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Um ano após atentados de Bruxelas: feridas psicológicas ainda afetam vítimas que escaparam ilesas

Rei Felipe, da Bélgica, durante homenagem às vítimas dos atentados em Bruxelas; ataque de um ano atrás deixou 32 mortos e mais de 300 feridos - Didier Lebrun/Pool via AP
Rei Felipe, da Bélgica, durante homenagem às vítimas dos atentados em Bruxelas; ataque de um ano atrás deixou 32 mortos e mais de 300 feridos Imagem: Didier Lebrun/Pool via AP

22/03/2017 09h10

Há um ano, um triplo atentado terrorista no aeroporto internacional de Zaventem e na estação Maelbeek, em Bruxelas, na Bélgica, matou 32 pessoas e deixou outras 324 feridas.

O saldo de vítimas inclui ainda pessoas que saíram ilesas fisicamente das três explosões, mas enfrentam profundos danos psicológicos associados aos eventos que presenciaram, entre elas socorristas, militares e policiais.

"Quando vimos as imagens (dos atentados) na televisão fiquei pensando: como pode não ter acontecido nada com a gente? Não tivemos nada, nem um arranhão", lembra Angelique Petit em entrevista à BBC Brasil.

Às 7h58 daquele 22 de março, Angelique estava com o ex-marido e suas duas filhas aguardando sua vez de despachar bagagens no aeroporto quando a primeira bomba explodiu a poucos metros deles.

"Ouvi um estrondo muito forte. Quando olhei pra trás, vi uns pedaços do teto caindo e muita fumaça. Lembro que ia perguntar para minha filha se ela também tinha ouvido, mas não deu tempo. A segunda bomba explodiu", relata Angelique.

Sem entender o que acontecia, ela agarrou o braço da filha mais nova, Aicha, de 11 anos, e correu para fora do aeroporto, seguindo centenas de pessoas, em meio a um espesso pó branco que tomava conta do ar.

"A primeira coisa que vimos foi um homem com o rosto coberto de sangue, encostado contra a parede do aeroporto. Vimos pessoas muito feridas saindo. Foi horrível", conta.

"Depois, a polícia nos levou a uma sala onde os feridos recebiam os primeiros socorros e esperavam para ser evacuados. Certa hora, fui ao banheiro. O lugar tinha sangue por todos os lados. Isso me marcou."

Trauma

Aicha ficou em estado de choque. A menina já pensou em se suicidar e, hoje, não pode ficar sozinha.

Segundo Mélanie Galien, coordenadora do serviço de intervenção psicossocial urgente da Cruz Vermelha belga, uma situação desse tipo desencadeia um "sentimento de terror diante da iminência da morte", o chamado estresse pós-traumático.

"É algo mais forte do que o medo. Isso se fixa na mente humana e provoca ansiedade. A pessoa se sente impotente diante da violência inesperada. Por um lado, há a impotência de ver o sofrimento alheio e não poder fazer nada, por outro, há a impressão de ter passado perto da morte", explica à BBC Brasil.

O trauma pode ser maior quando o evento violento ocorre em uma situação do cotidiano, porque é ainda menos esperado, e quando o ato é intencional.

"Quando se é vítima de uma catástrofe natural, um tsunami, por exemplo, o impacto é diferente. Um ato terrorista causa um grau suplementar (de trauma psicológico), porque a pessoa sabe que houve a intenção de tirar a vida", afirma Galien.

No entanto, o psicólogo Christiaan Schotte, professor da Universidade Livre de Bruxelas, ressalta que só uma de cada três pessoas expostas a episódios traumáticos sofrem danos psicológicos e a maioria delas consegue superá-los em até três meses.

"O nível do trauma não está necessariamente ligado à situação, ao que a pessoa viu ou viveu. Depende do indivíduo, de fatores anteriores, se a vida estava bem, se tem uma família equilibrada."

O pai de Aicha, Abid, e sua irmã, Emilie, de 21 anos, não sentiram necessidade de procurar ajuda. Já a menina ainda consulta uma psicóloga uma vez a cada quinze dias.

