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Ex-ministro do STF aponta avanço de ideologia autoritária no Brasil

Felipe Amorim

Do UOL, em Brasília

07/05/2020 04h00Atualizada em 07/05/2020 17h58

Resumo da notícia

  • Opinião é do ex-magistrado Sepúlveda Pertence em entrevista ao UOL,
  • Moro é 'cúmplice' de situação que levou a sua saída, diz Eugênio Aragão, ex-chefe do Ministério Justiça
  • 'Antes de resolver crises políticas, o impeachment tende a agravá-las', afirma Pertence
  • Segundo Aragão, 'presidente pode escolher chefe da PF, mas não ir contra Constituição'

Assolado pela pandemia do novo coronavírus e por manifestações populares que fazem alusão à ditadura militar, o Brasil se mostra inclinado ao avanço do autoritarismo no governo ao mesmo tempo em que o Congresso e o STF têm tentado encontrar respostas à altura da crise. Esta é a opinião de Sepúlveda Pertence, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, e de Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça.

Em entrevista ao UOL, os advogados analisaram o cenário político e jurídico do país, como o apoio de Jair Bolsonaro (sem partido) a protestos de viés antidemocráticos, a decisão do STF de barrar o indicado do presidente para a Polícia Federal e a saída do governo do ex-ministro da Justiça Sergio Moro.

"Não foi surpreendente, embora de novo espantoso, que o presidente, no alto da entrada do Palácio do Planalto, participe de uma manifestação de intolerância política", disse Pertence. "É fundamental ver nisso uma caminhada cada vez mais intensa, mais veloz, para o Estado autoritário."

Para Aragão, a postura de Bolsonaro de apostar no conflito com opositores só reduz a capacidade do país de responder à crise do coronavírus.

"O Congresso e o Judiciário desempenham papel fundamental" para garantir que "não estamos diante de um estado falido, de que temos luz no fim do túnel", afirmou ex-ministro. "Se nós estivéssemos a depender exclusivamente do Poder Executivo, estaríamos hoje numa situação muito mais grave."

Sobre a crise no governo aberta pela saída de Moro, em 24 de abril, com a acusação de que o presidente pretende interferir politicamente na Polícia Federal, Aragão afirma que os ataques do ex-juiz da Lava Jato "não podem ser encarados pelo valor de face" e que o ex-ministro foi "cúmplice" da situação que provocou sua saída.

"Quando Moro decidiu integrar o governo, ele não podia dizer que não tinha noção das peculiaridades do caráter do presidente", disse Aragão. "Ele aceitou estar onde estava. Num sentido popular, não no sentido técnico-jurídico, Moro foi cúmplice disso tudo."

As acusações de Moro se somaram às críticas à postura de Bolsonaro frente ao coronavírus nos argumentos dos que defendem o impeachment do presidente.

Sepúlveda Pertence afirmou ver argumentos suficientes para sustentar uma acusação pelo impedimento do presidente, mas lembra o ensinamento do jurista Paulo Brossard [ex-ministro do STF, 1924-2015] para fazer uma ressalva: "Antes de resolver crises políticas, o impeachment tende a agravá-las".

Pertence foi ministro do STF por quase duas décadas, de 1989 a 2007, tendo presidido o tribunal entre 1995 e 1997.

Eugênio Aragão chefiou a pasta da Justiça no governo Dilma Rousseff (PT), em 2016. Antes de assumir o cargo, ele foi subprocurador-geral da República, nível mais alto na carreira do MPF (Ministério Público Federal), onde ingressou em 1987.

Veja a seguir os principais momentos da entrevista.

UOL - Como pode ser avaliada a participação do presidente Bolsonaro em manifestações com críticas ao Congresso e ao STF?

Sepúlveda Pertence - Não foi surpreendente, embora de novo espantoso, que o presidente, no alto da entrada do Palácio do Planalto, participe de uma manifestação de intolerância política, de desafio às instituições constitucionais, particularmente de agressões aos demais poderes constitucionais, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, repetindo-se a pregação em torno do fechamento das duas instituições.

Não é surpreendente porque é a repetição de cenas similares já feitas e que, além dos temas por ele cogitados ou agitados pelos manifestantes, tem [um tom de] de desapreço, quase de desafio, às medidas cautelares de ordem sanitária.

No mais, este apelo e esta alusão ao apoio das Forças Armadas até aqui, felizmente, não parece ter base real. Ao contrário, apesar da ampla manifestação de militares no primeiro escalão do governo, não parece ter respaldo nas Forças Armadas qualquer ameaça às instituições constitucionais.

