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Delegado vira réu por queimar corpos em usina durante a ditadura militar

Marcelo Oliveira

Do UOL, em São Paulo

24/10/2019 16h42

Resumo da notícia

  • A Justiça Federal aceitou denúncia do MPF contra ex-delegado que afirmou ter queimado corpos da ditadura
  • Crimes foram confessados em livro e depoimentos
  • Vítimas eram 12 militantes políticos contrários à ditadura
  • O ex-delegado tem hoje 79 anos

A Justiça Federal em Campos (RJ) abriu processo contra o ex-delegado Cláudio Antônio Guerra, 79, por ocultação e destruição dos corpos de 12 militantes políticos mortos entre 1973 e 1975, durante a ditadura militar. Com a decisão, Guerra torna-se réu pela segunda vez em um processo relacionado à ditadura militar.

As vítimas foram assassinadas na Casa da Morte, centro clandestino de tortura durante o regime militar em Petrópolis (RJ), e no Doi-Codi, braço de repressão do Exército durante a ditadura, no Rio de Janeiro.

Guerra confessou que queimou os corpos em fornos industriais da Usina Cambahyba, em Campos, no norte fluminense.

O delegado, que colaborava com a equipe do coronel Freddie Perdigão Pereira, do Centro de Informações do Exército, admitiu ter cometido os crimes no livro "Memórias de Uma Guerra Suja" e depois os readmitiu em depoimentos à Comissão Nacional da Verdade e ao Ministério Público Federal (MPF), que o denunciou à Justiça Federal em 31 de julho deste ano.

A denúncia foi recebida pela juíza federal substituta Flavia Rocha Garcia na última terça-feira (22), e o MPF tomou ciência da decisão hoje (24).

Juíza fala em crimes contra a humanidade

Para a juíza, "a ocultação de cadáveres no contexto apresentado pela denúncia é crime contra a humanidade" e, por isso, não cabe prescrição.

"O recebimento da denúncia é um marco. Demonstra que finalmente o Brasil passa a cumprir com suas obrigações de realmente proteger direitos humanos, o que não vinha sido realizado a contento. Além disso, permite que a sociedade possa finalmente conhecer fatos ocultados, conhecendo sua história e evitando a repetição de erros pretéritos no futuro", afirmou o procurador da República Guilherme Garcia Virgílio, autor da denúncia, sobre a decisão judicial.

Segundo o depoimento de Claudio Guerra ao MPF, teriam sido queimados na Usina Cambahyba os corpos de:

  • Ana Rosa Kucinski Silva
  • Armando Teixeira Frutuoso
  • David Capistrano da Costa
  • Eduardo Collier Filho
  • Fernando Santa Cruz
  • João Batista Rita
  • João Massena Melo
  • Joaquim Pires Cerveira
  • José Roman
  • Luís Inácio Maranhão Filho
  • Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto
  • Wilson Silva

A denúncia

Segundo a denúncia do MPF, Guerra relatou que havia preocupação por parte dos coronéis Perdigão e Paulo Malhães, ambos já mortos, de que os corpos daqueles que eram eliminados pelo regime acabassem descobertos. Ele narrou que uma das estratégias iniciais era lançar corpos de mortos em rios e mares e arrancar parte do abdômen das vítimas, evitando, com isso, a formação de gases que poderiam fazer com que o corpo emergisse.

Nesse contexto, Cláudio conta que sugeriu o forno da Usina Cambahyba para eliminar os corpos sem deixar rastros e que já utilizava a usina e seus canaviais para desova de criminosos comuns, do Espírito Santo, em razão de sua amizade com o proprietário da usina.

Além do depoimento de Guerra, o MPF acrescentou à denúncia o depoimento de três pessoas que confirmaram a versão do ex-delegado de que ele seria próximo do ex-proprietário da usina, Heli Ribeiro Gomes, ex-vice-governador do Rio de Janeiro. Uma das testemunhas conta que levou Guerra para reuniões na usina e outra testemunha relatou que o delegado havia lhe dito na época ter incinerado um cadáver na usina.

Para retirar os corpos na Casa da Morte, Cláudio relatou que encostava o carro no portão e recebia, em seguida, de dois ou três militares, os corpos ensacados em sacos plásticos. Ao chegar na Usina, passavam os corpos para outro veículo, que ia até próximo dos fornos, sendo então colocados na boca do forno e empurrados com um instrumento que lembrava uma pá, e, ainda, que o cheiro dos corpos não chamava atenção por causa do forte cheiro do vinhoto, subproduto da produção de açúcar e álcool.

Para o MPF, Guerra agiu por motivo torpe (uso do aparato estatal para preservação do poder contra opositores ideológicos), visando assegurar a impunidade dos autores dos assassinatos, praticando "abuso de poder e violação do dever inerente do cargo de delegado de polícia que exercia no Estado do Espírito Santo, foi o autor intelectual e participante direto na ocultação e destruição de cadáveres de pelo menos 12 pessoas", afirma o procurador na denúncia.

Se condenado, Guerra está sujeito a uma pena de 12 a 36 anos de prisão, uma vez que o MPF pediu que as penas para cada ocultação de cadáver sejam somadas.

Esta é a terceira denúncia do MPF contra Guerra. Em 2014, o delegado foi denunciado por sua participação no atentado do Riocentro. Sua missão foi a de forjar evidências para que a culpa sobre o atentado recaísse sobre grupos de oposição ao regime. A denúncia foi recebida, mas o processo está trancado por decisão do STF. Em 2018, ele foi denunciado pelo assassinato de Ronaldo Mouth Queiroz, em São Paulo, mas a denúncia foi rejeitada. Guerra atualmente cumpre pena de prisão domiciliar, ordenada pela Justiça do Espírito Santo, pela morte da ex-mulher e da ex-cunhada.