Crise na Venezuela: as últimas intervenções militares dos EUA que mudaram governos na América Latina
Presidente americano, Donald Trump, não descarta opção militar na Venezuela, apesar da oposição da maioria dos países da América Latina, onde espectro das intervenções de Washington no passado continua presente.
Com o agravamento da crise na Venezuela, um fantasma voltou a rondar a América Latina: o da ameaça de uma intervenção militar dos Estados Unidos.
Já em 2017, o presidente americano, Donald Trump, fez menção a "uma possível opção militar se necessária" no país sul-americano.
Mais recentemente, a ideia ganhou peso desde que Juan Guaidó se declarou "presidente interino" da Venezuela, iniciativa descrita pelo presidente venezuelano, Nicolás Maduro, como uma "tentativa de golpe de Estado" orquestrada com o apoio dos Estados Unidos.
Desde então, Trump reitera que "todas as opções estão na mesa". E o episódio em que fotógrafos capturaram uma misteriosa mensagem - "5 mil soldados à Colômbia" - manuscrita em um caderno do assessor para Segurança da Casa Branca, John Bolton, jogou ainda mais lenha na fogueira.
O caderno foi flagrado em uma entrevista coletiva à imprensa em Washington, depois que Bolton havia se reunido com outros funcionários do governo para anunciar um pacote de sanções contra a estatal venezuelana PDVSA, com o objetivo de aumentar a pressão pela renúncia do mandatário Nicolás Maduro. Bolton também instou militares venezuelanos a apoiarem Guaidó.
Quando questionado se permitiria uma intervenção, Guaidó não descarta a opção.
A maioria dos países latino-americanos, que reconhecem o governo de Guaidó, no entanto, se opõe à essa possibilidade.
No dia 25 de fevereiro, os países do continente reunidos no Grupo Lima afirmaram que "a transição para a democracia deve ser conduzida pelos próprios venezuelanos".
Não em vão, os Estados Unidos já têm uma longa história de intervenções na região - muitas das vezes alegando estarem defendendo seus interesses de segurança -, que ainda permanecem vivas na memória dos latino-americanos.
Um artigo da Universidade de Harvard de 2005 reviu os episódios em que os Estados Unidos intervieram na América Latina para forçar uma mudança de governo. Desde 1898 a 1994, foram 41 ocasiões: ou uma vez a cada dois anos, aproximadamente.
"[As intervenções] geraram ressentimentos desnecessários na região e questionaram o compromisso dos EUA com a democracia e o estado de direito nos assuntos internacionais", escreveu John H. Coatsworth, historiador e autor do artigo.
Muitas dessas intervenções conduziram uma virada radical no cenário político desses países.
Com base no estudo de Harvard, a BBC News Mundo, o serviço em notícias em espanhol da BBC, lista os países da América onde intervenções "diretas" (implantadas por forças militares ou organizadas por seus agentes de inteligência) levaram a mudanças radicais.
A compilação não inclui casos em que os EUA "tentaram depor um governo latino-americano, mas fracassaram em sua intenção".
Tampouco estão na lista 27 casos considerados "intervenções indiretas", nas quais os protagonistas foram atores locais de cada país com o apoio americano, como o golpe militar no Chile, que depôs o presidente Salvador Allende em 1973.
Cuba
O interesse dos Estados Unidos em expandir seu território no final do século 19 levou o país a focar no Caribe, onde a Espanha ainda mantinha algumas colônias - que se recusou a vender a Washington.
Cuba, imersa em sua guerra de independência contra os espanhóis desde 1895, viu os EUA se juntarem em sua luta contra os europeus três anos depois.
A razão oficial para a intervenção americana foi o afundamento do navio de guerra Maine em frente a Havana. Acusada pelo episódio, a Espanha negou participação.
O conflito, conhecido como a Guerra Hispano-Americana de 1898, terminou com a derrota da Espanha e a perda de Cuba, junto com outras colônias, como Porto Rico, Filipinas e Guam.
O governo militar dos EUA na ilha durou quatro anos, até o momento em que Tomás Estrada Palma assumiu a Presidência do país recém-independente.
