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Covid: mortes avançam em favelas e superam 3ª cidade com mais óbitos no RJ

Herculano Barreto Filho

Do UOL, no Rio

10/05/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Com 81 óbitos, mortes em favelas do Rio aumentaram 10 vezes em 1 mês
  • Comunidades têm mais mortes do que Nova Iguaçu, Niterói e São Gonçalo
  • Estudos na Rocinha e Maré indicam o triplo de óbitos em relação aos dados oficiais
  • Para especialistas, realidade nas favelas facilita disseminação do vírus
  • Rocinha, Senador Camará e Maré concentram 41% dos casos em favelas do Rio

A epidemia do coronavírus avançou sobre as favelas cariocas, que já concentram ao menos 81 mortes e 422 casos confirmados da covid-19. Levantamento feito pelo UOL com dados da Prefeitura do Rio mostra que os óbitos causados pela doença aumentaram dez vezes em um mês —em 8 de abril, haviam sido registradas sete mortes e 43 casos em 13 comunidades. O total de mortes já supera Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, em 3º lugar no ranking do estado com 60 casos.

O cenário é mais preocupante do que indicam os números oficiais. Estudos paralelos coletados nas unidades de saúde da Rocinha e do Complexo da Maré, dois dos maiores conjuntos de favela da capital fluminense, indicam que os óbitos podem chegar a 74, mais que o triplo em comparação aos 24 registros oficiais nessas áreas.

Especialistas citam contudo um problema mais grave do que a subnotificação: o ambiente propício para a proliferação rápida do vírus, agravado em áreas com maior circulação de pessoas em espaços reduzidos.

"A transmissão comunitária está absolutamente fora de controle. É uma transmissão verticalizada e descontrolada, que atinge sobretudo as camadas menos favorecidas da sociedade", analisa a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz que também integra um grupo encarregado de prestar consultoria ao governo do RJ sobre alternativas para lidar com a pandemia.

Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, diz acreditar que a situação de vulnerabilidade social obriga moradores de favelas a saírem de casa para trabalhar, agravando o problema. "Há pessoas mais vulneráveis, que precisam de sustento e não conseguem ficar em quarentena. As pessoas se aglomeram para buscar algum tipo de recurso", explica.

O levantamento feito pela reportagem considerou os registros divulgados pela prefeitura da capital fluminense até sexta-feira (8) para fazer a comparação com os dados de 8 de abril. O UOL verificou casos confirmados em 16 áreas com grande concentração de favelas.

Mortes superam cidades da Grande Rio

Hoje, Rocinha, na zona sul da capital, Senador Camará, na zona oeste, e Complexo da Maré, na zona norte carioca, concentram 171 pessoas infectadas por covid-19, o equivalente a 40%. O levantamento elaborado pelo UOL com dados da Prefeitura do Rio também identificou outras áreas com predomínio de favelas que registram números preocupantes. É o caso de Vigário Geral, Manguinhos, Mangueira, Costa Barros e Jacaré, comunidades da zona norte.

As mortes nas favelas cariocas superam a maior parte dos municípios da Grande Rio, como Niterói e São Gonçalo. Durante a epidemia, morreram mais pessoas nas comunidades do que em Nova Iguaçu, cidade com mais de 820 mil moradores. Com 60 mortes até sexta-feira (8), segundo o governo do RJ, Nova Iguaçu é o 3º município com mais mortes por covid-19, atrás apenas da capital fluminense (1.002) e de Duque de Caxias (96).

8.abr.2020 - Coronavírus avança na Rocinha, na zona sul do Rio - Herculano Barreto Filho/UOL - Herculano Barreto Filho/UOL
8.abr.2020 - Coronavírus avança na Rocinha, na zona sul do Rio
Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

Médicos falam em 30 óbitos na Rocinha

Com cerca de 200 mil moradores, a Rocinha tem 18 óbitos e 92 casos confirmados pela Prefeitura do Rio. Mas um painel mantido por profissionais de três unidades de saúde na favela confirma ao menos 30 óbitos de pessoas que testaram positivo para a covid-19 e outras 26 mortes ainda em apuração. Se todos os casos de mortes suspeitas forem confirmados, a Rocinha chegaria a 56 óbitos, o triplo em comparação aos dados oficiais.

O levantamento ainda registrou 35 pacientes que aguardam o resultado da testagem para covid-19 e outros 185 pacientes com síndrome gripal, sintoma compatível com a doença.

