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Governo esperou eleição para apurar suspeita em cadastros do Auxílio Brasil
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O Ministério da Cidadania publicou, no último dia 4, uma instrução normativa conjunta para dar início a uma investigação sobre benefícios pagos a famílias unipessoais cadastradas nos últimos 12 meses por meio do Cadastro Único de programas federais, o CadÚnico.
O número de famílias com um único integrante no cadastro aumentou em 5 milhões em apenas 11 meses (veja os números abaixo). Para receber o Auxílio Brasil, por exemplo, o beneficiário precisa estar registrado no CadÚnico, mas ele também serve para quem está em outros programas sociais.
A suspeita é que tenham acontecido vários desmembramentos fictícios de núcleos familiares para aumentar o valor recebido em um domicílio. Até a instrução, não tinha havido normativa de fiscalização devida para casos assim. Entre o fim do Bolsa Família (outubro de 2021) e setembro deste ano, percentual de famílias com um único membro passou de 15% para 26%.
O que chama a atenção é o momento da publicação das diretrizes. Isso apenas ocorreu após o segundo turno das eleições para a Presidência. Mas, desde o final do ano passado, estados e municípios já alertavam o governo federal para o crescimento de famílias com apenas uma pessoa.
De novembro de 2021 até setembro deste ano, pelo menos 3,6 milhões de brasileiros passaram a receber o Auxílio Brasil por meio de cadastro novo em que informava ser integrante solitário de uma família. Os dados detalhados de outubro e novembro ainda não estão disponíveis no sistema.
Com a publicação da instrução, estados e municípios devem atuar para averiguar a situação real de cada uma das famílias em suspeita.
Segundo a normativa, a averiguação cadastral deve ser feita em todas as famílias unipessoais com cadastro incluído ou atualizado após novembro de 2021 e com renda familiar de até meio salário mínimo (ou R$ 606 em valores atuais) por pessoa.
"Foi observado um aumento gradativo do número de famílias unipessoais ao longo da história do Cadastro Único, que se intensificou após novembro de 2021, passando de 8.929.623 milhões para 13.912.102 milhões em outubro de 2022", diz boletim enviado a estados e municípios no dia 9 de novembro.
O Ministério da Cidadania quer compreender o motivo pelo qual houve esse aumento significativo de registros unipessoais."
Boletim do Ministério da Cidadania
Em agosto, havia 5,3 milhões de famílias unipessoais recebendo o Auxílio Brasil, bem superior a outubro de 2021, quando ainda existia o Bolsa Família e havia 2,2 milhões de casos assim.
A diferença nos números ocorre porque nem toda família inscrita no CadÚnico recebe Auxílio Brasil, seja porque ainda aguarda a liberação, seja porque não teve o perfil aprovado para o benefício. Além disso, o dado mais atual informado do CadÚnico é de outubro, já o do auxílio é de agosto.
Segundo determina a lei do CadÚnico, família é classificada como "unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas atendidas por ela, todas moradoras do mesmo domicílio".
O desmembramento de uma família em dois ou mais cadastros "constitui fraude e afeta outros usuários". A prática pode levar à perda dos benefícios do governo. "O cadastro deve refletir as condições da família no momento da entrevista."
Segundo a instrução, as pessoas nessa condição já estão sendo notificadas por meio de mensagens no extrato de pagamento dos benefícios e pelo aplicativo do programa. Famílias beneficiárias da Tarifa Social de Energia Elétrica também podem ser comunicadas nessa fatura. A folha de novembro começou a ser paga ontem.
Em resposta à coluna, o Ministério da Cidadania informou que "iniciou ação específica para tratamento das famílias unipessoais em setembro de 2022, data anterior às eleições."
"Conforme Instrução Operacional nº 1/2022, o processo de Focalização do Programa Auxílio Brasil incluiu dois novos públicos, compostos por famílias unipessoais que, em sua maioria, apresentam data de ingresso recente no Cadastro Único. Além disso, a pasta também priorizou, junto à Dataprev, processo para tratamento de todo o público do Cadastro Único", diz a pasta.
O UOL acessou a instrução citada, e ela apenas "orienta sobre os procedimentos a serem aplicados pela gestão municipal do Cadastro Único em relação ao acesso aos registros administrativos que compõe o Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) disponíveis no Portal Cadastro Único." Em nenhum momento fala em averiguação de dados de famílias unipessoais.
TCU apontou problemas no cadastro
O caso chamou a atenção do TCU (Tribunal de Contas da União), que citou que o novo modelo adotado pelo governo federal estimula distorções.
"O TCU está concluindo, provavelmente nas próximas semanas, a avaliação mais completa que já fizemos do programa Auxílio Brasil, mostrando inclusive a comparação entre o Bolsa Família e o Auxílio, a partir do desenho e critério de elegibilidade", afirmou o presidente do TCU, Bruno Dantas.
Para ele, algumas das conclusões da investigação mostraram que o Auxílio Brasil tem incentivado o fracionamento de núcleos familiares para o recebimento de mais recursos. "Prejudica famílias que não podem ser decompostas, como mães com dois ou três filhos pequenos", informou.
Ciente da investigação do TCU e tentando uma solução ágil antes da mudança de gestão, o governo federal realizou na quarta-feira uma reunião virtual dos gestores do programa com os estados. Foi cobrada a busca pelas famílias para tentar fazer a regularização dos benefícios já na folha de dezembro.
Alerta foi dado desde o início do ano
Segundo apurou o UOL junto a vários coordenadores do CadÚnico pelo Nordeste, o alerta dos gestores municipais e estaduais não é novo. O ministério sabia que havia uma procura desproporcional de famílias com uma pessoa desde o início do ano, o que levanta a suspeita de desmembramento do núcleo para fins apenas cadastrais.
Eles afirmam que deram esse aviso e apontaram que o modelo prejudicava famílias maiores, que não tiveram direito a reajuste no valor do benefício.
Segundo os gestores, os municípios passaram a receber demandas de pessoas que teriam entendido o fim do Bolsa Família como uma mudança na forma de receber o benefício. Para elas, se tratava de um auxílio similar ao emergencial, pago durante a pandemia: "Ou seja, eles trataram o Auxílio Brasil como pagamento individual, não mais familiar", disse um dos coordenadores, sob a condição de anonimato.
Além disso, reportagens no UOL e em vários outros veículos de comunicação mostraram a alta desproporcional de famílias com apenas um integrante.
Apesar das informações, o governo federal não tomou nenhuma ação prática e continuou ampliando o número de beneficiários até a realização do segundo turno das eleições. Sempre que o ministério foi questionado pela coluna em outras oportunidades, ignorou os pedidos e não respondeu sobre o caso.
No período pré-eleitoral, a pasta também suspendeu os bloqueios dos benefícios por descumprimento das condicionantes de saúde e educação.
Alta foi desproporcional
O aumento de famílias unipessoais fez com que o percentual desse grupo em relação ao total de beneficiários alcançasse, em setembro, 26% do total da folha paga.
Naquele mês, 54% de todos os novos benefícios foram concedidos a famílias com apenas uma pessoa, quase quatro vezes a média nacional do tamanho das famílias.
O percentual das famílias unipessoais no Auxílio Brasil destoa do dado histórico do programa, que era o mesmo da média de domicílios no país com apenas uma pessoa segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ou seja, 15%.
No caso do Bolsa Família, extinto em outubro do ano passado, essa média também se manteve historicamente próxima, entre 13% a 17%.
* Colaborou Amanda Rossi, do UOL em São Paulo.
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