Eugênio Aragão - Esse ato foi meio que inflado em sua significância, porque pelas imagens depois transmitidas a gente viu que a frequência foi pífia. É um grupelho de pessoas radicalizadas, atuando contra as instituições e agredindo verbalmente autoridades como o presidente da Câmara, presidente do Senado e ministros do Supremo Tribunal Federal.

É lamentável que o presidente não veja que esse tipo de atitude, de congraçamento com essa turma radical, possa vir a colocar em dúvida a legitimidade da sua posição. Ele não é presidente de meia dúzia de militantes radicais, ele é presidente do Brasil — e graças a uma Constituição que configura um pacto social que ele jurou proteger, cumprir e fazer cumprir.

Pertence - Embora em ato anterior, ele tenha afirmado 'a Constituição sou eu', aí fica fácil cumpri-la.

O comportamento do presidente até aqui pode ter consequências jurídicas? Por exemplo, há pedidos de impeachment que o acusam de má conduta na resposta à pandemia.

Pertence - Está implícita na sua pergunta uma visão ou uma ameaça à democracia. É fundamental ver nisso uma caminhada cada vez mais intensa, mais veloz, para o estado autoritário.

Não resisto a me referir a uma análise da professora Lilia Moritz Schwarcz sobre a onda de conservadorismo populista que assalta diversos países.

'Vem se tornando cada vez mais fácil encontrar diversos governos que sem serem diretamente orquestrados entre si acabam por dialogar através de seus modelos análogos, numa sorte de populismo autoritário, que vem testando a resiliência institucional da democracia em seus respectivos países. Esses novos governos, diz a autora, tem igualmente recolhido uma profusão de estratégias comuns, a seleção de um passado mítico e glorioso, a criação de um anti-intelectualismo e de um antijornalismo de base, um retorno à sociedade patriarcal de modo a elevar conceitos como hierarquia e ordem, o uso da polícia de estado ou se necessário de milícias para reprimir bandidos mas também desafetos políticos, uma verdadeira histeria sexual que acusa mulheres, gays, travestis e outras minorias de serem responsáveis pela degeneração moral de suas nações'.

Embora a autora nessa passagem não inclua especificamente o Brasil é de uma evidente similitude com pelo menos o início desse processo que estamos a sofrer.

O ministro do STF Alexandre de Moraes barrou a nomeação do escolhido de Bolsonaro para a PF. Cabe ao Supremo decidir sobre os critérios de nomeação para esse tipo de cargo?

Aragão - A nomeação é de livre escolha do presidente da República de uma forma geral. São cargos demissíveis ad nutum [à disposição da autoridade que nomeou], são pessoas que devem gozar da confiança do presidente da República e, portanto, cabe a ele a escolha.

Mas, ao nomear, ele não pode ir contra a Constituição, não pode fazer uma nomeação, por exemplo, em desafio a uma ordem judicial. Não pode fazer uma nomeação para atender interesses particulares, como nomear quem venha a passar a mão na cabeça de um investigado ou coisa do gênero.

As acusações de Moro contra o presidente, se comprovadas, podem configurar crime de responsabilidade de Bolsonaro?

Pertence - Paulo Brossard, que deixou a melhor monografia brasileira sobre o tema do impeachment, anota que antes de resolver crises políticas, o impeachment tende a agravá-las. Daí os exemplos até aqui no Brasil de um amplo apoio popular nos dois impeachments decretados sob a Constituição de 1988.

Claro, ele existe, o instituto, e há de ser acionado quando haja evidências políticas da existência de um clima que viabilize o impeachment, também da criação de circunstâncias políticas que a Constituição corretamente dificulta, qual seja, o quórum de 2/3 exigido na Câmara dos Deputados para iniciar o processo e no Senado no seu julgamento.

Eu não creio que já existam essas condições. E temo muito a lição de Brossard de a crise política pode ser agravada. É claro que as acusações do ex-ministro Moro ao presidente da República são graves.

Não há ainda fatos que justificariam um processo de impeachment?

Pertence - Em tese, há vários atos que viabilizariam a acusação de crime de responsabilidade. A repetida agressão aos demais Poderes e a presença do presidente da República e seus discursos em manifestações populares agressivas dos outros poderes poderiam embasar [um processo de impeachment]. Mas isso com toda a dificuldade política para o êxito de um processo de impeachment.

No inquérito aberto pela Procuradoria, o procurador-geral, Augusto Aras, sinaliza que Moro pode ser investigado por denunciação caluniosa e crime contra a honra. É comum esse tipo de pedido?

