'Festa e cloroquina': Relatos do Hospital das Clínicas de SP em colapso
Vaga um leito e já há outra pessoa na fila para ocupá-lo. No meio da correria, UTIs (unidades de terapia intensiva) para covid aumentam, mas a mesma quantidade de funcionários não consegue acompanhar com qualidade todos pacientes. O número de jovens intubados cresce entre os internados e, nas enfermarias, adeptos da hidroxicloroquina exigem o medicamento e reclamam com a negativa.
Este cenário caótico tem sido corriqueiro no Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) no enfrentamento à segunda onda da pandemia. No maior complexo hospitalar da América Latina, localizado na zona oeste da capital paulista, funcionários reclamam das condições de trabalho, narram exaustão e expressam uma mistura de raiva e desesperança com a população.
'Lotação de 280%'
Quem passa pela Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, que corta o complexo, não vê movimentação atípica. Dentro do Instituto Central, a realidade é outra: embora a administração não fale em colapso, não há leitos vagos e a chegada de novos pacientes não para.
"Está todo mundo mal, tudo lotado. Pergunta se tem leito sobrando. Tem, sim. Já, já vaga um, porque morreu. Nossa realidade, hoje, é não ter nem tempo de se preparar [para receber o paciente]. Libera um, já chega outro", conta uma enfermeira.
"Eles [governos] fazem o cálculo errado. A lotação não é 90%, é 280%. Porque aumentaram os leitos, mas não aumentou todo o resto. Então, uma equipe de cinco ou sete que cuidava de dez leitos, agora cuida de 20, 30. Como mantém a qualidade?", reclama um residente do segundo ano.
Angustiado, ele diz que isso é ruim para os profissionais, mas ainda pior para os pacientes.
Em uma UTI, o [contato] visual é muito importante. Você tem de estar de olho naquele paciente. Cuidado intensivo é isso. Quando se aumenta os leitos, mas não todo o resto, profissionais em especial, essa atenção diminui, obviamente, e os riscos dos pacientes crescem.
Residente do segundo ano no HC-SP
Todos os pacientes de covid são encaminhados pelo sistema Cross (Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde), que distribui os doentes para onde tiver leitos. Na teoria. Já na prática, segundo os funcionários, está sendo adotado o chamado "vaga zero", quando o paciente é enviado mesmo sem a confirmação de disponibilidade.
Segundo o UOL apurou, o hospital tem hoje 230 leitos de UTI-covid, com expectativa de mais 15 leitos na semana que vem. À reportagem, HC-SP não confirmou o número total de vagas nem a porcentagem de ocupação, apenas informou que, "para atender os crescentes casos graves", houve a ampliação "para além dos 465 leitos destacados exclusivamente à doença", distribuídos no Instituto Central, no Instituto do Coração e no Hospital Auxiliar de Suzano.
Atualmente, o estado vive o pior momento da pandemia, com recorde de mortes nesta semana e 91,6% de ocupação das UTIs, mesmo índice da capital.
"Todo dia tem um que fala em guerra, táticas de guerra. Está uma situação assim mesmo. Isso acaba sendo ruim para todo mundo porque, em situações assim, ninguém faz nada da maneira adequada", lamenta um auxiliar de enfermagem do complexo.
'Nos abandonaram por festa'
Entre os funcionários, a característica jovem da segunda onda gera uma mistura de tristeza e revolta. Impulsionada pelas festas de final de ano e, depois, pelo Carnaval, a sensação é de que a população abandonou a pandemia à sorte.
"Saí 9h da manhã do hospital depois de um plantão de 24h, abro os Stories [do Instagram] e vejo gente, amigos, em festinha. O que eu devo fazer? Vontade de chorar, bater, xingar. São 3.000 pessoas morrendo, a gente se matando e eles em um show. Nos abandonaram por festa", lamenta outra residente do primeiro ano, que teve a UTI onde trabalha convertida em unidade para covid em fevereiro.
É pela saúde mental? Piada! Quero ver a saúde mental quando estiver intubado, que nem um monte [de jovens] aqui.
Residente do primeiro ano do HC-SP
Neste ano, além da maior circulação, a nova variante P.1, identificada inicialmente em Manaus, tem sido mais agressiva com jovens, o que tem contribuído para a queda de idade média de internados em todo o país.
'Ainda pedem cloroquina'
Parte dos depoimentos desta reportagem foram colhidos na última quinta-feira (25), quando o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, visitou o complexo e foi recebido por protestos de alunos da faculdade.
O pedido por tratamento com hidroxicloroquina, amplamente propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), segue sendo frequente entre os pacientes da enfermaria, mesmo que a droga já tenha sido descartada cientificamente e apresente riscos aos doentes.
Você pergunta se estava em isolamento. Não. Se costumava usar máscara. 'Para quê?' Agora, kit covid, azitromicina, ivermectina, dipirona tem um monte [de gente pedindo]. Ou seja, não tomam cuidado algum e ainda pedem cloroquina. Hoje, enfermarias e UTIs estão cheias disso: pessoas que, de um jeito ou de outro, pela medicação ou pelas festas, negaram a pandemia.
Médica do HC-SP
Entre os profissionais, diz ela, receitar o medicamento é completamente vetado. "A gente sabe que não funciona, todo mundo sabe — fora o presidente. O paciente pode pedir o quanto quiser, não vai ter", diz a médica.
Hospital poderá voltar a ser só covid
De todas as UTIs do HC-SP, apenas três não estão fechadas para covid. Com a sucessiva piora dos casos, circula no hospital que, em breve, a exemplo de outros, como o Municipal de Jabaquara e o Estadual da Vila Penteado, voltará a ser exclusivo para covid-19, como foi no meio do ano passado.
Outra possibilidade especulada entre os médicos é que o Centro de Convenções da Rebouças, dentro do complexo, seja transformado em um hospital de campanha. Não há confirmação de nenhuma dessas informações.
Procurados pelo UOL, nem o HC-SP nem a Secretaria de Saúde de São Paulo quiseram comentar essas possibilidades.
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