Mas a influência de Washington, que então estabeleceu sua base naval em Guantánamo, estava crescendo.
Em 1906, Estrada Palma solicitou a presença de forças militares dos EUA por causa da eclosão de uma crise interna e de uma insurreição contra seu governo.
Essa segunda intervenção dos EUA em Cuba, que durou três anos, terminou com a eleição de José Miguel Gómez como o segundo presidente do país caribenho.
Em 1917, fuzileiros navais dos EUA retornaram a Cuba em meio a um clima de grande instabilidade. Mais uma vez, os americanos foram chamados para resolver uma crise interna - um tipo de intervenção estrangeira que passou a ser vista, por muitos políticos locais, como uma solução, e não como um sintoma do enfraquecimento de suas instituições.
Panamá
O Panamá é outro país latino-americano cuja história é fortemente influenciada pela presença dos Estados Unidos.
Em 1903, uma intervenção de Washington foi decisiva para que o país da América Central (então um Departamento da Colômbia) conseguisse sua independência.
Em troca, o Panamá assinou o Tratado Hay-Bunau Varila, através do qual cedeu aos Estados Unidos 16 km na zona do Canal em perpetuidade, o que deixou o país fisicamente dividido em dois até recuperar a soberania de seu território, no final de 1999.
Dez anos antes, em 1989, os EUA haviam bombardeado a Cidade do Panamá em uma tentativa de capturar o general Manuel Antonio Noriega, o governante de fato do país, que a Justiça americana acusava de tráfico de drogas.
Diferentes fontes calculam que entre 500 a 4 mil civis morreram. Especialmente dramática foi a operação em El Chorrillo, um bairro popular onde a sede central das Forças de Defesa e os escritórios de Noriega estavam localizados, e que foi quase completamente destruído por grandes incêndios.
Guillermo Endara, vencedor das eleições de maio de 1989 - cujo resultado Noriega se recusou a aceitar -, fez seu juramento como presidente durante a invasão em uma base militar dos EUA na Zona do Canal.
Noriega se rendeu um mês e meio após o início do ataque e foi condenado à prisão nos EUA. Em 2011, voltou ao Panamá, onde continuou cumprindo pena, até sua morte, em 2017.
Nicarágua
No início do século 20, a relação entre os EUA e o presidente da Nicarágua, José Santos Zelaya, ficou especialmente tensa pelo fim de concessões a empresas americanas no país e pelo apoio de Washington ao Panamá para a construção do canal interoceânico.
Juan José Estrada Morales, governador da região com capital no município litorâneo de Bluefields (centro de investimentos dos EUA na Nicarágua), liderou uma revolta contra Zelaya apoiada pelos Estados Unidos.
O assassinato de dois americanos acusados de participar do levante fez com que, em 1910, os militares dos Estados Unidos desembarcassem nas cidades litorâneas de Corinto e Bluefields sob a justificativa de proteger seus cidadãos e seus bens no país.
Zelaya sucumbiu à pressão política dos EUA e fugiu do país. Em 1910, Estrada Morales tornou-se presidente da Nicarágua com o reconhecimento oficial de Washington, que passou a exercer uma influência sobre o país que se estenderia por décadas.
Os governos conservadores apoiados pelos EUA na Nicarágua sempre tiveram de lidar com a forte oposição de grupos liberais, que partiram para o enfrentamento.
Em 1912, o presidente Adolfo Díaz pediu a Washington para intervir no país, alegando não poder garantir a segurança dos cidadãos americanos nem de suas propriedades na Nicarágua.
Tropas dos Estados Unidos assumiram então o controle da ferrovia que ligava o porto de Corinto a Granada (fundamental para os interesses de Washington) e condenaram ao fracasso qualquer tentativa de revolta dos liberais, que acabaram se rendendo.
A presença militar dos EUA continuou na Nicarágua por mais de uma década, até 1925.
Depois das eleições realizadas um ano antes, os liberais conseguiram retornar ao governo por meio de uma aliança com os conservadores, o que causou discrepâncias entre eles.
