Interesses do governo e pandemia emperram regularização fundiária na Câmara
Resumo da notícia
- Governo e a frente agropecuária querem aumentar tamanho das propriedades a serem dispensadas de vistoria presencial
- Há pressão também para estender marco temporal de ocupação da terra, de 2008 para 2012
- Previsão era que o texto fosse votado em 20 de maio, mas nunca mais foi discutido
- Autor de projeto diz que proposta não foi aprovada ainda por "desinformação"
- Líder da minoria diz que projeto é complexo demais para ser votado remotamente em meio à pandemia
Interesses do governo e da bancada ruralista em ampliar limites previstos e a prioridade dada a projetos relacionados à pandemia do coronavírus emperram a análise da regularização fundiária na Câmara dos Deputados.
A medida provisória que amplia a regularização de terras ocupadas irregularmente por meio da autodeclaração, enviada pelo governo ao Congresso, perdeu validade e, após acordo, virou projeto de lei. A previsão era que o texto fosse votado em 20 de maio, mas nunca mais foi discutido em plenário.
A reportagem apurou que a demora se deve ao fato de o governo e a Frente Parlamentar da Agropecuária pretenderem aumentar de até 6 para até 15 módulos fiscais o tamanho das terras passíveis de serem regularizadas pela autodeclaração e mudar o marco temporal das ocupações de 2008 para 2012.
O texto original do governo já previa a facilitação da titulação a terras de até 15 módulos. O marco temporal era mais abrangente para a comprovação de ocupação pacífica e exploração produtiva da terra: 5 de maio de 2014. No entanto, esses pontos foram restringidos durante a tramitação na Câmara para até seis módulos e 2008, respectivamente.
Governo e ruralistas reduzem pressão por votação
O governo e os ruralistas pressionaram pela aprovação da MP antes que caducasse, mas, já que virou projeto, avaliam não valer o esforço e desgaste para aprovar o texto como está hoje.
"Enquanto meu relatório era da MP, o governo apoiava. Depois que virou projeto de lei, o governo perdeu o interesse pela urgência", disse o deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), autor do projeto derivado de seu parecer sobre a MP do governo.
Um deputado da bancada agropecuária que acompanha as negociações justificou ser melhor reforçar a regularização por georreferenciamento de todas as terras de até quatro módulos, em vigor e autorizado pela legislação, e articular a ampliação desses limites no momento. Mudanças em outros pontos também estão em discussão.
A autodeclaração significa que os requisitos para a regularização do imóvel irregular vão ser verificados com base na fala e apresentação de documentos, parte com base em imagens de sensoriamento remoto, do próprio ocupante, sem verificação presencial. Caso a declaração seja falsa, o interessado fica sujeito às penalidades previstas em lei.
Atualmente, a regularização de terras com mais de quatro módulos é possível, mas necessita da vistoria no local, em geral do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Ruralistas afirmam que essa imposição atrasa o processo e prejudica a renda de produtores, por ficarem excluídos de políticas públicas e financiamentos.
O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Alceu Moreira (MDB-RS), acredita que a diferença entre regularizar até quatro e seis módulos é pequena. E defende que a facilitação seja estendida para até 15 módulos.
Segundo ele, dessa forma, cerca de 97% dos pedidos de regularização hoje no Incra poderiam ser resolvidos e a produção nacional cresceria em 5%.
"Se tem uma gleba com gente com sete quatro, seis, oito módulos, como regularizar quem tem até seis, e a pessoa que tem seis e meio fica sem o documento? Não tem lógica", disse.
Moreira ressaltou o avanço da tecnologia e a precisão de imagens de satélite. Em sua avaliação, a medida ajudaria inclusive a combater queimadas e desmatamentos ilegais, por saber quem é o responsável pela área.
O deputado Zé Silva afirma que o projeto não foi aprovado ainda por "desinformação" e concorda com Moreira quanto ao potencial de se responsabilizar mais criminosos nos casos de incêndios e desmate com o texto.
