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Debate sobre cloroquina acabou no mundo e só segue no Brasil, diz cientista

CADU ROLIM/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: CADU ROLIM/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

20/05/2020 17h50Atualizada em 20/05/2020 22h18

Resumo da notícia

  • Pesquisador na área de doenças infecciosas diz que protocolo do governo federal sobre uso da cloroquina é "ideológico"
  • Lula Arraes afirma que o debate em torno do uso da cloroquina coloca o país em uma posição isolada do mundo
  • "Esse debate ainda persiste apenas no Brasil. Mesmo nos EUA, ninguém debate isso", comenta o professor da UFPE
  • Cientistas do grupo do qual Arraes faz parte já haviam publicado recomendação aos estados do Nordeste para não usar cloroquina

O professor e pesquisador na área de doenças infecciosas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e do IMIP (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira), Lula Arraes, afirma que o debate em torno do uso da cloroquina coloca o país em uma posição isolada do mundo.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) defende o uso da droga, e o governo federal publicou hoje uma recomendação para que o sistema público de saúde passe a prescrever cloroquina e hidroxicloroquina a pacientes com sintomas leves.

"Esse não é um protocolo científico, é ideológico. Esse debate ainda persiste apenas no Brasil. Mesmo nos Estados Unidos, onde o [presidente Donald] Trump às vezes fala a respeito, ninguém debate isso. Esse debate ocorria no início do março. Hoje nem na França, onde surgiu a ideia que agitou o mundo, existe. A revista que publicou os dois primeiros artigos depois os 'despublicou'", opina o médico, em entrevista ao UOL.

O Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) retirou de suas orientações a médicos, ainda no início de abril, informações sobre a prescrição de hidroxicloroquina e cloroquina em casos do novo coronavírus.

Na França, o governo autoriza a utilização da cloroquina contra o coronavírus nos hospitais e apenas para pacientes em estado grave. A Agência Nacional da Segurança do Medicamento e dos Produtos de Saúde preveniu, em 14 de maio, que a hidroxicloroquina "pode aumentar problemas neuropsiquiátricos", especialmente sintomas agudos de psicose e tentativas de suicídio. Além disso, o órgão alerta que a droga não deve "em nenhum caso" ser utilizada por conta própria e sem acompanhamento médico.

No Nordeste, uso não é recomendado

Arraes integra o comitê científico do Comitê Nordeste (grupo que reúne os nove governadores da região). Em 26 de abril, os cientistas do grupo já haviam publicado recomendação aos estados para que não usassem cloroquina no tratamento para covid-19, por falta de embasamento científico.

"Nós aqui não recomendamos usar, e seguimos firme contra o uso. Isso não é uma opinião nossa, que seria um mero palpite. Não se trabalha assim em ciência. Sinto-me até constrangido em falar coisas tão elementares, mas tudo tem de ser embasado em evidências científicas", ressalta o professor da UFPE.

Arraes ainda afirma que, em 35 anos de carreira, nunca viu um protocolo do Ministério da Saúde sobre o manejo de uma doença não ter a assinatura de um médico sequer, como foi o publicado hoje.

"Normalmente, os protocolos do Ministério eram muito bem-feitos. Eles são muito mais completos, têm muito mais dados. Pode pegar qualquer um, tem sempre uma comissão científica longa que assina embaixo do documento. E esse novo ainda traz várias referências sem nenhuma relação com o texto", comenta.

Brasil deve ser alvo de críticas da comunidade científica

Para o pesquisador da área de doenças infecciosas, com o protocolo publicado hoje pelo governo federal, o país deve mais uma vez ser alvo de críticas da comunidade científica internacional, por não se guiar em pesquisas na área de medicamentos.

"Aqui, ao contrário do mundo, a cloroquina virou uma imposição do Estado. É um trabalho que não é baseado em nenhuma evidência científica. Esse remédio, já se sabe, causa problemas e nenhuma solução. O mundo hoje já tem os esclarecimentos devidos", pontua.

Arraes ainda cobra que os conselhos Federal (CFM) e regionais de Medicina se posicionem sobre o protocolo. "É importante, eles são nossa representação, precisam dar uma posição sobre o tema. Não pode deixar que outras áreas decidam", diz.

Posicionamento do CFM

Em resposta ao UOL, o Conselho Federal de Medicina esclarece que mantém a orientação dada ainda em abril aos médicos e que prevê o uso da droga em três situações:

  • em pacientes com sintomas leves, em início de quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses e exista diagnóstico confirmado de covid-19;
  • em pacientes com "sintomas importantes", mas ainda sem necessidade de cuidados intensivos, com ou sem recomendação de internação;
  • em pacientes críticos recebendo cuidados intensivos, incluindo ventilação mecânica.

Entretanto, a recomendação do CFM lembra que não há evidência científica de que a droga tenha efeito benéfico ao paciente.