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Crise em Manaus 'era inevitável, mas poderíamos ter impedido colapso', diz cientista da Fiocruz que sugeriu lockdown em setembro

O Estado do Amazonas contabiliza até o momento 223.360 casos confirmados e 5.930 mortes por covid-19 - Michael Dantas/AFP
O Estado do Amazonas contabiliza até o momento 223.360 casos confirmados e 5.930 mortes por covid-19 Imagem: Michael Dantas/AFP

André Biernath

Da BBC News Brasil em São Paulo

16/01/2021 08h45

Manaus atingiu o limite de sua capacidade de atendimento e não há mais leitos, nem oxigênio, para tratar tantos pacientes. Mas o colapso do sistema de saúde poderia ter sido evitado se medidas mais contundentes tivessem sido tomadas com antecedência, nos meses de setembro e outubro.

Esse é o ponto de vista defendido pelo epidemiologista Jesem Orellana, da FioCruz Amazônia. O cientista afirma que, durante o mês de setembro, apresentou provas às autoridades de saúde pública de Manaus e do Amazonas que indicavam um novo crescimento das hospitalizações e das mortes por covid-19 em Manaus.

Segundo o especialista, a retomada desses índices já era suficiente para a adoção de medidas mais restritivas na capital amazonense. "Se tivéssemos achatado a curva de contágios drasticamente entre setembro e outubro, muito provavelmente não teríamos esse colapso de agora", defende.

À época, a proposta de lockdown quase foi adotada na cidade. Porém, uma sucessão de eventos que envolveu não só Orellana, mas também a vigilância pública da cidade, o então prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB), o governador Wilson Lima (PSC) e até o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) modificou rapidamente a estratégia de combate à pandemia que poderia ter sido estabelecida.

Ação e reação

Manaus foi uma das cidades mais atingidas pela pandemia em todo o mundo. Entre os meses de abril e maio, a cidade passou por uma situação dramática, com hospitais e cemitérios absolutamente lotados.

A partir de junho e julho, a situação começou a melhorar, e isso levou ao relaxamento das medidas de prevenção ao coronavírus — como o isolamento social, o uso de máscaras e a lavagem das mãos.

Ainda em julho, o Amazonas foi o primeiro estado do país a reabrir escolas particulares (as unidades públicas começaram a voltar às atividades em agosto). Nesse mesmo período, bares, restaurantes e pontos turísticos passaram a ter grandes aglomerações novamente.

A sensação de normalidade foi reforçada com a publicação de um estudo que sugeria que, após a crise no primeiro semestre de 2020, Manaus havia atingido uma "imunidade de rebanho".

Porém, no início de setembro, Orellana começou a acompanhar com preocupação uma piora dos números da covid-19 em Manaus. Os números que mais chamaram sua atenção apontavam aumento na taxa de hospitalizações e de mortes.

O epidemiologista publicou artigos a respeito e participou de uma série de entrevistas para veículos de imprensa locais e nacionais. Em todas as conversas com os jornalistas, ele alertava para uma piora da situação na capital manauara após algumas semanas de melhoras no cenário da pandemia.

A resposta das autoridades veio por meio de uma nota de esclarecimento, publicada no dia 9 de setembro e assinada por Rosemary Costa Pinto, diretora presidente da FVS-AM (Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas).

Na carta, a entidade critica duramente as alegações de Orellana e desmente qualquer aumento nos números de mortes por covid-19 e SRAG (Síndrome Aguda Respiratória Grave) ou de enterros na cidade de Manaus.

O documento ainda classifica as intervenções do pesquisador como "sarcásticas, inadequadas e desnecessárias".

"As colocações do Sr. Jesem Douglas Orellana são opiniões pessoais, sem embasamento técnico, em que o mesmo se vale do seu cargo como detentor de autoridade (epidemiologista da FioCruz) para expressar, como se fossem dados científicos, opiniões pré-concebidas, falaciosas e equivocadas, que obviamente não levam em consideração, no contexto de uma pandemia que ameaça toda a humanidade, as medidas tomadas pelo Governo do Estado do Amazonas, no enfrentamento da mais grave crise de saúde pública já vivenciada por esta geração", finaliza a nota.

"O grande problema é que esse material do FVS-AM trabalhava com estatísticas defasadas. Eles olharam basicamente os dados de internação dos últimos 15 dias. E nós sabemos que não é possível interpretar de forma adequada as estatísticas de internação e mortalidade porque há uma demora para atualização dos bancos de informações", rebate Orellana.

Muitas vezes, a confirmação das mortes por covid-19 leva dias ou até semanas para aparecer no sistema, uma vez que há um atraso significativo para a digitação e a atualização dos dados oficiais.

