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CPI: Depoente 'esquece' o próprio salário e é cobrado por áudio com lobista

Luciana Amaral e Hanrrikson de Andrade

Do UOL, em Brasília*

26/08/2021 04h00Atualizada em 26/08/2021 19h40

O ex-secretário da Anvisa José Ricardo Santana disse hoje à CPI da Covid não se recordar do próprio salário, negou ter atuado em favor de empresas privadas em negociações de vacinas e foi cobrado a explicar um áudio em que ele pede apoio a um suposto lobista e faz comentários a respeito de compra de testes de covid-19.

O interlocutor foi identificado pelo relator da Comissão Parlamentar de Inquérito, Renan Calheiros (MDB-AL), como Marconny Albernaz. Ele já possui requerimento de convocação aprovado para comparecer ao colegiado.

Em um dos trechos do diálogo, Santana relata que um plano de retomada econômica em meio à pandemia seria apresentado ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao fim da mensagem, ele afirma que o suposto lobista era "fundamental".

"A gente está nessa toada, amigo. Tudo pelo Brasil. Eu conto com você para você nos ajudar. Você é fundamental."

O relato de Santana também surpreendeu parlamentares à medida que ele não soube explicar com clareza o motivo pelo qual teria deixado um cargo de direção na Anvisa para atuar informalmente em favor do governo do presidente Bolsonaro.

O ex-secretário-executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos da Anvisa e um dos participantes de jantar em que supostamente houve pedido de propina, José Ricardo Santana - Jefferson Rudy/Agência Senado - Jefferson Rudy/Agência Senado
O ex-secretário-executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos da Anvisa e um dos participantes de jantar em que supostamente houve pedido de propina, José Ricardo Santana
Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

Questionado sobre os seus vencimentos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o depoente respondeu que não se lembrava. Também alegou que teria optado por se desligar do cargo por decisão pessoal, sem oferecer detalhes.

Após deixar a Anvisa, Santana passou a atuar no departamento de logística do Ministério da Saúde, então sob comando de Roberto Dias, servidor que manteve conversas iniciais com representantes da empresa americana Davati Medical Supply para a compra de vacinas.

Santana foi chamado a prestar esclarecimentos à CPI depois de ter sido apontado como um dos presentes no restaurante Vasto, em Brasília, em 25 de fevereiro, do qual também participaram Dias, o policial e lobista Luiz Paulo Dominghetti e o ex-assessor do Ministério da Saúde Marcelo Blanco.

Foi nesse encontro que, segundo Dominghetti, Dias teria solicitado propina para levar adiante proposta da Davati, que tentava vender ao governo um suposto lote de 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca. As conversas não avançaram.

Tanto Dias como Blanco negam ter solicitado ou presenciado pedido de vantagem ilícita. A presença de Santana foi confirmada pelo ex-diretor de logística, que o chamou de amigo. Dias alegou que estava no restaurante apenas para tomar um chope com Santana e que, "na sequência, o coronel Blanco chega com esse senhor, que posteriormente foi identificado como Dominghetti", sem seu conhecimento prévio.

Trabalho sem remuneração

Na CPI, Santana afirmou que não recebia remuneração pelo trabalho junto a Dias no departamento de logística do ministério.

"O senhor saiu da Anvisa porque foi convidado para ir pro Ministério da Saúde, correto?", questionou o presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM).

"Não, senhor. (...) Eu deixei a Anvisa por vontade própria", disse o depoente.

"Por vontade própria? E qual era a perspectiva sua de trabalhar? Onde o senhor iria trabalhar? 'Bom, eu vou deixar de ter um salário da Anvisa, como é que eu vou viver daqui pra frente? Vou fazer o que na vida?' Aí o senhor vai para o Ministério da Saúde, correto?", rebateu Aziz.

"Sim, senhor."

"O senhor tinha salário no Ministério da Saúde?", indagou o presidente da CPI.

"Não, senhor", replicou Santana.

"Agora você... Olha, vou dizer, o Brasil está precisando de muitos brasileiros iguais: o cara deixa de receber um salário para ir trabalhar no Ministério da Saúde sem receber nada", comentou o chefe do colegiado.

Posteriormente, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) obteve informações junto à Anvisa que o salário de Santana no órgão era de aproximadamente R$ 20 mil, líquidos.

"Está vendo, Brasil, como é esse governo? Tem tanta gente que vai lá para não ganhar nada, deixa seus afazeres, deixa de receber salário, e vão pra lá. Todos que sentam aqui queriam ajudar o Brasil. Isso que é governo bom", ironizou Omar Aziz.

Santana, que teve a quebra de seus sigilos aprovada na comissão, é ex-secretário-executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, órgão interministerial cuja secretaria-executiva cabe à Anvisa.

