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Saudade, calor intenso e apreensão: a rotina dos indígenas acampados no DF

Ana d'Angelo

Colaboração para o UOL, em Brasília

28/08/2021 04h00

Com pouca roupa na mala e nenhum dinheiro no bolso, a caiapó Mayalu Txucarramãe, de 33 anos, mãe de quatro filhos, deixou sua terra, no território Capoto/Jarina, em Mato Grosso, e, com mais 120 indígenas, entre homens, mulheres e crianças, viajou quase 1.800 km de ônibus durante dois dias, até o Distrito Federal. Na capital federal, o grupo se juntou aos quase 6.000 indígenas integrantes de 176 povos que existem no Brasil, no maior acampamento indígena do país, segundo os organizadores.

O motivo é o julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) de um recurso da Funai (Fundação Nacional do Índio) contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que não reconheceu o direito dos povos xokleng, guarani e kaingang a uma área que ocupam em Santa Catarina.

O TRF-4 aceitou a chamada tese do "marco temporal", que reconhece como terras indígenas para demarcação somente as que já estavam ocupadas por eles até a promulgação da Constituição Federal, em 1988.

Embora trate de um único caso, o posicionamento do STF tende a se estender a todas as demarcações já feitas no país ou em andamento. O julgamento começou na última quinta-feira, mas foi adiado para dia 1º de setembro. Até lá, parte dos manifestantes terá ido embora.

Mayalu Txucarramãe - Ana D'Ângelo/UOL - Ana D'Ângelo/UOL
Mayalu Txucarramãe, 33, viajou mais de 1.800 km para participar de ocupação no DF
Imagem: Ana D'Ângelo/UOL

Mesmo sentindo muita falta do marido e dos quatro filhos menores que ficaram em Mato Grosso, Mayalu vai permanecer na capital federal. Com o risco de expulsão de tantos indígenas de suas terras, ela está em Brasília com o propósito de se juntar às mulheres de outros povos indígenas. "É necessário. Vivemos de resistência. São anos e anos dormindo alertas", conta ela.

Na organização social indígena, são os homens que ficam à frente na defesa do território. As mulheres cuidam da casa, da alimentação e dos filhos. "Cada povo tem sua divisão de trabalho e cada integrante, sua função dentro do território. O da mulher é bem definido", diz Mayalu.

Ela conta, porém, que a situação está ficando tão dramática para os povos indígenas que as mulheres estão indo também para a linha de frente, para fortalecer a luta que vem sendo liderada pelos homens. "Sem terra, não há divisão de trabalho em nossos territórios", afirma. "Nós que damos a vida, cuidamos das crianças, da alimentação do marido, dos pais. Temos que mostrar à sociedade brasileira que existimos e temos voz, que precisamos ser ouvidas."

Acari Pataxó, de 35 anos, também está em Brasília há oito dias. Ele é da Aldeia Pataxó, em Coroa Vermelha, perto de Porto Seguro (BA). Enfrentou 28 horas de ônibus com outros de 500 indígenas da mesma região. Aproveitou a estada para montar sua barraquinha para vender peças de artesanatos. Diz que está vendendo bem. "Têm vindo muitos visitantes", conta ele, referindo-se aos moradores do Distrito Federal. Um dos itens mais vendidos é um joguinho de madeira para adivinhar a idade da pessoa. Custa R$ 20,00.

Acari Pataxó - Ana d'Ângelo/UOL - Ana d'Ângelo/UOL
Acari Pataxó, 35, viajou mais de 28 horas de ônibus desde Porto Seguro (BA) até o DF
Imagem: Ana d'Ângelo/UOL

Refeições e água potável

O acampamento foi montado para garantir condições razoáveis de permanência dos milhares de manifestantes. Eles recebem refeições, água mineral e potável e contam com banheiros químicos e chuveiros.

Uma cozinha foi montada obedecendo as normas de higiene, tendo recebido inclusive visita de técnicos da Vigilância Sanitária, segundo a organização. Há um posto de atendimento à saúde, com profissionais da Universidade de Brasília e voluntários - médicos, enfermeiros, massagistas, acupunturistas. Foram feitos cerca de 8 mil testes de covid-19.

Cozinha - Ana d'Ângelo/UOL - Ana d'Ângelo/UOL
Cozinha montada no acampamento recebeu visita de técnicos da Vigilância Sanitária
Imagem: Ana d'Ângelo/UOL

Um caminhão-pipa abastece os chuveiros todo dia. A coordenação do movimento também paga pelo uso de um gerador de energia elétrica. Na sexta-feira (27), foram distribuídos picolés para todos eles por causa do imenso calor que tem feito na capital. Os manifestantes têm estranhado o tempo seco.

Para viabilizar a ida e a permanência dos indígenas durante tantos dias em Brasília, cada território se encarregou da organização dos seus grupos, com campanhas de arrecadação de recursos pelas redes sociais.

A Apibb (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) cuida da organização geral no acampamento. Há distribuição de colchões, cobertores. Todos os dias chegam doações de alimentos. Vários artistas já estiveram no local dando apoio, como o Dj Alok, Maria Gadu e Letícia Sabatella.

Indígenas acampados - Ana d'Ângelo/UOL - Ana d'Ângelo/UOL
Indígenas acampados aguardam resultado de julgamento que deverá ser um divisor de águas no tema da demarcação das terras no país
Imagem: Ana d'Ângelo/UOL

O coordenador da Apibb, Dinamam Tuxá, de 32 anos, espera que o STF reconheça o direito originário dos povos indígenas. "Concordando ou não, vamos aceitar, porque respeitamos o ambiente democrático. Mas vamos em busca dos nossos direitos", disse ele, referindo-se à Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão autônomo da OEA (Organização dos Estados Americanos), entre outros organismos internacionais.

Durkwe Krêka, de 25 anos, é um dos cem indígenas da etnia xakriabá que estão acampados em Brasília. Desconfiado, é de poucas palavras. Seu território, localizado em São João das Missões, no norte de Minas Gerais, sofre o ataque clandestino e constante de madeireiros, pois está muito perto de áreas ocupadas por não indígenas. "Entram e tiram a madeira", lamenta. Ele diz temer pela decisão dos ministros do STF. "Não dormimos mais em paz."