"Nos primeiros dias, ela estava apática, com o olhar perdido. A gente falava com ela, e ela não respondia. Não queria comer. Fazia xixi e cocô na roupa, tinha pesadelos", conta Angelique.

"Ainda hoje, ela vai dormir comigo às vezes. Também não anda mais em transporte público. Se eu demoro um pouco pra ir buscá-la na escola, ela entra em pânico."

Foi a psicóloga quem alertou, em junho passado, sobre os pensamentos suicidas de Aicha e recomendou que ela não fosse deixada sozinha, pois havia um risco de menina, hoje com 12 anos, tentar se matar.

Segundo Schotte, situações comuns do cotidiano, como uma porta que bate, podem desencadear lembranças vívidas do incidente em um paciente com estresse pós-traumático.

"Nessa situação, as imagens dos feridos voltam, os cheiros voltam, a pessoa sente o medo de morrer."

Incompreensão

O estresse pós-traumático ainda pode ser agravado por uma incompreensão pelo paciente do seu problema e um sentimento de que ele ou ela não tem direito de se considerar uma vítima por ter sequelas apenas psicológicas e não físicas.

Galien, da Cruz Vermelha belga, explica que "quando você tem um braço quebrado ou perdeu uma perna, as pessoas veem a ferida, se interessam pela vítima.

"O trauma psicológico é uma ferida invisível, por isso os outros costumam ter dificuldade em compreender (o trauma)", observa.

Schotte diz que, "logo depois (do incidente), amigos, colegas de trabalho e familiares demonstram empatia (pelo sobrevivente). Eles sabem que é preciso algum tempo para superar o que aconteceu".

"Mas, um ano depois, todo mundo já se esqueceu, retomou sua vida, e tendem a achar que a pessoa que segue mal está exagerando. É aí que a vítima entra na fase da desilusão, se sente abandonada, incompreendida."

Angelique diz sentir-se abandonada pelo Estado belga por não ter recebido qualquer indenização.

O seguro saúde só cobriu oito consultas psicológicas. Por isso, a vendedora de 47 anos, aposentada há três por invalidez, arca com o custo de cerca de 200 euros por mês do tratamento da filha.

"Às vezes, acho que teria sido mesmo melhor se eu tivesse morrido lá. Porque tudo mudou. Eu não sou mais a mesma. Minha filha não é mais a mesma. Minha vida não é mais a mesma", diz ela, emocionada.

Questionado pela BBC Brasil, o ministério da Saúde do país afirmou que sobreviventes na mesma situação de Angelique são considerados vítimas indiretas dos atentados e têm direito a indenização - que deverá ser paga por seguradoras.

Também devem receber a assistência prevista no Estatuto Nacional de Solidariedade com Vítimas de Ataques Terroristas, um mecanismo que ainda precisa ser aprovado pela Câmara Federal antes de entrar em vigor.

No entanto, as vítimas precisam se declarar como tal junto aos organismos competentes.

A federação belga de empresas de seguros de saúde, Assuralia, recebeu 1.361 pedidos de compensação relacionados aos atentados do 22 de março, do que se pode deduzir que pelo menos 1 mil foram apresentados por vítimas que não sofreram danos físicos.

O dado exato é desconhecido. O governo belga não contabilizou quantos trabalhadores pediram dispensa médica em decorrência de estresse pós-traumático ou outros danos psicológicos causados pelos ataques.

Por respeito a seus funcionários, Polícia Federal, Exército, hospitais e serviços de resgate não comunicam os números relativos a seus quadros.

Já a empresa de transportes públicos de Bruxelas (Stib) afirma que treze de seus empregados receberam dispensa médica depois dos atentados. Uma delas continua parada por motivos psicológicos, de acordo com a porta-voz, Cindy Arents.

Bloqueio

Um ano após os atentados, Mohamed El Bachri, de 36 anos, ainda não voltou ao trabalho que exercia como condutor de metrô na capital e diz duvidar se um dia o fará.

O bloqueio se deve à morte de sua esposa, Loubna, na terceira explosão daquele 22 de março, que destruiu um vagão de metrô na estação Maelbeek.