Porém, o deputado não atendeu a todos os pedidos feitos pelo governo e pelos ruralistas, e disse ter buscado um meio-termo com base em estudos. Ele ressaltou ter incluído critérios para evitar crimes, como a necessidade de:
- apresentação de Cadastro Ambiental Rural ativo e planta de área com georreferenciamento com termos de responsabilidade técnica;
- comprovação de ocupação da terra antes de 22 de julho de 2008;
- não ser proprietário de outro imóvel, beneficiário de reforma agrária ou regularização fundiária, funcionário público;
- não ter trabalhadores em condições análogas às de escravo ou escravo, embargos ou infração ambiental, indícios de fracionamento fraudulento, conflito registrado na Câmara de Conciliação Agrária.
De acordo com Silva, o texto pode atingir 101.309 imóveis de até seis módulos fiscais. Se englobados os imóveis até com 15 módulos, são 108.678. As terras com mais de 15 módulos são minoria no país: 1.345, informou.
O relator do projeto, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), é favorável aos parâmetros definidos por Silva e afirmou não pretender ceder às vontades do governo. "Não posso concordar com isso, porque vai descaracterizar os objetivos do projeto", falou.
Ele ainda vai acolher sugestões de colegas que dificultam a titulação a condenados por grilagem e tornam mais rígidos outros mecanismos de controle.
Oposição reconhece avanços, mas não quer texto
A oposição reconhece que os deputados Zé Silva e Marcelo Ramos amenizaram o texto pretendido pelo governo. Ainda assim, luta para que não passe na Câmara, porque pode facilitar grilagens, considera.
O líder da Frente Parlamentar Ambientalista, deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), afirma que o projeto incentiva invasões, pois, apesar do marco temporal de 2008, pode criar uma "falsa impressão" de que a cultura de se regularizar terras ocupadas perdurará. Ela também avalia que a conferência se a terra atende às regras para a regularização acontece de forma tardia.
"Estamos batendo todos os recordes de desmatamento no país: 99% foram ilegais e a maior parte foi em terra pública. As pessoas estão derrubando a floresta e acreditando que o 'pai Bolsonaro' vai dar um jeito nisso. Que o prazo [do marco temporal] vai ser de agora. Se não for agora, que daqui a um tempo vai ser votada uma lei que regularizará todo mundo", disse.
Alceu Moreira argumenta que grileiros são pessoas que ocupam uma terra pública com o objetivo de vendê-la, ao contrário dos potenciais beneficiários do projeto no Congresso. "O cara que está morando lá há 20, 30, 40 anos não é grileiro. Não interessa quantos módulos tem", completou.
Sem urgência na pandemia
A avaliação de deputados ouvidos pela reportagem é que o projeto de lei só deve voltar a ser discutido com maior afinco e posto em votação após o retorno pleno das atividades presenciais no Congresso, ainda sem data. A maioria dos deputados vota por meio remoto desde o final de março para evitar aglomerações.
O líder da minoria na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), afirmou que o assunto não tem urgência em meio à pandemia e a matéria é complexa demais para ser votada pelo sistema remoto.
Não é razoável o Brasil numa crise dessa dimensão discutir uma redefinição da política fundiária
Deputado José Guimarães (PT-CE)
Ex-coordenador da bancada ambientalista, o deputado Nilto Tatto (PT-SP) avalia não haver uma estrutura eficiente do Estado para cumprir todas as necessidades de regularização e fiscalização atuais e reforçou que não se deve aprovar mudanças estruturais sem um maior diálogo.
Zé Silva e Marcelo Ramos admitem que a única chance de votação hoje seria um compromisso de o governo e a bancada ruralista não mudarem quaisquer pontos de seu relatório, sem perspectiva de ocorrer. Ambos disseram entender o argumento de não discutir o tema na pandemia, embora ponderem que o debate não é novo.
O que são seis módulos fiscais?
Terras de até seis módulos fiscais compreendem pequenas e médias propriedades, segundo o Incra. O tamanho de cada módulo fiscal varia de acordo com cada município.
Em Belém do Pará equivale a cinco hectares, mas em outros municípios do mesmo estado pode chegar a 75 hectares, por exemplo. O máximo a que um módulo fiscal pode chegar é a 110 hectares. Um hectare é equivalente a 10 mil metros quadrados.
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