A onda que não passa

Brasil ultrapassa 400 mil mortes pela covid-19 ainda sem medidas efetivas para conter a pandemia

Lucas Borges Teixeira Do UOL, em São Paulo Ettore Chiereguini/Estadão
Lucas Lacaz Ruiz/Estadão Conteúdo

Em 12 de março de 2020, o Brasil registrava seu primeiro óbito em decorrência da covid-19. Hoje, 29 de abril de 2021, a conta total já ultrapassa as 400 mil mortes —mais precisamente 400.021.

No pior momento de toda a pandemia no país, morreram, apenas em abril, até agora, 78.135 brasileiras e brasileiros —em números absolutos, a quantidade é superior ao de qualquer outra nação, ainda que o número de casos tenha aumentado globalmente e a situação na Índia cause preocupação. Aqui, neste mês, foram cerca de 2.700 mortes por dia, em média.

Entre janeiro e abril de 2021, a covid-19 matou mais de 205 mil pessoas em território nacional —mais do que em todo o ano passado (194.975). E ainda não se sabe quando os indicadores vão, de fato, cair.

Hoje, em números absolutos, só perdemos para os Estados Unidos no ranking de países com o maior número de mortos. Com 117 milhões de habitantes a menos, porém, o Brasil ultrapassa o vizinho do norte proporcionalmente em vidas perdidas depois do investimento agressivo em vacinação por lá.

Neste cenário, uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) foi aberta na terça-feira (27) no Senado para investigar a conduta do governo federal na pandemia, além de repasses federais a estados e municípios.

Rivaldo Gomes/Folhapress Rivaldo Gomes/Folhapress
Rivaldo Gomes/Folhapress

Isolamento, auxílio e vacina

A imunização ampla é a principal aposta para o controle da situação se somada a uma medida pouco popular: o lockdown.

Somado à garantia de auxílio financeiro, ou seja, com garantia de condições dignas de sobrevivência, o isolamento social tem garantido o controle do aumento do número de casos em alguns países e ajudado outros, como o Reino Unido, a retomar indicadores melhores.

Por aqui, não tivemos nem um nem outro. Houve casos pontuais de lockdown em municípios e regiões que se viram sem leitos nos hospitais ou insumos como oxigênio e medicamentos para intubação para os pacientes com covid.

E a vacinação anda a passos lentos e mal organizados. Além da pouca variedade de imunizantes, não há doses para completar o ciclo de imunização.

Até agora, perto de 15% da população tomou ao menos a primeira dose, e ainda não vacinamos além dos grupos prioritários. Para Domingos Alves, da USP de Ribeirão Perto, a reabertura de comércio e serviços, que ocorreu esta semana em diversos estados brasileiros, só poderia ser feita se pelo menos 50% da população estivesse imunizada.

Rubens Cavallari/Folhapress

É possível desacelerar?

O Brasil atingiu a marca dos 350 mil mortos por covid-19 em 10 de abril —apenas 17 dias depois de ter somado 300 mil mortos. Agora, de novo, foram mais 50 mil mortes em 19 dias.

Para especialistas, ainda é possível desacelerar esta trajetória desnorteada de óbitos, como mostram os exemplos internacionais. Mas é preciso uma mudança radical de postura por parte dos governos federal, estaduais e municipais, além de mais investimento na vacinação.

Médicos e cientistas afirmam que a preocupação tem que ser evitar mais uma escalada rápida nos indicadores ou um platô em um nível alto, com a permanência de milhares de casos e mortes diários durante um longo período.

Para melhorar, só um lockdown nacional usando protocolos consagrados internacionalmente. Fechar barreiras entre municípios e regiões, aeroportos, fazer sorotipagem das variantes. Não só fechar o comércio: é rastrear doentes, dar subsídios --um auxílio emergencial de R$ 150 não vai diminuir casos, mas matar de fome. E comprar vacinas. No ritmo que estamos, ainda vai morrer muita gente.

Domingos Alves, professor da FMUSP-Ribeirão

[Tem que] fechar o Brasil agora, hoje. Parar aeroporto, carro particular que não tem razão para estar na rua, parar as estradas. Tudo com ajuda financeira da ordem de R$ 1.400 para toda família. Enquanto vacina 3 milhões de pessoas por dia. Vai no mundo e abre o jogo: 'Somos uma ameaça global, preciso de 70, 100 milhões de doses'. Tem países com excedente, vai nos Brics, seja quem for, mas faça algo.