"Nunca mais entrei (no metrô). Não é medo. Medo de quê, se metade de mim já morreu? Mas é impossível, não posso suportar", afirma à BBC Brasil.

Desde os atentados, ele se dedica completamente aos três filhos do casal, que ainda não entendem direito o que aconteceu com a mãe. Eles têm dificuldade para dormir e têm se mostrado agressivos na escola.

"Meu desafio é mostrar a nossas crianças a que ponto esse mundo é bonito apesar do que aconteceu conosco."

Seus olhos se enchem de lágrimas ao lembrar como, há alguns meses, um segurança barrou sua entrada em um órgão da administração pública, em Bruxelas, exigindo verificar o pacote que ele levava nas mãos.

Era uma caixa de bombons que ele queria entregar a uma pessoa para agradecê-la pela ajuda que ela havia lhe dado.

"O cara achou que pudesse ser uma bomba! É ridículo. Eu deveria rir. Eu estava querendo ser gentil e ele achou que eu pudesse ser um terrorista", conta ele com um sorriso triste e as mãos trêmulas.

A desconfiança fez ele se sentir comparado àqueles que tiraram a vida de sua esposa.

El Bachri atribui isso à estigmatização que, diz ele, sempre afetou a população de origem árabe de Molenbeek, bairro de classe baixa onde nasceu, cresceu e vive até hoje.

O bairro ficou conhecido por ser o berço de alguns dos membros da célula terrorista responsável pelos atentados na capital belga e pelos ataques de 13 novembro de 2015 em Paris.

"Tenho de aceitar que muita gente que não me conhece me associe (aos terroristas). É mais uma punhalada. Como podem achar que posso ser como esses idiotas que me tiraram o amor da minha vida, mãe dos meus três filhos (de 3, 8 e 10 anos)?", se indigna.

Assim como muitos dos terroristas, o viúvo de Loubna é filho de marroquinos muçulmanos que chegaram à Bélgica nos anos 1960, quando o país precisava de mão de obra estrangeira.

Na comunidade muçulmana que se formou em Molenbeek, todas as famílias se conhecem, mesmo sem ser amigas.

El Bachri sabe quem são os familiares de alguns membros da célula de Bruxelas. Passa diariamente diante das casas dos terroristas. Sabe que um deles frequentou a mesma escola pública católica que ele.

Essa proximidade histórica, cultural e física com os homens que mataram sua esposa torna sua dor "insuportável".

"Todo dia é 22 de março. Todo dia me levanto e tudo recomeça. Tenho que enfrentar, ao mesmo tempo, a estigmatização, a incompreensão e a raiva do que aconteceu. Sou vítima duas vezes."

Ele diz que se, por acaso, cruzar na rua com os pais ou os irmãos de algum dos terroristas, vai "cumprimentar, com educação".

"Mas não tenho intenção de falar com eles. Pra quê? Pra dizer o quê? Perguntar o quê? O que é que eu vou querer entender? É impossível entender a loucura."

Conversas no bairro

Em 2012, jovens de Molenbeek começaram a ir para a Síria para lutar com grupos radicais que mais tarde dariam origem ao autodenominado Estado Islâmico. O movimento alimentava as conversas no bairro.

"Loubna e eu achávamos incompreensível. Queríamos proteger nossas crianças dessa loucura e ela acabou caindo nas nossas cabeças. Quem poderia imaginar?".

El Bachri descreve a esposa como uma "muçulmana ocidental", moderna, que não usava véu, dava aula de ginástica em uma escola e "podia conversar sobre tudo".

Como ele, Loubna defendia que as escolas belgas deveriam ensinar melhor a história do país e os motivos das ondas migratórias que recebeu para combater a estigmatização e suas consequências.

"A cultura permite relativizar. Temos que contar nossa história comum. Saber por que e como (os imigrantes chegaram) aqui ajuda a combater frases como 'volte pra sua casa' que muitos imigrantes escutam. Aqui é a nossa casa."

Veja os locais onde ocorreram ataques em Bruxelas

AFP