Aragão - O ministro Sérgio Moro, quando decidiu integrar esse governo, ele não podia dizer que ele não tinha noção das peculiaridades do caráter do presidente, que é uma pessoa de impulsos, com um discurso agressivo.

Moro aceitou essas circunstâncias. Se ele várias vezes foi instado, ou teria sido instado, a obstruir investigações, não pode dizer que ele foi colocado diante de situações extremamente desconfortáveis. Ele aceitou estar onde estava. Acredito que, num sentido popular, não no sentido técnico-jurídico, ele foi cúmplice disso tudo.

Os ataques que ele faz são movidos de forte emoção e não podem ser encarados pelo valor de face. A gente tem que necessariamente correr atrás para saber o quê que disso é verdade e o quê que disso é exagero e fruto de uma certa revolta.

Não acho que por si só essas declarações sejam suficientes para qualquer medida imediata, seja um processo de impeachment, seja qualquer tipo de agravamento, contra um ou contra outro.

À primeira vista, fica parecendo para muita gente que Aras fez que nem aquele ratinho: olhou um lado pro queijo e olhou outro lado pro gato, para saber para onde vai. De um lado ele mandou investigar as declarações do Moro e do outro lado ele já ameaçou o Moro com denunciação caluniosa. É uma atitude, no mínimo, ambígua.

Mas eu acredito que, naquele momento, o sinal que ele deu não podia ser muito diferente. Tem que olhar os dois lados. Nós temos duas autoridades conflitando publicamente. Quem das duas tem razão? Para isso tem que ser a instaurar o inquérito, porque realmente os fatos noticiados são graves.

Como presidente Bolsonaro pode alegar o direito à intimidade para se recusar a revelar o resultado do exame de coronavírus?

Aragão - Não há direitos absolutos. Não se pode dizer simplesmente que a intimidade dá uma esfera de imunidade jurídica para uma pessoa. No caso de Bolsonaro, nós temos aqui vários indícios que justificam uma suspeição de que talvez ele não estivesse em situação de não ter sido afetado pela covid-19.

Neste momento, a sua intimidade dá lugar ao interesse público, ou seja, o interesse público em querer saber se ele estava ou não estava contaminado é maior do que o seu direito à intimidade, porque ele não é qualquer um ele é um chefe de Estado e dele se espera absoluta transparência em relação à sua situação de governante. Ele deveria ser o exemplo para os cidadãos.

Muito da sabotagem ao afastamento social está no exemplo que o presidente está dando, de ir nas aglomerações, fazer pouco caso da covid-19 e se recusar, sem causa nenhuma, a apresentar seu laudo de exame.

É interesse público. Precisamos saber se o presidente da República foi cumprimentar seus correligionários com covid ou sem covid.

O STF tem imposto derrotas ao governo. Como tem sido a atuação do Supremo?

Aragão - O Supremo tem mostrado uma face muito positiva para a sociedade de uma forma geral, porque ele não tem ficado inerte diante dessa crise. Muitos podem acusar este ou aquele ministro de ativismo judicial. Mas, se o Supremo se recolhesse a uma posição conservadora, clássica, de não querer se imiscuir em ações de assuntos públicos, eu acredito que nós estaríamos numa situação muito pior. O Supremo está corrigindo excessos e, ao mesmo tempo, apoiando medidas que julga absolutamente acertadas.

Pertence - O Supremo tem competência para uma série de intromissões em atos dos outros Poderes. Não para substituir-se a eles, mas para conter ilegalidades e abusos. Se se resguardasse, numa visão extremamente contida dos poderes judiciais, o Supremo estaria se demitindo desse papel fundamental que a Constituição lhe atribui.

Aragão - No momento em que um presidente da República se coloca como representante apenas de seu grupo e não da população como um todo e vê aqueles que não o apoiam, não como concidadãos com opinião diferentes, mas sim como inimigos, nós temos claro uma dificuldade muito maior em gerir essa crise. Por isso, neste momento, o sistema de freios e contrapesos é fundamental.

É fundamental o papel que o Congresso e que o Poder Judiciário desempenham nessa crise, são eles na verdade hoje os garantes de que nós não estamos diante de um estado falido, de que temos luz no fim do túnel e de que nós vamos, de uma forma ou de outra, através de um consenso criado através das deliberações do Congresso, das decisões judiciárias, nós vamos sair dessa crise. Porque se nós estivéssemos a depender exclusivamente do Poder Executivo, nós estaríamos hoje numa situação muito mais grave.