Topo

exclusivo

Caixa muda regras e corta liberação de crédito após derrota de Bolsonaro

Do UOL, em São Paulo

25/11/2022 04h00

Após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições, a Caixa Econômica Federal mudou regras e cortou a liberação de crédito consignado do Auxílio Brasil. O banco também suspendeu outras modalidades de empréstimos que vinham sendo concedidas para clientes com alto risco de inadimplência.

É o que mostram documentos internos acessados pelo UOL.

Publicamente, a Caixa não anunciou nenhuma alteração no consignado do Auxílio — modalidade que foi iniciada após o primeiro turno e despejou bilhões antes da rodada final das eleições. Mas orientações internas do banco e mudanças nos sistemas indicam um corte maciço na liberação de dinheiro.

Em 14 de novembro, a instituição mandou um comunicado interno para agências e correspondentes bancários informando que atualizou a lista de pessoas impedidas de contratar o consignado do Auxílio — o documento foi confirmado pelo UOL com fontes de três estados. A nova lista restringiu drasticamente o fornecimento de novos créditos.

No período eleitoral, fazíamos cerca de 30 consignados do Auxílio por dia, poucos eram negados. Agora, quase todos são negados."
Funcionário da Caixa em Curitiba (PR), que, temendo retaliação, pediu para não ser identificado na reportagem

"Desde 14 de novembro, ninguém foi aprovado [na minha agência]. Mas o motivo não está claro. Só sabemos que os clientes não conseguem mais fazer o consignado", conta funcionária da Caixa em Belo Horizonte (MG), também sob anonimato.

Documento interno da Caixa informa mudanças no consignado do Auxílio Brasil a partir de 14/11/2022 - Reprodução - Reprodução
Documento interno da Caixa informa mudanças no consignado do Auxílio Brasil a partir de 14/11/2022
Imagem: Reprodução

Além das mudanças no consignado do Auxílio, pelo menos três linhas de crédito para clientes com maior propensão à inadimplência ("rating C" na classificação da Caixa) foram interrompidas após a derrota de Bolsonaro, sem explicação. Em 9 de novembro, as agências receberam comunicados informando que a "modalidade [foi] suspensa por tempo indeterminado".

A interrupção chamou a atenção porque as linhas de crédito eram antigas. Além disso, a medida foi anunciada no dia seguinte a uma queda geral do sistema do banco, que afetou agências e lotéricas de todo o país, algo atípico. A Caixa negou que os episódios tenham relação.

Sobre as mudanças nas regras dos empréstimos, a Caixa disse apenas que "a concessão de crédito obedece a critérios internos de governança, com base no contexto de mercado, no monitoramento de seus produtos e nas estratégias do banco".

Liberação em massa no período eleitoral

O consignado do Auxílio Brasil foi criado por medida provisória de Bolsonaro, aprovada no Congresso em julho. A liberação dos créditos, porém, só começou nove dias depois do primeiro turno, quando Bolsonaro teve seis milhões de votos a menos que Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A medida possibilita o desconto automático de até 40% do valor recebido pelo Auxílio Brasil para pagar o crédito. Os juros chegam a 50% ao ano.

A Caixa é o único banco de grande porte — e o único estatal — autorizado a conceder o consignado. Antes do segundo turno das eleições, bastavam alguns cliques no aplicativo CaixaTem, por meio do qual o Auxílio Brasil é liberado, para solicitar o dinheiro. Também era possível pedir o crédito em lotéricas ou agências da Caixa.

No início da operação, segundo fontes consultadas pelo UOL, poucos pedidos do consignado eram negados. Apenas nos três primeiros dias, de 11 a 13 de outubro, a Caixa liberou R$ 1,8 bilhão para cerca de 700 mil beneficiários do Auxílio Brasil.

A cifra chamou a atenção do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União), que solicitou a suspensão do consignado. "Não seria desarrazoado supor que o verdadeiro propósito dessas ações seja o de beneficiar eleitoralmente o atual presidente da República e candidato à reeleição", escreveu a procuradoria.

Documento enviado pela Caixa ao TCU e divulgado pelo jornal O Globo mostra que, até 21 de outubro, o banco liberou R$ 4,3 bilhões no consignado do Auxílio.

Após a derrota de Bolsonaro no segundo turno, o processo de concessão do crédito pela Caixa mudou radicalmente. Em 1º de novembro, o banco interrompeu temporariamente a análise de novos créditos alegando "processamento da folha de pagamento do Auxílio Brasil".

Um cartaz afixado na porta das agências diz que a liberação do empréstimo seria retomada em 14 de novembro. Mas, nesse dia, foram implementadas as mudanças que limitaram quem pode pedir o empréstimo pela Caixa.