Miguel Nicolelis, professor da Duke University

Jorge Hely/FramePhoto/FOLHAPRESS Jorge Hely/FramePhoto/FOLHAPRESS

Brasil, pária internacional

Neste mês, membros do Parlamento Europeu acusaram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por crimes contra a humanidade pela sua gestão da covid e, na França, a defesa do governo pela cloroquina virou piada entre deputados. Essa imagem influencia diretamente nas negociações.

A postura internacional do governo atrapalhou o processo. Nós temos experiência consolidada de imunização em massa, mas um presidente que até dezembro dizia que não havia pressa para se vacinar.
Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da FAAP

Para além da política, outros países aumentaram as restrições a brasileiros: apenas oito deles aceitam a entrada de pessoas que saíram daqui.

[Neste ano, com Joe Biden] Os Estados Unidos passaram para um governo oposto em tudo: com preocupação com indicadores, abordagem com a população, zelo pelas vidas. A postura de um governo faz toda a diferença, até no uso da máscara pela população.

Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University

Em Israel, o [primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu ligava para a Pfizer de madrugada! O Chile começou a fechar acordos em abril [de 2020]. Veja como estão. O Brasil ficou para trás, desdenhando dos chineses, que foram os únicos que negociaram conosco.

Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da FAAP

Andrew Harnik-Pool/Getty Images

Os exemplos que não seguimos

As ações tomadas pelos países nos últimos 13 meses foram determinantes para o estágio em que cada um se encontra hoje. Os governos da China, da Nova Zelândia e do Japão controlaram a pandemia desde o primeiro semestre de 2020 com testagem em massa. Mas há exemplos de nações que também tiveram um 2020 desastroso, mudaram as estratégias neste ano e alcançaram bons resultados.

Não há, porém, política de vacinação que funcione sem medidas rígidas. Israel, por exemplo, vacinou rápido, mas teve restrições de circulação. Desde o dia 19 de abril, o país aboliu a obrigatoriedade de máscaras ao ar livre.

Para os pesquisadores, não é coincidência que a queda nos Estados Unidos se deu após a troca do republicano Donald Trump pelo democrata Joe Biden, que criou um comitê com especialistas em saúde pública para pensar estratégias nacionais no país pela primeira vez e freou a escalada de casos e mortes.

"A vacinação começou até um pouco tímida —não há um sistema de saúde pública nos EUA, como no Brasil —, mas, com o Biden, os estados passaram a ter orientações claras com gerência do governo federal, como tem de ser", afirma Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University. Em alguns estados, todas as faixas etárias a partir de 16 anos já estão sendo vacinadas.

Aqui, um comitê com representantes dos três poderes foi criado no mês passado, mas ainda não apresentou resultados.

TOLGA AKMEN/AFP

Reino Unido

O Reino Unido abriu 2021 como o primeiro país a iniciar vacinação, em dezembro, e uma paralela escalada da segunda onda da pandemia, com pico de 1.826 óbitos em 24 horas. No dia 5 de janeiro, o governo decretou lockdown. Três meses depois, os óbitos despencaram para menos de 20 por dia. "A trajetória mudou. O [primeiro-ministro] Boris Johnson tinha uma postura que permitia até a abertura de escolas. Com tudo fechado, o vírus não circula, não aumenta variante. E aí a vacina traz imunização, um potencializa o outro", explica Domingos Alves.

Erika Garrido/UOL

Estados Unidos

Os Estados Unidos investiram na compra de vacinas desde o ano passado, com Donald Trump --apesar de negar a gravidade da doença, ele apostou na imunização. Biden entrou e acelerou a vacinação. Com o maior número de mortes no mundo até o meio de janeiro, o país viu índice cair de 4.400 para menos de 500 por dia. "Com a vacinação, os óbitos caem, mas, sem o lockdown, já há alta de indicadores de novo. Então, tem queda, mas a que preço? Eles passaram de 300 mil novos casos por dia", diz Miguel Nicolelis, professor de Neurobiologia da Duke University.

Rubens Cavallari/Folhapress

Aqui também dá certo

Com 100% de ocupação de UTI (unidade de terapia intensiva) em fevereiro, Araraquara (SP) decretou lockdown de dez dias. Nas semanas seguintes, a lotação dos leitos diminuiu e as mortes despencaram: de 42 óbitos na primeira semana de março para 9 no fim de abril.

Agora, a prefeitura promove testagem comunitária —inclusive em estabelecimentos comerciais— e monitoramento do esgoto. Em caso de contaminação, não está descartado o lockdown regional.

Indicadores que permitem otimismo podem ser vistos também em Serrana (SP). No dia 17 de fevereiro, o Instituto Butantan começou o Projeto S, com imunização de 98% da população com a CoronaVac, concluído em 11 de abril. Quando pouco mais de 60% da população havia sido vacinada, o número de casos havia caído 78%.

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