúne grupos completamente diferentes, distintos nas suas estratégias, concepções, metas, lutas, como subversivos a serem combatidos.
Na ditadura, você tinha uma perseguição intensa baseada no sistema de informação irrigado por toda a sociedade. A rede de espionagem de informação interna no Brasil foi muito intensa. Com o AI-5, a violência do Estado se abate de uma maneira muito feroz sobre os grupos de resistência contra a ditadura, especialmente os que se envolveram na luta armada. Nesse contexto, cria-se uma situação na qual alguns grupos de esquerda passam a tratar de uma maneira mais rigorosa e acabam caindo em uma situação de absoluta precariedade para o exercício da resistência, já que todos os meios de exercício da oposição política estavam vedados.
Infelizmente, alguns militantes --não dá para dizer se foram muitos, mas é claro que houve, sem dúvidas-- e grupos de esquerda procuravam evitar que companheiros que conheciam informações da organização, que sabiam de coisas importantes, viessem a repassar essa informação para o governo que os perseguia. E uma das formas era exatamente buscar exterminar o outrora companheiro que agora estava trabalhando ao lado dos agentes da polícia política.
Foram casos muito pontuais, que não foram frutos de uma generalização de atividade de luta armada. Mas estes casos são aproveitados por quem faz a defesa da ditadura, para dizer que tudo funcionava desse modo, sem contextualizar a situação que levou esses militantes a um absoluto desespero, de buscar fazer isso.
No caso específico de Fernando Santa Cruz, isso tava muito longe de ser o caso. A organização na qual ele atuava, que era a AP (Ação Popular), já tinha passado por transformações internas e ele, junto com outras lideranças da AP, incluindo o Eduardo, que foi pego com ele, passaram a ser perseguidos. Em 1974, houve uma determinação do governo militar de exterminar as principais lideranças da AP, assim como no ano seguinte, em 1975, foi a vez do Partido Comunista Brasileiro. Foi quando o Vladimir Herzog morreu.
Construir essa versão de que ele teria sido justiçado pelos seus próprios companheiros ou de que ele não teria desaparecido, fugiu e morreu, é uma estratégia muito conhecida para desacreditar, desautorizar e diminuir a importância e dimensão da luta destes grupos contra a ditadura. E também para retirar um pouco da própria participação do Estado em causar esta situação. Antes de a ditadura começar, não havia a luta armada no Brasil. Ela se desencadeou por causa da reação à ditadura.
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