Roraima exporta 194 kg de ouro à Índia sem ter nenhuma mina operando legalmente
Vendas ocorrem enquanto Terra Indígena Yanomami enfrenta maior invasão de garimpeiros desde os anos 1990; autoridades investigam possível fraude para 'esquentar' ouro extraído ilegalmente do território e abastecer indústrias de joias na Índia.
Policiais federais, procuradores e técnicos da Agência Nacional de Mineração (ANM) tentam decifrar um enigma: como o ouro se tornou em 2019 o segundo maior produto de exportação de Roraima sem que o Estado tenha uma única mina operando legalmente?
As exportações têm como destino quase exclusivo a Índia e ocorrem enquanto a Terra Indígena Yanomami, parcialmente localizada em Roraima, enfrenta a maior invasão de garimpeiros desde sua demarcação, nos anos 1990 - o que leva autoridades ouvidas pela BBC News Brasil a afirmar que o ouro exportado está sendo retirado ilegalmente do território indígena.
Há décadas Roraima lida com garimpos ilegais, atividade associada a graves danos ambientais e sociais. Mas o ouro extraído dessas áreas costumava ser negociado no mercado negro e sua origem não aparecia nas estatísticas do governo.
A diferença é que, agora, ao menos parte das transações tem entrado nos cadastros federais. Investigadores trabalham com as hipóteses de que o garimpo ilegal cresceu tanto que ficou difícil ocultá-lo dos registros oficiais e de que há um esquema para fraudar a origem do ouro proveniente de áreas indígenas.
Uma das suspeitas é que garimpeiros estejam comprando notas fiscais de uma empresa autorizada a explorar minérios em Roraima, "esquentando" o ouro extraído ilegalmente e permitindo que ele seja vendido por preços de mercado, mais altos que os do mercado negro.
Indústria de joias
Segundo o Comex Stat, portal do Ministério da Economia sobre comércio exterior, desde setembro de 2018, 194 kg de ouro originário de Roraima foram exportados para a Índia.
Dono de uma poderosa indústria de joias, o país asiático é o quarto maior importador de ouro brasileiro no mundo. Só outro país além da Índia comprou ouro roraimense: os Emirados Árabes Unidos, que receberam 1 kg do metal em maio deste ano.
Iniciadas em setembro de 2018, as vendas de ouro oriundo de Roraima já renderam US$ 7,8 milhões (o equivalente a R$ 30,2 milhões) e tiveram um salto a partir de janeiro, após Jair Bolsonaro assumir a Presidência e o Exército desativar bases que dificultavam o acesso de garimpeiros ao território yanomami.
Bolsonaro costuma exaltar as riquezas minerais da terra yanomami e já defendeu liberar a exploração econômica na área. Segundo o CPRM (empresa pública de pesquisa geológica), o território indígena abriga a maioria das reservas de ouro conhecidas de Roraima. Não há estudos que estimem o tamanho dos depósitos.
As vendas para a Índia em 2019 somaram US$ 6,5 milhões e tornaram o ouro o segundo produto mais exportado por Roraima, atrás da soja.
O cruzamento de dados divulgados pelo Ministério da Economia indica que ao menos parte do metal foi vendido por meio de uma empresa de Caieiras, na Grande São Paulo.
No entanto, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável por conceder e monitorar licenças para mineradores, não há e não havia nenhuma mina de ouro operando legalmente em Roraima no período em que as exportações aconteceram. O Ministério de Minas e Energia confirma a informação.
"Tudo leva a crer que o ouro esteja saindo de garimpos ilegais", afirma à BBC News Brasil Eugênio Tavares, representante da ANM em Roraima e ex-superindentente do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) no Estado.
Tavares diz que o metal exportado está provavelmente saindo da região do rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami. No fim de maio, uma comitiva com líderes dos povos yanomami e ye'kwana denunciou a órgãos federais em Brasília que ao menos 10 mil garimpeiros estariam atuando dentro do território.
O volume de garimpeiros equivale a quase 40% da população da terra indígena.
