Transporte vital na Amazônia, navegação sofre com novo coronavírus
Em uma região onde os rios são as estradas, é navegando que os moradores da Amazônia se deslocam em viagens que podem durar vários dias — uma atividade afetada pelas medidas de contenção ao avanço do novo coronavírus.
Tradicionais canoas indígenas, voadeiras (pequenos barcos com motor de popa), barcos regionais (sucessores a diesel dos vapores dos séculos 19 e 20) ou 'a jato' (lanchas rápidas) são os carros, ônibus e caminhões dos rios que cortam a floresta, transportando pessoas e mercadorias entre comunidades ribeirinhas, aldeias, cidades.
No Amazonas, estado mais extenso do país, com quase 1,6 milhão de km² (equivalente aos territórios de Peru e Equador somados), e o maior da Amazônia, a navegação é vital.
Mas para conter a covid-19, que tinha até ontem 636 casos no estado (a maioria na capital, Manaus), e 23 mortes, o transporte fluvial de passageiros foi suspenso, entre outras medidas da emergência sanitária decretada pelo governo do estado em março.
"O transporte de cargas (insumos, medicamentos e alimentos) não foi alterado. Mas o regular de passageiros, sim, estando restrito a excepcionalidades, como emergências e urgências médicas, serviços essenciais, como bombeiros, policiais, iluminação pública, telefonia", explicou à AFP por telefone, de Manaus, Jerfeson Caldas, coordenador para a região norte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Nas excepcionalidades, os barcos só podem sair com 40% de sua capacidade e seguir medidas de distanciamento e de higiene, exigindo-se das embarcações que forneçam aos passageiros água, sabão e álcool em gel 70%, bem como assentos e acomodações em redes afastados uns dos outros no mínimo por dois metros.
As medidas de contenção, válidas até 30 de abril, visam a conter a disseminação da doença em um estado que o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, considera ter situação diferenciada por abrigar a Zona Franca de Manaus, com empresas e pessoas de várias partes do mundo, e a população indígena, que tem uma "relação imunológica muito ruim com vírus como esse".
Casos oficiais de coronavírus no Brasil - evolução
"Isolamento necessário"
As restrições afetam um modal estratégico para os moradores da região, pois em muitas comunidades do interior, o transporte fluvial é a única forma de locomoção e acesso à capital.
"Temos uma carência de rodovias. O Amazonas sobrevive mais de 85% da navegação de cargas e passageiros. Hoje, infelizmente a gente está vivendo uma triste realidade em virtude dessa crise", explica à AFP por telefone de Parintins, a 500 km de Manaus, Alessandra Martins Pontes, especialista em planejamento de transporte pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
"A navegação chega aos locais mais distantes e isolados do norte do país", acrescenta Alessandra, marinheira de convés da Marinha Mercante e ex-presidente (2005 a 2012) da Associação dos Armadores do Transporte de Cargas e Passageiros do Amazonas (Atrac).
Os barcos regionais, embarcações com capacidade para centenas de pessoas, são os mais utilizados. O tempo das viagens sofre alterações com o nível dos rios. Na época das cheias, entre dezembro e julho, são mais curtos, e durante a seca, mais longos.
Em trajetos maiores, de vários dias, como entre Manaus e Carauari (788 km a oeste da capital), que pode durar uma semana, a vida acontece a bordo.
Passageiros costumam dormir em redes que eles próprios levam e penduram enfileiradas. Os objetos pessoais também são pendurados, próximos às redes. Há banheiros a bordo e as refeições são preparadas nas cozinhas na popa dos navios.
Agora, com as medidas restritivas, os moradores do interior já sentem sua circulação afetada.
"A logística aqui de pessoas da cidade está com bastante limitação. Eu mesmo e outras pessoas não podemos ir para unidades de conservação" na região do Médio Juruá, no coração da floresta amazônica, onde centenas de famílias vivem da pesca e do extrativismo, explica à AFP Edervan Vieira, assessor técnico da Associação dos Produtores Rurais de Carauari.
Na cidade ainda não há casos da doença, mas Vieira diz já haver "impacto no escoamento da produção das famílias dos ribeirinhos extrativistas".
Apesar disso, acredita que a situação vai se normalizar em breve e diz que a população local vai sofrer menos do que em grandes centros, onde o adensamento populacional é maior, facilitando o contágio.
"Até o momento, as populações ribeirinhas estão tranquilas em relação à covid-19. Ainda não demonstram preocupação com desabastecimento, pois 80% de sua alimentação é produzida nas próprias comunidades", explica à AFP Enoque Ventura, supervisor de projetos da ONG Fundação Amazonas Sustentável (FAS) em comunidades ribeirinhas do Médio Juruá, em Carauari.
"Morar na floresta também traz grandes desafios pra nós. Neste momento da pandemia e do isolamento necessário, a única coisa que nos preocupa é ter que ir à cidade para alguma emergência porque acreditamos que estar lá é o grande risco", diz a técnica em produção sustentável Maria Cunha, 26 anos, moradora da comunidade São Raimundo, na Reserva Extrativista do Médio Juruá.
"Temos o essencial para nossa sobrevivência aqui: frutas, peixes, farinha, açaí... O complemento disso compramos na cantina da comunidade. Estamos nos adequando a essa realidade. Mas se esse tempo for muito longo, sim, vamos nos preocupar porque não terá como a associação dos produtores rurais de Carauari reabastecer a cantina."
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