Logo após a saída das tropas americanas, o general conservador Emiliano Chamorro deu um golpe de Estado, forçou o fim da coalizão do governo com os liberais e tomou posse como presidente em 1926.
Os EUA, no entanto, não endossaram sua nomeação, e a Nicarágua acabou mergulhando em uma guerra civil. Os EUA voltaram a enviar soldados em 1927, que enfrentaram o movimento guerrilheiro de Augusto César Sandino, contrário à ocupação americana.
O apoio dos liberais e conservadores a Juan Bautista Sacasa, vencedor das eleições de 1932, ajudou a costurar um acordo que pôs fim à rebelião de Sandino e à retirada dos EUA em 1933.
Washington deixou o militar Anastasio Somoza como comandante da Guarda Nacional criada pelos Estados Unidos como a única força armada no país. Sandino foi assassinado em 1934 e, em 1936, Sacasa foi derrubado por Somoza, que permaneceu no poder por quase duas décadas com o apoio americano.
México
Em 1914, EUA e o México protagonizaram o chamado Incidente de Tampico, em referência a um município no nordeste do México que contou com investimentos significativos de companhias de petróleo dos EUA.
Os EUA, que enviaram vários navios à região para proteger seus cidadãos e seus interesses, criticaram a detenção de alguns dos seus fuzileiros navais que haviam entrado em uma área restrita.
Washington considerou esse incidente extremamente grave e se sentiu ofendido pelo governo do presidente mexicano Victoriano Huerta.
Dias depois, os Estados Unidos ocuparam a cidade de Veracruz, no Golfo do México, a fim de impedir a chegada de um grande carregamento de armas destinado ao Exército mexicano e, assim, apoiar o general Venustiano Carranza, que liderou o exército constitucionalista até o fim da Revolução mexicana.
Após o bombardeio e tomada de controle do porto de Veracruz, a intervenção dos EUA culminou com a saída das tropas dos EUA sete meses depois.
Haiti
No início do século 20, os EUA também tinham interesses comerciais no Haiti, um país em estado de convulsão social e especialmente dominado pela comunidade local alemã.
Em 1915, após uma revolta que acabou com o brutal linchamento do presidente Jean Vilbrun Guillaume Sam, os EUA temiam a possível ascensão ao poder de Rosalvo Bobo, que queria cortar os investimentos de Washington e suspender o pagamento de dívidas com bancos americanos.
Em 1915, centenas de fuzileiros navais dos EUA desembarcaram no Haiti. A intervenção militar garantiu que os americanos assumissem controle das alfândegas e das principais instituições econômicas haitianas, permitindo recuperar parte de seus empréstimos ao país caribenho.
A intervenção dos EUA no que hoje é o país mais pobre da América Latina durou quase duas décadas, até 1934.
O Haiti também foi palco da última "intervenção direta" dos militares dos EUA até hoje, segundo o estudo de Harvard.
Em 1991, um movimento militar liderado pelo general Raoul Cedras derrubou o presidente Jean-Bertrand Aristide, eleito nas eleições do mesmo ano.
O que se seguiu no país foi um aumento da pobreza e da corrupção - assim como da emigração para outros países, como os Estados Unidos.
Em 1994, Washington liderou uma coalizão internacional e suas forças militares invadiram o Haiti. Horas após a chegada de suas primeiras tropas, chegou-se a um acordo para que a liderança militar haitiana renunciasse ao poder e, em 1995, foram realizadas eleições.
República Dominicana
A primeira ocupação norte-americana da República Dominicana ocorreu em 1916. A instabilidade do governo do país caribenho era notória na época, em parte devido aos desentendimentos do presidente, Juan Isidro Jimenes, com seu secretário de Guerra, Desiderio Arias.
Anos antes, os EUA tinham assumido dívidas dominicanas com a assinatura de um acordo pelo qual a administração das alfândegas do país caribenho seria entregue ao governo americano. Washington justificou que a instabilidade no país colocava em risco o pagamento aduaneiro e que a República Dominicana não cumpria seus compromissos financeiros.
