'Gabinete paralelo' recorreu a guru nos EUA para ter referencial antivacina
Membros do que tem sido chamado de "gabinete paralelo", o grupo investigado pela CPI da Covid por assessorar informalmente o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da covid-19, recorreram a uma guru nos Estados Unidos em busca de um referencial antivacina.
Trata-se da médica de extrema direita Simone Gold, ativista contra a imunização e que ficou conhecida por participar da invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro desse ano. Na ocasião, ela acabou detida pela polícia de Washington.
Simone é militante fundadora do "America's Frontline Doctors", organização que tem atuado desde o início da pandemia na difusão de ideias e crenças que vão na contramão da comunidade científica. Ela também prega a existência de um esquema global de corrupção e conflito de interesses dentro da indústria farmacêutica, a teoria conspiratória do "big pharma".
Em uma de suas manifestações, a médica chegou a dizer, sem qualquer comprovação, que as vacinas contra o novo coronavírus poderiam causar doenças autoimunes e infertilidade. O conteúdo se espalhou rapidamente pela internet por meio de vídeos compartilhados nas redes sociais, em janeiro de 2021.
Procurado pelo UOL, o "America's Frontline Doctors" não comentou a situação do Brasil e do governo Bolsonaro, mas encaminhou uma nota por meio da qual Simone afirma existir um "ceticismo justificável" em relação às vacinas. Na visão dela, isso ocorre devido "à velocidade sem precedentes" com a qual os imunizantes se tornaram viáveis e forneceria um "impulso adicional" à adoção de "terapias anti-infecciosas", como os casos da cloroquina e da ivermectina —remédios sem eficácia no tratamento dos sintomas.
Para a líder da entidade, nos Estados Unidos, o "esforço repetido e internacional para limitar o uso de medicamentos preventivos e profiláticos" tem sido uma das "maiores tragédias" observadas em face da pandemia. "Apoiamos os esforços para fornecer informações não filtradas e não censuradas a pacientes e médicos para que os americanos possam tomar decisões bem fundamentas sobre suas necessidades de saúde."
Alvo de ações judiciais nos EUA
No ano passado, a militante já havia chamado atenção depois de afirmar que a covid-19 teria "cura" e que as máscaras seriam dispensáveis. Ela é alvo de ações judiciais nos Estados Unidos por disseminação de fake news.
O comando do Palácio Planalto tomou conhecimento do ideário de Simone por intermédio do ex-assessor especial do Planalto Arthur Weintraub, que é irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub.
Sem qualquer vínculo com o Ministério da Saúde, o ex-assessor foi destacado por Bolsonaro para liderar o chamado "gabinete paralelo". A informação faz parte do escopo de investigação da CPI da Covid, no Senado Federal.
De acordo com parlamentares da comissão, depoimentos obtidos até então mostram que cabia a Weintraub realizar buscas em blogs, fóruns de discussão e outras fontes na internet, sem validação científica, para municiar Bolsonaro com informações que são rebatidas pela ciência.
Em várias manifestações públicas durante a crise sanitária, Bolsonaro utilizou referências repassadas pelo "gabinete paralelo" na tentativa de fundamentar as suas falas. Não houve menção direta ou nominal a Simone, mas as informações coletadas pelo ex-assessor especial ajudaram a compor a "narrativa bolsonarista" no decorrer da pandemia.
Assim como o presidente, Simone é uma entusiasta da prescrição da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento dos sintomas da covid e foi a principal voz contra a obrigatoriedade da vacinação nos Estados Unidos em 2020. Após a sucessão de Donald Trump pelo democrata Joe Biden, no entanto, a ativista perdeu espaço na mídia do país. Atualmente, a sua bandeira prioritária é impedir que crianças sejam vacinadas.
Na quinta-feira (10), em discurso realizado em evento do Ministério do Turismo, o presidente confirmou que parte da rotina de Weintraub —ele deixou o cargo de assessor especial e foi designado para atuar na OEA (Organização dos Estados Americanos)— era trazer "documentos", "pesquisas" e "fazer contatos".
"Não errei uma sequer [referindo-se às decisões tomadas por ele durante a pandemia]. E não foi da minha cabeça. Foi conversando com pessoas. Como um anônimo entre nós por muito tempo, Arthur Weintraub. Quando fui com ele para o Japão, em 2018, ele foi lendo uns manuais e chegou falando o básico de japonês em 48 horas. Consegui entrar no Japão graças a ele, que em 48 horas aprendeu o básico... Uma mente privilegiada."
"Trazia documentos para mim, pesquisas, fazia contatos. E a gente foi se... Aprendendo o que era aquilo", completou ele, em referência à covid-19.
No mesmo evento, Bolsonaro afirmou ter solicitado ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, um "parecer" para avaliar a possibilidade de desobrigar o uso de máscaras para quem foi vacinado ou quem já foi contaminado pelo coronavírus. A dispensa do item de proteção, sob falsa alegação de ineficiência, foi uma das primeiras bandeiras levantadas por Simone nos Estados Unidos, no ano passado.
Interação com o 'gabinete paralelo'
Além da pregação antivacina, que a ativista americana ainda promove apesar de a imunização em massa ter colocado o país na vanguarda do combate à pandemia, Simone faz campanha pelo uso da cloroquina e hidroxicloroquina.
Em sua página no Twitter, há postagens da médica que fazem referência ao Brasil e a estudos sobre o uso desses medicamentos em Manaus em 6 de agosto do ano passado. Foi nesse período que Weitraub tentou se aproximar dela. Naquele mesmo mês, o Brasil ignorava uma oferta da Pfizer para adquirir 70 milhões de doses de vacina —fato que também é investigado na CPI no Senado.
Uma semana depois, em 13 de agosto, Weintraub conseguiu conversar com Simone e trocar ideias e experiências a respeito do uso da cloroquina e hidroxicloroquina, contestações quanto à eficácia de vacinas, entre outros temas.
Dois dias depois, imerso em pesquisas sobre o ideário da ativista, Weintraub interagiu com ela nas redes sociais e publicou vídeo em sua defesa.
Nos meses seguintes ao contato entre os dois, Weintraub publicou várias mensagens com o intuito de levantar dúvidas quanto à eficácia das vacinas que estavam sendo estudadas tanto no Brasil quanto no exterior.
Ele também promoveu lives em seu canal no YouTube e fez a ponte entre o Palácio do Planalto e um grupo de médicos entusiastas e defensores da cloroquina, o "Médicos pela Vida".
Simone também virou referência para outras pessoas apontadas como membros do "gabinete paralelo", como o virologista Paolo Zanotto e o médico e tenente da Marinha Luciano Dias Azevedo.
Zanotto, biólogo com mestrado e doutorado em virologia, tornou-se um dos alvos da CPI da Covid depois de um vídeo revelado pelo portal "Metrópoles", na semana passada. As imagens mostram o "gabinete paralelo" em ação, com uma reunião no Palácio do Planalto da qual participaram Bolsonaro, o deputado Osmar Terra (MDB-RS), a médica Nise Yamaguchi e outros defensores da cloroquina.
Durante o encontro, Zanotto aconselha Bolsonaro a tomar "extremo cuidado" com as vacinas contra a covid-19. "Não tem condição de qualquer vacina estar realisticamente na fase 3", afirmou ele, à época. Posteriormente, em raciocínio semelhante ao da americana Simone Gold, o biólogo declara que talvez fosse melhor não ter o imunizante.
"Com todo respeito, eu acho que a gente tem que ter vacina, ou talvez não."
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