Jesem Orellana, da FioCruz Amazônia, sugeriu lockdown em setembro para achatar curva de contágio que começava a crescer - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Jesem Orellana, da FioCruz Amazônia, sugeriu lockdown em setembro para achatar curva de contágio que começava a crescer
Imagem: Arquivo Pessoal

A resposta e a proposta

No dia 18 de setembro, Orellana voltou a alertar sobre a situação. Ele escreveu um novo texto, em que reforça a piora da pandemia em Manaus e indica a necessidade de ações urgentes das autoridades.

De acordo com dados levantados pelo epidemiologista, o número de mortes por covid-19 havia crescido 9,7% no período de 2 a 22 de agosto em comparação com os dias 12 de julho a 1º de agosto.

O relatório também aponta um crescimento nos óbitos por problemas respiratórios sem causa definida, na taxa de hospitalizações e na taxa de positividade nos testes de diagnóstico para a covid-19.

"Nós estávamos dialogando bastante com a sociedade, com o Ministério Público e com a Defensoria Pública. Até o prefeito de Manaus estava convencido da necessidade de um lockdown", lembra Orellana.

Alguns dias depois da publicação do artigo, o então prefeito Arthur Virgílio Neto falou publicamente sobre a necessidade de endurecer novamente as medidas de restrição de circulação das pessoas pela cidade.

Numa entrevista à CNN Brasil no dia 28 de setembro, Virgílio Neto afirma que havia proposto uma ação conjunta com o governador Wilson Lima. "Pode parecer desagradável, mas estou preocupado em salvar vidas. Sou a favor do lockdown por entender que isso pode realmente acabar de vez com essa ameaça de segunda onda, que seria catastrófica", defendeu.

O então prefeito manauara Arthur Virgílio Neto sugeriu ação conjunta com o governador para lockdown no finalzinho de setembro - Pedro França/Agência Senado - Pedro França/Agência Senado
O então prefeito manauara Arthur Virgílio Neto sugeriu ação conjunta com o governador para lockdown no finalzinho de setembro
Imagem: Pedro França/Agência Senado

'Absurdos'

A reação contrária à sugestão de lockdown não demorou a aparecer. No dia 29 de setembro pela manhã, o presidente Jair Bolsonaro falou sobre o assunto para seus apoiadores na frente do Palácio da Alvorada, em Brasília.

"A gente vê agora absurdos. O prefeito de Manaus falou que está esperando uma sugestão do governador para decretar o lockdown. Essa política acabou, cara. Eu falei lá em março que estava errada essa política. Tá tudo dando certo, o que eu falei. Não tenho bola de cristal não. [É preciso] um pouco de raciocínio, um pouco de estudo e coragem para decidir. Ser presidente, governador, prefeito não é sentar na cadeira e esperar a banda passar, tem que tomar decisões em momentos difíceis", afirmou Bolsonaro.

Mais tarde neste mesmo dia (29/09), o governador do Amazonas, Wilson Lima, seguiu a mesma linha do presidente e descartou qualquer possibilidade de lockdown.

Num vídeo divulgado pelas redes sociais, Lima disse que nem passava por sua cabeça acatar a proposta de um novo fechamento. "Nós conseguimos avançar muito, o Amazonas é referência hoje no combate à covid-19. Fomos o primeiro estado a liberar as aulas do Ensino Médio, e amanhã, quarta-feira, dia 30 de setembro, nós estaremos retornando as aulas do Ensino Fundamental".

O governador reforçou que era hora de olhar para frente e trabalhar para retomar, de forma segura, as atividades econômicas e voltar à normalidade. "Aproveito para fazer aqui um apelo àqueles que, por algum motivo ou alguma razão, relaxaram nas medidas. Meu amigo, faça sua parte, evite aglomerações, use máscara, álcool gel, tome todas as medidas para proteger você e a sua família", completou.

Perda de oportunidade

"É bom que fique claro: quando falamos numa eventual segunda onda, o contágio e a mortalidade se iniciaram em agosto", aponta Orellana.

É por isso que o epidemiologista defende que as medidas mais drásticas tivessem sido tomadas no início da curva, lá para setembro e outubro, antes que o problema se tornasse maior que a capacidade de lidar com ele.

"O lockdown diminuiria a circulação pelas ruas e o coronavírus encontraria mais dificuldade de ser transmitido de pessoa para pessoa", explica o especialista.

"A segunda onda era inevitável, mas poderíamos ter impedido esse colapso em Manaus. O achatamento da curva entre setembro e outubro permitiria que a gente entrasse no mês de novembro com uma situação menos problemática", completa.