Envolvimento com a Precisa

Nas indagações sobre suposto envolvimento de Santana com os interesses da Precisa Medicamentos —intermediária da negociação da Covaxin—, o depoente chegou a responder questionamentos iniciais, mas depois mudou de estratégia e optou por se calar.

Ele foi beneficiado por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que permite o silêncio caso o favorecido entenda que há risco de autoincriminação.

O pedido de convocação de Santana foi elaborado pelo relator da CPI. No texto, o senador escreveu que Santana "também tem ligação direta com Francisco Emerson Maximiano, seus sócios e empresas — entre elas, a Precisa Medicamentos".

Santana chegou a confirmar que conhece Francisco Emerson Maximiano, mas classificou a relação como "superficial". Ele também disse nunca ter tratado com o empresário sobre negociações de vacinas. Já quanto às circunstâncias de sua atuação em favor da Precisa, como uma viagem realizada a Índia (país de origem da Covaxin), o depoente optou por ficar em silêncio.

A Precisa, que atuava como representante comercial do laboratório indiano Bharat Biotech, assinou contrato em fevereiro deste ano para vender ao Ministério da Saúde 20 milhões de doses da vacina Covaxin, ao custo de R$ 1,6 bilhão.

Em depoimento à CPI, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, Luis Ricardo Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde, denunciaram suspeitas de irregularidades envolvendo o contrato. Após a denúncia e o aparecimento de mais suspeitas de irregularidades, o contrato foi suspenso.

Ao depor aos senadores, Maximiano disse conhecer Santana, mas não manter relação com ele, O empresário da Precisa preferiu ficar em silêncio ao ser questionado sobre o motivo pelo qual Santana também foi à Índia para negociar imunizantes.

Áudio expõe conversa com lobista

No áudio apresentado pela CPI, Santana se apresenta como articulador de uma "força-tarefa" que teria como missão principal elaborar um "plano" baseado em "3 pilares": uma nova abordagem na divulgação de "resultados de governo", prevenção e retomada econômica.

"Tudo isso dentro de atividades que venham contribuir substancialmente para a imagem do governo", declarou ele a Marconny Albernaz. Pouco antes do envio da mensagem de áudio, segundo o próprio Santana, ele havia passado a madrugada na casa da médica Nise Yamaguchi (que ficou conhecida publicamente por defender o uso de cloroquina) para discutir os detalhes.

Em outro trecho do diálogo, Santana explica que um dos itens desse "plano" seria a ampliação da capacidade de testagem contra a covid-19. Para tal, seria necessário, segundo ele, "trabalhar para destravar e avançar em uma agenda positiva".

Senadores da CPI cobraram explicações do depoente a respeito do que seria "destravar" eventuais processos relacionados à aquisição de testes.

O tema é de interesse direto da Precisa Medicamentos, que já vendeu o produto para unidades federativas, como o Distrito Federal, e é investigada pelo MPF (Ministério Público Federal) por indícios de irregularidades em tais transações. Além disso, de acordo com o relator, Marconny teria atuação como lobista em favor dos interesses da Precisa.

Membros da comissão desconfiam que o teor da conversa entre Santana e Marconny fazia referência a uma suposta tentativa de fraude em licitação do Ministério da Saúde.

De acordo com Renan, Santana e outros agiram com o objetivo de "fraudar a licitação de compra de testes rápidos pelo Ministério da Saúde. Esses testes a que ele se referiu [no diálogo com Marconny], que eram objeto de estudo", declarou o relator.

Renan disse ainda que o "plano" foi feito para "desclassificar os primeiros colocados e favorecer a Precisa Medicamentos, que apresentou proposta quatro vezes maior que a primeira colocada, em contrato de mais de R$1 bilhão —esse contrato era um contrato de mais de R$1 bilhão".

"A licitação não foi concluída, porque o Ministério da Saúde, na sequência, resolveu não comprar, decidiu não comprar esses testes rápidos."

Mais tarde, os senadores revelaram mensagens antes sob sigilo e apontaram suposta tentativa de favorecer a Precisa Medicamentos em compra do Ministério da Saúde de testes rápidos de detecção do novo coronavírus.

Segundo a cúpula da CPI, há indícios de que José Ricardo Santana atuou em suposto esquema para que empresas mais bem colocadas do que a Precisa no processo fossem desclassificadas com a eventual ajuda do então diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias. O contrato seria de mais de R$ 1 bilhão, segundo os senadores.

Vice da CPI, Randolfe Rodrigues revelou durante o depoimento de Santana prints de mensagens trocadas entre o depoente e Marconny, de acordo com o senador.

Uma das mensagens divulgadas cita a "arquitetura ideal para prosseguir" (no processo de compra) e um passo a passo para que a negociação na pasta seja revista por "Bob", quem os senadores acreditam se tratar de Roberto Dias.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.