A divulgação deste painel visa compartilhar informações específicas da situação da Rocinha de forma mais detalhada e em tempo real, com o objetivo de empoderar a população com uma noção realista dos dados e reforçar a importância de estratégias de isolamento social

Painel assinado por médicos do CMS (Centro Municipal de Saúde) Albert Sabin e das clínicas da família Maria do Socorro Silva e Souza e Rinaldo Delamare

A analista de mídias sociais Rosemary da Silva Freitas conviveu com a covid dentro da própria casa. Nas últimas semanas, ela precisou cuidar da mãe e da avó, que testaram positivo para a doença.

"Fiz o possível para não levá-las para o hospital. Cuidei delas dentro de casa. Elas só levantavam da cama para ir ao banheiro", lembra.

7.mai.2020 - Maria do Carmo, de 85 anos, pega um sol em hotel da Barra. Moradora da Rocinha, ela teve covid-19 e está hospedada com a filha em um hotel da Barra, em ação preventiva da Prefeitura do Rio voltada a pessoas no grupo de risco no combate à pandemia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
7.mai.2020 - Maria do Carmo, de 85 anos, pega um sol em hotel da Barra. Moradora da Rocinha, ela teve covid-19 e está hospedada com a filha em um hotel da Barra, em ação preventiva da Prefeitura do Rio voltada a pessoas no grupo de risco no combate à pandemia
Imagem: Arquivo pessoal

Na semana passada, as duas foram levadas para o Américas Barra Hotel, que abriga mais de cem idosos, em uma iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos.

Estava difícil segurar a minha avó em casa. Lá no hotel, elas estão mais seguras. Na favela, tem muita gente com sintomas de covid

Rosemary da Silva Freitas, moradora da Rocinha

O líder comunitário William de Oliveira diz que a associação de moradores conta com uma equipe de profissionais de saúde que fornece o primeiro atendimento para pessoas com sintomas de covid-19 na Rocinha. Ele diz que o desrespeito da população ao isolamento atrapalha o combate à doença.

Mas só isso não adianta. Ainda tem muita gente pelas ruas, agindo como se nada estivesse acontecendo. As pessoas estão circulando pelo comércio e pelos bares. A chance de contaminação é maior nas favelas, onde as pessoas estão mais agrupadas. No começo, eram números. Agora, são nomes

William de Oliveira, líder comunitário

Nos últimos dias, William está se dedicando à distribuição de cestas básicas, alimentos e kits de higiene para os moradores. Na última quinta (7), por exemplo, participou da entrega de cerca de 500 sopas nas áreas de maior vulnerabilidade social da favela.

Maré alerta para subnotificação

Profissionais de saúde em atuação no Complexo da Maré, conjunto de favelas com cerca de 140 mil moradores na zona norte do Rio de Janeiro, também apontam para uma elevada subnotificação de pessoas infectadas e de mortes por covid-19, apesar do aumento nos registros oficiais nos últimos dias.

24.abr.2020 - Morador do Complexo da Maré, o vestibulando Luiz Menezes se arrisca em busca do sinal de internet para conseguir estudar - Gabriel Sabóia/UOL - Gabriel Sabóia/UOL
24.abr.2020 - Morador do Complexo da Maré, o vestibulando Luiz Menezes se arrisca em busca do sinal de internet para conseguir estudar
Imagem: Gabriel Sabóia/UOL

O UOL teve acesso ao boletim "De olho no corona", elaborado pela equipe da Redes da Maré, que confirmou 18 mortes nas 16 comunidades do conjunto de favelas —o triplo em comparação aos dados oficiais, que apontam seis mortes. Mas a subnotificação pode ser ainda maior, já que o último levantamento da Redes da Maré foi feito há uma semana.

Esses dados podem refletir o que acontece e pressionar por melhorias nas políticas públicas. O poder público não está como deveria estar na Maré. A gente espera que o estado repense a forma de lidar com a pandemia nas favelas e periferias

Lidiane Malanquini, coordenadora do projeto Maré de Direitos

Segundo ela, os dados também revelam o sucateamento das unidades de saúde. "Há um enxugamento de recursos humanos, escassez de produtos e materiais necessários para o atendimento à população. E isso, no período da pandemia, se agrava ainda mais", critica.

Ações nas favelas

O governo do RJ informou que faz ações de desinfecção das ruas e comunidades do Rio desde o fim de abril, organizadas pela Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro).

Em nota, a Prefeitura do Rio informou que foram intensificadas as ações de orientação para a população nas comunidades, com informações passadas por agentes comunitários de saúde. A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) também faz operações de higienização. A iniciativa, segundo a administração municipal, começou na Rocinha, há um mês.