Nesse cenário, o governo americano propôs a intervenção militar como a única saída para a crise no país. Seu Exército forçou Arias a deixar a capital, Santo Domingo, e os fuzileiros navais iniciaram a ocupação.
Jimenes renunciou e os EUA instauraram um governo militar sob o comando do contra-almirante Harry Shepard Knapp. A ocupação terminaria em 1924.
Décadas mais tarde, a CIA, a agência de inteligência americana, foi implicada no assassinato de Rafael Leónidas Trujillo, que governou com mão de ferro a República Dominicana de 1930 até sua morte em 1961.
Durante a maior parte de seu governo, Trujillo se manteve próximo dos EUA, mas a relação desandou no fim de sua gestão. Em 1960, Washington fechou sua embaixada em Santo Domingo. Uma das razões foi uma tentativa de assassinato do então presidente da Venezuela, Rómulo Betancourt, patrocinada por Trujillo.
Os Estados Unidos haviam aprovado um plano de contingência para eliminar Trujillo e entregaram três fuzis aos autores de seu assassinato para reforçar seu arsenal quando realizassem o ataque.
No entanto, após o fracasso da invasão da Baía dos Porcos em Cuba, em 17 de abril de 1961, Washington tentou sem sucesso impedir os planos na República Dominicana, com medo de que o complô contra Trujillo também falhasse.
Após o assassinato e várias tentativas de parentes de Trujillo de tomarem o poder para si, o país realizou eleições, em 1962, nas quais Juan Bosch foi eleito.
Militares conservadores e parte da oligarquia dominicana, insatisfeita com as medidas do novo governo de Bosch, lideraram um golpe que o derrubou, em 1963, e levou a uma guerra civil.
Os dois anos seguintes foram marcados por uma forte instabilidade política, com numerosas greves e conflitos entre aqueles que apoiavam a reintegração de Bosch e os militares, favoráveis a um triunvirato após o golpe de Donald Reid Cabral, apoiado pelos Estados Unidos.
Washington, temendo uma possível expansão comunista no Caribe além de Cuba, decidiu intervir militarmente em 1965 e ordenou que suas tropas restaurassem a ordem na República Dominicana.
A presença militar dos EUA foi mantida até um ano depois, quando eleições foram realizadas e Joaquín Balaguer venceu Juan Bosch, que nunca conseguiu recuperar o poder.
Guatemala
Em 1954, a Guatemala sofreu um golpe de estado como resultado de uma operação orquestrada pela CIA para derrubar o presidente, Jacobo Árbenz Guzmán.
Árbenz colocou em prática políticas que a espionagem americana considerava comunistas e que despertaram sua preocupação, bem como uma influência excessiva no governo nacional do Partido Trabalhista da Guatemala.
Uma de suas principais políticas foi a reforma agrária. A expropriação acabou por afetar a poderosa empresa americana de banana United Fruit Company, que se recusou a continuar no país centro-americano sob as novas condições de Árbenz, que se recusou a estender suas concessões.
Sob a justificativa de supostos vínculos do presidente com a União Soviética, os EUA apoiaram o golpe militar do tenente-coronel guatemalteco Carlos Castillo Armas, que contou com apoio de caças americanos.
Nove dias após a entrada das tropas, Árbenz anunciou sua renúncia.
Granada
Apoiado por vários países do Caribe, os EUA invadiram Granada em 1983, após o golpe que levou Hudson Austin a se proclamar primeiro-ministro da ilha.
Washington justificou sua ação pela instabilidade política em um país tão próximo de suas fronteiras, bem como pela presença de estudantes de medicina americanos em uma universidade local.
Além disso, o governo americano havia acusado Granada de construir instalações para ajudar a militarização do Caribe em favor dos governos de Cuba e da União Soviética, o que as autoridades da ilha negaram.
A invasão dos EUA, durante a qual americanos enfrentaram granadinos e cubanos durante quatro dias, terminou com a vitória de Washington e a nomeação de um novo governo pelo governador-geral de Granada.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.