A partir do final de outubro e começo de novembro, Manaus (e o país todo, diga-se) adicionou mais um ingrediente na lista da catástrofe: as eleições municipais. As campanhas de muitos candidatos aos cargos de prefeito e vereador motivaram grandes aglomerações Brasil adentro.

Para finalizar a equação, dezembro trouxe as festas de final de ano. As comemorações de Natal e Ano Novo geraram um motivo extra para a circulação e a reunião de pessoas.

O resultado desse comportamento dos últimos meses de 2020 deve começar a ser sentido a partir dos próximos dias.

Lockdown em dezembro

Com a piora dos números de casos e das mortes por covid-19, o governador Wilson Lima anunciou medidas mais restritivas no dia 23 de dezembro.

O decreto, que valeria três dias depois (26/12), ordenava o fechamento de restaurantes e bares. Além disso, estabelecimentos não essenciais só poderiam funcionar até às 21 horas no esquema de drive thru e delivery.

Casamentos, formaturas e eventos foram proibidos por um período de 15 dias. Lima também prometeu aumentar a fiscalização para combater as festas clandestinas.

O governador, no entanto, evitou usar o termo lockdown para classificar as novas medidas. "Não haverá lockdown. Nós não fizemos isso durante o pico da pandemia, e não será agora que vamos tomar uma decisão como essa", discursou.

A decisão não foi aceita por parte da população. No dia 26/12, foram registrados diversos protestos no centro de Manaus.

Um dia depois, Wilson Lima anunciou novas mudanças. A partir de 28 de dezembro, haveria uma flexibilização e a reabertura do comércio.

No dia 2 janeiro, a situação voltou a se modificar: a Justiça do Amazonas atendeu um pedido do Ministério Público do Estado que determinava a suspensão de todas as atividades pelas próximas duas semanas.

O governo amazonense acatou o mandato judicial e voltou a publicar o decreto de fechamento de lojas e serviços no dia 4/01.

Já na última quinta-feira (14/12), dia que marca o fim dos estoques de oxigênio em Manaus, Wilson Lima fez mais uma mudança, restringindo a circulação de pessoas pela capital entre 19h e 6h.

Por que Manaus?

Em meio a tantas cidades com condições sanitárias precárias, por que justamente a capital amazonense teve essa situação tão grave?

Orellana aponta a falta de infra-estrutura e de atenção médico-hospitalar na região. "Manaus começa a pandemia com uma das menores quantidades de leitos e unidades de terapia intensiva entre as cidades com mais de 1,5 milhão de habitantes do país", observa o epidemiologista.

"Deveríamos estar fazendo ações de vigilância epidemiológica, acompanhamento de casos, isolamento de contatos...", enumera.

De acordo com o especialista, a cidade só não apresenta uma situação ainda pior por dois motivos: uma menor quantidade de pessoas expostas ao coronavírus (uma vez que muitos já tiveram a covid-19) e um melhor preparo dos profissionais da saúde para lidar com os casos. "Manaus usa métodos medievais que deixaram a cidade vulnerável", lamenta.

O outro lado

A reportagem da BBC News Brasil entrou em contato por e-mail com as assessorias de imprensa da Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas e com a Secretaria Municipal de Comunicação do Município de Manaus para ouvir o ponto de vista das instituições a respeito dos assuntos apresentados.

A SemCom respondeu por meio de nota, afirmando que "o prefeito David Almeida chegou a cogitar o lockdown, durante entrevista a um programa nacional, na última terça-feira, 12/01, caso o número de mortes e internações não diminuam na capital do Amazonas".

O texto ressalta que David Almeida (Avante) assumiu a Prefeitura de Manaus há exatos 15 dias e, "desde então, vem ampliando as medidas no município para oferecer tratamentos imediatos e precoces à população, por meio de 22 estruturas de saúde preparadas para atender casos suspeitos de covid-19".

Vale ressaltar que, até o momento, o tratamento precoce defendido pelo Ministério da Saúde e citado na nota da prefeitura manauara não encontra amparo científico e não é recomendado por entidades que representam especialistas da área, como a Sociedade Brasileira de Infectologia.

Por fim, a SemCom aponta que "o prefeito defende a união de forças e a articulação entre os governos (federal, estadual e municipal) para fortalecer a rede para que mais vidas sejam salvas".

Até a publicação desta reportagem, a BBC News Brasil não recebeu respostas da Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas.

De acordo com os dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários da Saúde), o Estado do Amazonas contabiliza até o momento 223.360 casos confirmados e 5.930 mortes por covid-19.