"Os parâmetros da base restritiva foram atualizados e carregados em todos os canais", diz documento interno da Caixa, distribuído no dia 14, acessado pelo UOL.

Desde então, quando os dados do interessado são consultados nos sistemas do banco, é exibida uma mensagem padrão dizendo que o cliente foi incluído na lista de restrição em 14 de novembro e, por isso, não pode pegar o empréstimo. "Não há oportunidade de contratação do crédito para você", diz a página da Caixa, sem indicar o motivo da negativa.

Documento interno da Caixa de 09/11/2022 comunica suspensão de créditos para clientes com alto risco de inadimplência - Reprodução - Reprodução
Documento interno da Caixa de 09/11/2022 comunica suspensão de créditos para clientes com alto risco de inadimplência
Imagem: Reprodução

'Todas as minhas amigas pegaram antes das eleições'

No Grajaú, periferia de São Paulo, a vendedora de água Amanda, de 34 anos, foi a duas agências da Caixa e a uma lotérica na última semana para pedir o consignado. Mãe de cinco filhos, com idades de um a 14 anos, não quis ter o sobrenome divulgado na reportagem com receio de que o governo barrasse o crédito. A conversa foi gravada.

"Todas as minhas amigas pegaram [o consignado] antes das eleições. Eu deixei para fazer depois e deu errado", reclama.

"Fiquei três horas na fila. Quando chegou minha vez, o atendente falou: 'Você não vai conseguir. Eles [políticos] estão numa briga entre eles e a Caixa não está liberando. Enquanto eles não resolverem lá, não vai liberar aqui'", conta Amanda.

Eu acho que é porque o presidente [Bolsonaro] perdeu que pararam de liberar [o consignado do Auxílio Brasil]."
Amanda (sobrenome omitido a pedido), 34 anos, beneficiária do Auxílio Brasil que teve consignado negado pela Caixa

Na porta de uma das agências onde Amanda tentou o consignado, o atendente da Caixa explicou para a reportagem: "O consignado está suspenso. Ninguém está conseguindo".

Perto dali, em uma lotérica em Cidade Dutra, uma das funcionárias corroborou: "Foi cancelado. Depois das eleições, não libera mais. E acho que nem vai voltar a liberar". A explicação foi ouvida em todas as agências e lotéricas visitadas pela reportagem em São Paulo.

Cartaz afixado nas fachadas de agências da Caixa diz que o consignado voltaria em 14/11, sem citar cortes - Amanda Rossi/UOL - Amanda Rossi/UOL
Cartaz afixado nas fachadas de agências da Caixa diz que o consignado voltaria em 14/11, sem citar cortes
Imagem: Amanda Rossi/UOL

PGR diz que consignado é inconstitucional

O consignado do Auxílio Brasil é questionado por uma ação direta de inconstitucionalidade proposta ao STF (Supremo Tribunal Federal) pelo PDT. Para o partido, o empréstimo é um "cavalo de Troia", pois ajuda o beneficiário no curto prazo, mas "agrava a fragilidade econômica" no longo prazo.

No âmbito da ação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou que o consignado é inconstitucional. A posição gerou surpresa, já que Aras se mostrou alinhado a Bolsonaro em outras ocasiões.

Os tomadores de empréstimos consignados estarão no caminho do superendividamento. Tratando-se dos beneficiários dos programas de transferência de renda, esse cenário mostra-se ainda mais preocupante, pois potencialmente comprometedor da dignidade humana."
Augusto Aras, procurador-geral da República, em parecer de 14 de novembro

A Caixa, por sua vez, tem se negado a informar quanto já liberou para o consignado do Auxílio Brasil. A reportagem questionou o banco pela Lei de Acesso à Informação, mas já recebeu duas negativas.

"A Caixa deveria abrir sua caixa-preta", opina Sérgio Lazzarini, professor da Ivey Business School, no Canadá, e do Insper, no Brasil.

Lazzarini foi pioneiro no estudo de dados do BNDES, banco acusado por Bolsonaro de ter uma "caixa-preta" na época do PT. Porém, o BNDES adotou uma série de medidas de transparência já em 2015, após determinação do STF. Agora, sob Bolsonaro, é a Caixa que se recusa a dar transparência a seus dados.

"A Caixa precisa seguir o exemplo do BNDES. É uma empresa estatal executando políticas públicas e recebendo recursos públicos. As suspeitas sobre uso eleitoral [do consignado do Auxílio Brasil] ampliam a necessidade de transparência", diz Lazzarini.