Perdeu razão de existir, dizem ex-membros de comitê reduzido por Doria
Diante do primeiro caso positivo de covid-19 no Brasil, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), criou, em fevereiro de 2020, um Centro de Contingência, no qual ao menos dez médicos discutiam o comportamento do vírus e sugeriam ações de contenção à disseminação da doença no estado.
Começou como um alinhamento para medidas de combate científico à covid, mas terminou em desconforto, num cenário em que a maioria das sugestões oferecidas era modificada e amenizada. Com isso, afirmam ex-integrantes ouvidos pelo UOL, o comitê perdeu a razão de existir.
Ontem, a secretaria de Saúde anunciou a redução do grupo de 21 membros para apenas sete. Hoje, em entrevista coletiva no Palácio dos Bandeirantes, Doria anunciou que o comitê terá nove membros.
Os médicos estiveram em desacordo com a equipe do governador em diversas ocasiões. Um dos desgastes mais diretos aconteceu em fevereiro, quando a pandemia atingiu o pior momento no país e o cenário, na opinião da maioria desses profissionais, exigia um lockdown. O governo chegou a considerar a ideia, mas anunciou uma medida menos rígida.
Por parte do governo, a discordância foi rebatida em diversas ocasiões. A gestão sempre afirma estar seguindo à risca "a ciência" e que as decisões do comitê são tomadas em conjunto.
Como funcionava o grupo de auxílio
Em boa parte das reuniões, a maioria do grupo antigo era descrita como "conservadora", sendo favoráveis a medidas mais drásticas para contenção do vírus, principalmente quando os números pioram e há hospitais com excesso de internações por covid. Uma parte do grupo, minoritária, se posicionava de forma menos "radical".
No final das reuniões, comumente realizadas às terças-feiras, as sugestões dos médicos eram encaminhadas pelo coordenador-executivo, Paulo Menezes, e pelo diretor-executivo, João Gabbardo, a Doria e sua equipe, que acatavam ou não as recomendações.
Na coletiva de imprensa do dia seguinte, em que o governador anunciava atualizações do Plano São Paulo e das medidas de restrição, as sugestões eram relaxadas, mas divulgadas como se tivessem tido o aval técnico do comitê, o que gerava desconforto em parte do grupo. Ao longo de 2021, a participação de todos os membros do grupo foi diminuindo e se tornando irregular.
Internamente, membros do governo estadual avaliavam o impacto das restrições no comércio e na economia. Segundo o UOL apurou, a falta de consideração quanto a isso por parte dos médicos era o que mais incomodava o governo Doria.
Atualmente, o governador tem se ancorado no avanço da vacinação para sustentar "boas notícias", como disse recentemente, antes de anunciar novas flexibilizações e futuros eventos com público, como torcida em estádios de futebol e Fórmula 1.
Mas o estado ainda não tem ao menos 50% da população completamente vacinada e pode sofrer os impactos de mais casos da variante delta. Para Marcos Boulos, um dos médicos que integrava o comitê, a pandemia ainda exige restrições.
"Desde o fim do ano passado, o governo vinha parcialmente adotando as medidas sugeridas. Algumas ações que achamos importantes eles não fizeram. E eu entendo: somos consultores, não podíamos exigir nada, mas claramente estava deixando desconfortável o comitê em si e o próprio governo. A redução já era esperada", afirmou à reportagem.
"O momento é aparentemente favorável, apesar de não acharmos. Acredito que a dissolução do grupo é uma decisão que tinha de ser tomada para ficar mais confortável, mas, insisto, o momento não é um momento favorável", concluiu.
Enxugamento
O anúncio da flexibilização geral do comércio e das conversas sobre eventos com aglomeração, em meio ao avanço da variante delta, foi o último capítulo.
A redução do grupo teria sido comunicada pelo próprio governador, de forma cordial. Doria também deu a opção de os próprios médicos votarem entre si quem continuaria nas funções, possibilidade que foi afastada pelos participantes.
Ao fim, o próprio governo teria escolhido os "sobreviventes" da equipe. São eles: David Uip, João Gabbardo, Paulo Menezes, José Medina, Geraldo Reple, Carlos Carvalho, Luiz Carlos Pereira, Eloisa Bonfá e Esper Kallás.
Menezes ressalta que o saldo final do comitê é positivo. "O Centro de Contingência como funcionou foi fundamental. Proporcionou e permitiu que o estado de São Paulo fizesse um enfrentamento diferenciado. Permitiu que não tivéssemos resultados muito mais dramáticos e também foi importante no sentido de uma relação de levar informação correta à sociedade", afirmou ao UOL.
"Agora nós temos uma nova fase com o avanço da vacinação, que está levando a uma situação mais tranquila. Não que a pandemia esteja no fim, não está no fim, mas é uma nova fase", disse.
A reportagem contatou David Uip, que não quis comentar a dissolução do comitê e afirmou que apenas o governador falaria sobre o assunto.
Governo diz que opiniões isoladas não refletem propósito do Centro
Procurado, o governo de São Paulo, por meio da secretaria de Saúde, negou que o comitê tenha "perdido a razão de existir". "Se houvesse qualquer sentido na colocação apresentada, o governo do Estado jamais teria se preocupado em formar o Centro de Contingência logo no princípio da pandemia de covid-19", diz um trecho do texto.
"O Centro sempre teve caráter colegiado e eventuais opiniões isoladas dos que o compunham não refletem seu propósito e conceito, nem a contribuição para que o Governo de SP atuasse com plena responsabilidade no combate e controle da covid-19, com base na Saúde e na Ciência", completou.
Sobre a reformulação do comitê, a pasta fala em "novo contexto epidemiológico", mas que os especialistas continuam tendo demandas fundamentais para "assistir a população e contribuir com a medicina brasileira e internacional".
"O Governador João Doria delegou aos especialistas a definição dos que continuariam no grupo. Todos permanecem em contato com o Governo e agradeceram ao Governador e aos membros do colegiado, reconhecendo a importância do trabalho conjunto nesta missão coletiva", concluiu.
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