Topo

Da ditadura a Bolsonaro: o que liga duas fotos com Lula e FHC

Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Nathan Lopes

Do UOL, em São Paulo

29/05/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Ex-presidentes da República se reuniram e registraram encontro em foto
  • Partidos de FHC e Lula protagonizaram a principal polarização no país
  • Durante a ditadura, Lula fez campanha para FHC em disputa pelo Senado

A foto divulgada na semana passada em que aparecem juntos os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já é tida como histórica por ser um retrato do contexto atual vivido pelo Brasil e por mostrar dois adversários unidos contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Mas também por resgatar outra imagem feita há quase cinco décadas, que retrata o início da ligação entre duas figuras que combateram a ditadura e marcaram o período de redemocratização do país.

"A foto atual entrou para a história do Brasil, embora não tenha nenhum caráter artístico importante. Ela é apenas um flagrante do momento. Mas é suficientemente eloquente", diz o jornalista Paulo Markun, autor do livro "O Sapo e o Príncipe", sobre Lula e FHC, respectivamente. Markun, inclusive, publicou recentemente um artigo intitulado "O sapo, o príncipe e o escorpião", com referência a Bolsonaro, no jornal português Público.

Não é só o gesto. É o gesto e a circunstância em que ele se processa. Estamos a caminho de meio milhão de óbitos sob o comando de alguém que nega a eficácia de qualquer medida de combate a pandemia. Sob a morte, no fundo. Por isso, usei a imagem do escorpião.
Paulo Markun, jornalista

lula fhc - Alan Marques - 1.jan.03/Folhapress - Alan Marques - 1.jan.03/Folhapress
Em 2003, FHC passou o cargo de presidente da República para Lula
Imagem: Alan Marques - 1.jan.03/Folhapress

Lula e FHC se conhecem desde 1973, mas é de 1978 uma imagem que mostra uma ligação que hoje seria vista como impensável para quem acompanhou a política nacional apenas nos últimos anos: o líder sindical apoiando a candidatura do sociólogo.

A foto mostra Lula ajudando FHC a distribuir panfletos na porta de uma montadora de carros em São Bernardo do Campo (Grande São Paulo). Na ocasião, quando o Brasil vivia uma ditadura, FHC disputou uma vaga de senador pelo MDB, partido que reunia os opositores ao regime. Na época, a imagem não teve o impacto que a nova foto teve agora.

"Ali, o Lula, no começo da carreira sindical dele, era um sujeito muito desconfiando com os políticos profissionais, e via no Fernando Henrique o novo, o não político", diz Markun. "Ele levar o Fernando Henrique para porta de fábrica, panfletar, era uma espécie de despertar político do Lula."

Autor de "Ninho dos Tucanos", o cientista político Henrique Curi lembra que, antes, Lula era voltado a uma política mais antipartidária até meados da década de 1970. Mas, segundo ele, com o fim do bipartidarismo que vigorou em boa parte do regime militar, o futuro petista teria percebido que poderia ser interessante haver um partido que representasse o sindicalismo no Brasil.

Na onda da campanha de FHC —que, na eleição de 1978, conquistou a vaga de suplente de senador—, por pouco não saiu um partido do líder sindical e do sociólogo. A agremiação não surgiu, diz Curi, porque o grupo de Lula tinha pressa para formar o que viria a ser o PT, cujo manifesto de fundação data de 1979.

"O grupo do Fernando Henrique via como importante fortalecer o MDB, um partido democrático. E, a partir da consolidação da democracia, criar uma nova sigla", diz o cientista político. O PSDB foi fundado em 1988.

visita - 2.fev.2017 - Ricardo Stuckert/Instituto Lula/Divulgação - 2.fev.2017 - Ricardo Stuckert/Instituto Lula/Divulgação
FHC visitou em 2017 Lula para prestar condolências pela morte de Marisa Letícia
Imagem: 2.fev.2017 - Ricardo Stuckert/Instituto Lula/Divulgação

Da aliança direta em uma eleição, o petista e o tucano tornaram-se adversários, em uma rixa crescente a partir da chegada do PSDB ao Planalto em 1995. O tucano derrotou o petista nas eleições de 1994 e 98.

