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"Me despedi de minha mãe via chamada de vídeo. Que todos tenham o direito"

Silvana Andrade e os pais; ela perdeu a mãe por covid-19 e sugeriu um projeto de lei para permitir visitas online - Arquivo Pessoal
Silvana Andrade e os pais; ela perdeu a mãe por covid-19 e sugeriu um projeto de lei para permitir visitas online Imagem: Arquivo Pessoal

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

08/05/2020 04h03

Foram 15 dias de angústia até que a jornalista Silvana Andrade, 56, conseguisse se despedir de sua mãe, vítima da covid-19 aos 93 anos. As palavras da filha foram entregues durante 15 minutos, em uma chamada de vídeo feita pelo médico que a acompanhava na UTI. Maria Albani estava entubada e inconsciente, mas Silvana disse "tudo o que queria dizer, como se ela estivesse me ouvindo". Dois dias depois, recebeu a notícia de que a mãe havia falecido.

Não foi fácil convencer a equipe médica a entrar com um aparelho celular na UTI do hospital particular em que a mãe estava internada, em Recife. Os pedidos foram tantos, até que conseguisse a autorização, que Silvana sugeriu um projeto de lei e apresentou ao deputado federal Célio Studart (PV-CE). O PL pede que todos os familiares de pacientes com covid-19 -ou outras doenças contagiosas- possam receber visitas virtuais, via chamadas de vídeo, como Silvana. Está em processo de coleta de assinaturas para requerimento de urgência. Leia o depoimento da jornalista:

"Me despedi de mamãe, fisicamente, acreditando que ela estava com uma pneumonia -ela sentia falta de ar, febre e dores no corpo. Me lembro de ela entrar no elevador e eu dizer 'mãe, eu te amo. Fica tranquila que vai dar tudo certo'. Quando as pessoas contraem esse vírus, elas saem de suas casas e entram em um buraco negro. Passei três dias sem notícias dela, sequer sabia em que UTI ela estava ou quem era o médico que a acompanhava.

Depois de inúmeras tentativas, consegui, pela primeira vez, falar com o médico da UTI. Ele me disse que haviam entubado minha mãe sem que eu fosse consultada, uma vez que ela estava lúcida. Segundo ele, mamãe autorizou a própria entubação. Ela foi sedada e colocada em coma induzido. Comecei a ligar, então, todos os dias, para ter notícias dela.

Fazia um mês que a gente havia perdido meu pai. Mamãe e ele eram grudados, você nem imagina. Entre o ano passado e esse ano, ela passou por quatro cirurgias no fêmur -nas quatro, as hastes e próteses saíram do lugar. Droga de médico! Ele, o tempo todo, ficou do lado dela, mesmo na cama. Até que ela teve duas infecções urinárias e voltou para o hospital, em fevereiro. Papai foi adoecendo, adoecendo, e logo, morreu. Mamãe estava internada e só ficou sabendo da morte dele duas semanas depois. Quando teve alta e chegou em casa, repetia 'por que ele me deixou sozinha?'.

Quando eu era jovem, a possibilidade de meus pais morrerem me fazia perder o ar. E, olha só, perdi os dois ao mesmo tempo. Não consigo te explicar o tamanho da dor, mas te garanto que ela foi amenizada quando conseguimos protocolar esse projeto de lei. Agora, ele precisa ser votado.

maria albani - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria Albani, mãe de Silvana, ao lado do marido
Imagem: Arquivo Pessoal

Em abril, a Secretaria de Saúde de Pernambuco teve acesso ao depoimento que fiz no Facebook e transformou a ideia do projeto em um programa público. Agora, nas unidades de saúde públicas do estado, a visita via videochamada já é uma realidade. Quero que outras pessoas possam, como eu pude, ter a decência da despedida. Só isso.

E eu só tive esse estalo quando o médico de mamãe, então, depois de 15 dias, me disse que o quadro dela havia piorado muito. No dia seguinte, ao ligar para ouvir o boletim médico, a enfermeira me contou que ele não estava no hospital e que eu precisaria esperá-lo voltar para receber notícias. Então, pedi que ela levasse o telefone até minha mãe.

'Impossível, senhora', foi a resposta. Ela disse que não estava autorizada a entrar com o celular na UTI. Sugeri, então, que não fosse seu telefone pessoal, mas um tablet do hospital ou algum aparelho corporativo. A negativa veio novamente, e aí eu desabei.

Senti toda a dor que uma pessoa pode sentir, mas acho que senti, também, a dor do mundo; de todos os familiares que têm a mesma angústia, que têm seu direito humanitário de despedida negado; das pessoas que sequer sabem que têm esse direito. Desabei num choro que você não tem ideia. Liguei de novo para a enfermeira e fiz o mesmo pedido. Negado, novamente. Foi quando eu disse 'você não está entendendo. Eu vou até as últimas instâncias porque negar isso é crueldade'.

Última foto de Maria Albani, mãe de Silvana - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Última foto de Maria Albani, mãe de Silvana
Imagem: Arquivo Pessoal

Sabe, a gente tem dois estados de angústia: o primeiro é a perda pelo desaparecimento. A pessoa que você ama some. Um dia, ela está ali do seu lado e, de repente, ela não está mais. E você não pode vê-la mais, entende? É a sensação do desaparecimento. Toda vez que o telefone toca é uma aflição. Quando minha mãe morreu, me ligaram do hospital pedindo os documentos dela. Eu falei: 'O quê? O que você quer dizer com isso? Minha mãe morreu?'.

E a enfermeira respondeu: 'Não sei, aí é com o médico'. Imagine como me senti? Liguei para o médico e ele confirmou. E aí vem o segundo estado de angústia, que é a morte.

E, apesar da dor, senti alívio por, dois dias antes, ter falado com ela por 15 minutos, depois de ter insistido incansavelmente. Eu disse tudo, apesar de ela estar inconsciente, sedada e entubada. Mas eu pude olhar para a minha mãe, pude ver minha mãezinha e falar. Quem sabe ela não estava me ouvindo? Ouvindo ou não, olhei para ela e disse tudo o que gostaria de dizer. Por ela, em memória, me dediquei a lutar pelo projeto de lei. Se aprovado, adivinha como ele vai se chamar? Lei Maria Albani. Era o nome dela.

O que eu quero é um protocolo que seja instituído de forma sistêmica para sempre, não só pela covid-19, mas para pacientes com outras doenças contagiosas e até para familiares que moram em outro estado ou país. Por que não humanizar um momento tão difícil? Minha mãe tinha uma alegria de viver que, confesso, nunca vi outra pessoa ter. E sei que, se ela pudesse, faria o mesmo."