Caso Marielle deveria ter sido federalizado desde o início, diz ex-PGR
A subprocuradora Raquel Dodge, que comandou a Procuradoria-Geral da República entre 2017 e 2019, afirmou ao UOL que "mantém convicção" de que o caso Marielle Franco de que se trata de um "crime contra a democracia" e deveria a ter sido "federalizado".
O que aconteceu? A proposta voltou a ganhar corpo nesta semana após o ministro Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) afirmar que estuda federalizar as investigações. A ministra Anielle Franco (Igualdade Racial), irmã da ex-vereadora, disse que a família discutirá o tema nos próximos dias — até então, eram contrários à medida.
Como PGR, Dodge apresentou em 2019 uma ação para retirar o caso da instância estadual e movê-lo para a federal. O pedido de federalização, porém, foi rejeitado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 2020.
Eu mantenho a convicção que esse era um caso que deveria ter sido federalizado desde o início. O assassinato da Marielle e do motorista [Anderson Gomes] é um caso de grave violação de direitos humanos porque ela era uma representante eleita pelo povo. Não é um assassinato qualquer"
Raquel Dodge, subprocuradora e ex-procuradora-geral da República
A federalização de uma investigação é uma situação rara no Judiciário. Dados levantados pelo STJ a pedido do UOL contabilizam apenas cinco casos federalizados desde 2004, quando o instrumento passou a constar na Constituição Federal.
Chamado de Incidente de Deslocamento de Competência, o pedido de federalização é apresentado exclusivamente pela PGR, é julgado pelo STJ e deve envolver situações de "grave violação de direitos humanos".
Para Dodge, o caso Marielle preenchia esse requisito em razão da relação do assassinato com a atividade parlamentar da ex-vereadora e suspeitas de desvios nas investigações estaduais.
Em seu último dia no cargo, em setembro de 2019, a ex-PGR denunciou cinco suspeitos de fraudar as apurações, incluindo o ex-conselheiro do Tribunal de Contas fluminense Domingos Brazão.
Era um crime contra a democracia e que precisava ser investigado no plano federal para que se chegasse na identificação de quem executou, quem intermediou e quem mandou matar Marielle"
Raquel Dodge
Ministério da Justiça quer priorizar cooperação. Dentro do governo Lula (PT), a federalização do caso via PGR é um dos caminhos possíveis estudados, mas não o principal. Segundo o UOL apurou, inicialmente o Ministério da Justiça quer priorizar uma cooperação entre a Polícia Federal e a Polícia Civil.
Outro caminho seria enquadrar o caso Marielle em uma lei de 2002, mas esse caminho é considerado incomum segundo subprocuradores consultados pelo UOL. O texto diz que a PF pode proceder à investigação de casos relativos à violação a direitos humanos "quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme".
Na terça (3), o ministro Flávio Dino confirmou que buscará o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), para discutir o tema. Para Dino, a ação via PGR é apenas "uma via".
Temos a possibilidade legal de um ministro da Justiça determinar à PF que também atue [no caso]. Esse é um outro caminho de federalização que se refere à investigação. É um conjunto de caminhos possíveis. O primeiro momento é essa oferta de cooperação"
Flávio Dino, ministro da Justiça
Na gestão Dodge, porém, a PF foi acionada para investigar justamente a atuação dos investigadores estaduais no caso. Hoje, a ex-PGR minimiza que o episódio possa criar desconforto em uma possível colaboração entre os órgãos.
"A gente tem que separar o pessoal do profissional. Questões como ficar magoado, causar constrangimento, eu acho que não cabe em um nível profissional que queremos para as instituições do Brasil", disse.
Histórico demonstra que federalização é medida excepcional:
- Apenas cinco casos foram aceitos pelo STJ desde 2004, segundo levantamento do próprio tribunal;
- Outras duas ações do tipo ainda aguardam julgamento na Corte;
- E cinco pedidos foram rejeitados.
O primeiro pedido de federalização envolveu o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, em 2005. Apesar da repercussão internacional do crime, a federalização foi negada pelo STJ.
O primeiro caso efetivamente federalizado foi o assassinato do vereador Manoel Mattos, morto em janeiro de 2009. Ele denunciava grupos de extermínio com a participação de policiais que atuavam na divisa entre Pernambuco e Paraíba. O caso foi aceito pelo tribunal em 2010.
No caso Marielle, o pedido de federalização foi rejeitado por unanimidade pela 3ª Seção do STJ. A relatora, ministra Laurita Vaz, afirmou na ocasião que não via necessidade de tirar o caso dos investigadores estaduais.
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