Quando Lula assumiu o governo, em 2003, o legado de FHC foi tratado como "herança maldita", dando ainda mais força à polarização entre seus partidos.

Por seu caráter político, a foto mais recente chama a atenção. Após a chegada de ambos ao poder, outros encontros foram registrados, como quando prestaram condolências nos falecimentos de suas esposas ou na reunião de ex-presidentes em cerimônias internacionais.

Professor do Insper, o cientista político Carlos Melo diz que o encontro entre Lula e FHC "vem cercado desse simbolismo entre dois líderes políticos que disputaram várias eleições um contra o outro, em que seus partidos são adversários, mas que sempre estiveram no campo da democracia, no respeito às instituições".

Hoje, a ditadura que uniu o dois na década de 1970 é parte do passado, mas rememorada a todo instante no governo Bolsonaro, cujos apoiadores clamam por intervenção militar e fechamento de instituições democráticas.

A esse cenário, soma-se a pandemia do novo coronavírus, que é tratada como uma questão política por Bolsonaro. Com isso, FHC e Lula se mostram como opositores a seu governo, tendo o petista já anunciado ter a intenção de disputar a eleição presidencial de 2022.

"O gesto se dá em um momento tão crítico que é isso que faz com que ele possa ser um sinal. Eles poderiam ter feito essa mesma conversa e não ter feito a foto, que é paradigmática. E tem tudo a ver com a pandemia. Ambos estão de máscara. Poderiam ter feito sem máscara", diz Markun.

Melo concorda ao dizer que a foto vai além da política. "Significa também que o diálogo é possível", diz. O professor pontua que "conversar é da democracia".

"Alguns fanáticos, de lado a lado, não compreendem isso porque têm intolerância, sectarismo", comenta Melo, lembrando que o inglês Winston Churchill, o americano Franklin Roosevelt e o soviético Josef Stalin "sentaram na mesma mesa para discutir o enfrentamento a Adolf Hitler", o ditador nazista.

Markun pontua que, no plano pessoal, o tucano e o petista sempre "mantiveram o respeito e a civilidade". "E, às vezes, penso que um queria ser o outro. O sapo queria ser o príncipe, e vice-versa. Eles são muito diferentes, em todos os sentidos, mas, ao mesmo tempo, têm essa liga, que parece ter sido mantida nesse caso, que a gente está vendo na foto"

senado fhc lula - Acervo Pres. F. H. Cardoso - Acervo Pres. F. H. Cardoso
Foto mostra apoio de Lula à candidatura de FHC ao Senado em 1978
Imagem: Acervo Pres. F. H. Cardoso

Para Curi, o clima de atual de divisão no país faz com que alguns vejam apoio onde não há. "Uma simples foto, que seria normal, comum no regime democrático, é vista como palanque para os bolsonaristas falarem: 'tudo farinha do mesmo saco'", analisa Curi.

Após a divulgação da foto, Bolsonaro chegou a ironizar a reunião entre o tucano e o petista, imaginando uma união eleitoral. "Acho que a gente construiu uma polarização não saudável ao longo dos anos e agora a gente está pagando por isso", afirma Curi.

A intolerância que impossibilita diálogos é muito diferente de polarização
Carlos Melo, professor do Insper

Para Melo, "de certa forma, Bolsonaro é causador dessa reunião" entre Lula e FHC. "Porque Bolsonaro tenta, de alguma forma, reconstruir aquele ambiente da década de 1970. E ele deixa isso muito claro, que é inspirado pelos governos militares."

Markun diz que "o que aproxima uma foto de outra é o que a ditadura pode significar". "E, neste momento que a gente está vivendo, uma ameaça de ditadura construída a partir do voto."