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Em relatório, MPF diz que Volks se aliou com ditadura por vontade própria

Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 - Kaoru/CPDoc
Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 Imagem: Kaoru/CPDoc

Do UOL, em São Paulo

31/03/2021 14h46

O Ministério Público Federal divulgou hoje relatório final sobre a participação da Volkswagen na ditadura militar (1964-1985). O documento aponta que a montadora se aliou ao regime por vontade própria, além de estabelecer uma relação de contribuição com órgãos de repressão política.

Segundo o relatório do MPF, a montadora colaborou ativamente com o governo militar a partir de três eixos: participação no golpe de Estado, colaboração com os órgãos da repressão à dissidência política e repressão à organização do trabalho.

O presidente da Volks em 1964, destaca o relatório, era ex-filiado ao partido nazista, Friedrich Schultz-Wenk. Em correspondência com o presidente do grupo na Alemanha, ele demonstrou respeito pela ação dos militares contra a esquerda.

Com o argumento de que "pode-se questionar, se tudo isso é certo, pois como sabemos, pressão sempre gera uma pressão contrária", ele não criticou a violência em si, mas a "iminente revolta da esquerda". Schultz-Wenk também confiava que o governo militar pudesse manter sob controle a alta inflação com medidas impopulares.

Apoio à polícia política

O relatório diz que, embora não tenham sido identificados elementos que permitam afirmar que a empresa teve alguma participação no golpe, a Volkswagen apoiou a manutenção do regime militar e obteve benefícios do modelo econômico e de privação de direitos.

Segundo os pesquisadores externos Guaracy Mingardi e Christopher Kopper, há indícios de que Volkswagen ajudou materialmente a implantar a Oban (Operação Bandeirante), o primeiro aparato repressor criado pelos militares, mas que funcionou como projeto-piloto, à margem das estruturas oficiais.

As investigações também mostram a intensa colaboração da Volks com órgãos de repressão, com conhecimento da presidência da empresa. "No lugar de cuidar do patrimônio da montadora, o Departamento de Segurança Industrial agia como uma polícia política interna, confiscando materiais considerados subversivos e elaborando dossiês dos funcionários", diz o MPF.

O departamento da Volks também trocava informações com estruturas repressivas da ditadura —a multinacional chegou a delatar trabalhadores, mesmo sabendo que eles poderiam ser fisicamente e mentalmente torturados até a morte.

Prisões foram efetuadas na empresa e ao menos um funcionário relata ter começado a ser torturado em seu ambiente de trabalho. Na Comissão da Verdade de São Paulo, Lucio Bellantani disse que, "na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen, já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco".

A Volkswagen também ocultou seu paradeiro e de outros, não informando às famílias que haviam sido presos.

A colaboração da empresa com a VW não foi eventual ou fruto de pressões insuportáveis"
Trecho do relatório final do MPF

"Ao contrário, está claro que a Volkswagen estabeleceu por disposição própria uma intensa relação de contribuição com os órgãos da repressão política, muito além dos limites da fábrica. A empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura", acrescenta o relatório.

Atuação contra trabalhadores

Segundo relatório, aqueles que sobreviviam à prisão eram demitidos e seus nomes eram incluídos em listas de "indesejados". As listas eram compartilhadas com outras empresas, o que dificultava a recolocação profissional.

A Volks também se mobilizou para enfrentar as grandes greves de metalúrgicos que ocorreram em 1979 e 1980. Mais do que um confronto de interesses, a postura da Volkswagen demonstrou que ela "agiu para criminalizar as lideranças sindicais, colaborando com a polícia política para reprimir o movimento", expõe o relatório.

"Para tanto, agiu fora do perímetro de sua propriedade, espionou o sindicato e agiu como um braço do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), inclusive interrogando funcionários. Houve, por parte da alta direção da empresa, uma mistura de oposição empresarial com postura ideológica, numa combinação que reforçou as ações de perseguição sistemática contra aqueles que eram reputados opositores dos interesses da empresa e do regime militar."

O procurador da República Pedro Machado ressaltou que a Volkswagen não foi única a agir assim. Pesquisa liderada pelo cientista político Mingardi indicam a existência de um grupo de empresas que atuavam em cooperação com a polícia política da época, especialmente serviços de inteligência militares.

"Esse acordo demonstra, ao fim e ao cabo, uma postura importante da VW, de reconciliação com a democracia, e colabora para incentivar que outras corporações façam o mesmo, pois os ministérios públicos avaliam ampliar as investigações em face de outras empresas", afirmou Mingardi.

O relatório começou a ser desenhado em 2015 e foi finalizado em outubro de 2020, mas divulgado hoje após o cumprimento do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) pela Volkswagen —a assinatura do termo encerrou inquérito civil que investigava a colaboração da multinacional com o regime militar.

O TAC ainda garantiu o pagamento de indenizações pela Volks, no valor de R$ 36,3 milhões.