Ameaça a grupos isolados
Coordenador de Povos Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio), Bruno Pereira endossa a estimativa dos indígenas sobre o número de invasores na Terra Yanomami.
Ele afirma que o garimpo na região tem tido um efeito "devastador, disseminando doenças e provocando fortes interferências no modo de vida das comunidades". Pereira afirma ainda que a atividade ameaça grupos sem contato com o mundo exterior.
Há um povo isolado confirmado no território yanomami e ao menos outros seis cuja existência está sendo investigada, segundo a Funai. Pereira diz que as malocas do grupo isolado confirmado ficam a 17 km de focos de garimpo.
No fim de maio, a Funai anunciou que acataria uma decisão da Justiça e reabriria três bases na terra indígena fechadas há quatro anos por problemas financeiros e de pessoal.
Pereira diz esperar que as bases ajudem a barrar barcos que abastecem os garimpos com comida e combustível. "Inutilizar o garimpo todo é impossível, eles são ratinhos, mas podemos reduzir significativamente o fluxo."
Um controle ainda mais efetivo da atividade exigiria a destruição de pistas de pouso usadas por garimpeiros - e que tendem a ser mais procuradas se o acesso fluvial for bloqueado. Centenas de pistas foram dinamitadas em operações policiais no passado, mas muitas acabaram reconstruídas.
"Não consigo segurar o garimpo só com meus homens (da Funai), também precisamos do Exército, da Polícia Militar, precisamos de uma agenda de Estado ali dentro", afirma Pereira.
A Polícia Federal e o Ministério Público Federal disseram à BBC que estão investigando denúncias sobre o ouro exportado por Roraima e sobre o garimpo no território yanomami, mas que o caso tramita sob sigilo.
O Ministério de Minas e Energia afirmou que "não tinha conhecimento" do caso e "tomará as providências cabíveis na alçada de suas competências", coordenando-se com outros órgãos para averiguar a situação in loco.
O Exército, por meio do Comando Militar da Amazônia, diz ter realizado diversas operações contra o garimpo ilegal em Roraima em 2018. A BBC questionou por que o órgão desativou no fim de 2018 bases nos rios Uraricoera e Mucajaí que dificultavam o acesso de barcos ao território yanomami.
O Exército respondeu que as instalações eram temporárias e funcionaram por 107 dias, em sistema de rodízio de pessoal. O órgão afirmou ainda que, em 30 de maio, soldados voltaram a transitar pelos dois rios para combater o garimpo, e que militares patrulham a fronteira permanentemente para reprimir atividades ilegais.
A Secretaria de Segurança de Roraima não respondeu perguntas sobre o tema.
Quem pode explorar minérios no Brasil
A Constituição prevê a mineração em terras indígenas, mas a atividade é ilegal por jamais ter sido regulamentada pelo Congresso. Para explorar minérios fora dessas áreas, é necessária uma portaria de lavra concedida pelo Ministério de Minas e Energia.
Eugênio Tavares, engenheiro da Agência Nacional de Mineração (ANM) em Roraima, diz que hoje só uma empresa no Estado tem uma portaria de lavra.
Trata-se da Art Minas, dona de uma licença para operar na Serra do Tepequém, no município de Amajari. O município abriga parte do território yanomami, a maior terra indígena do país, com área equivalente à de Portugal.
Porém, Tavares diz que a mina da Art Minas ainda não está ativa. Ele afirma que a ANM investiga como ouro proveniente de Roraima foi exportado e que convocou a mineradora para questioná-la se ela usou sua licença para emitir notas fiscais para terceiros interessados em ocultar a origem de ouro extraído ilegalmente.
Já a Art Minas afirma que "não tem lógica" a suposição de que estaria envolvida com irregularidades. "Nunca emitimos qualquer nota, porque nós ainda não estamos produzindo", diz à BBC o presidente da empresa, João dos Santos Souza.
Ele afirma que a mina da empresa deve começar a operar até o fim do ano e que está à disposição dos investigadores.
Segundo o representante da ANM, a prática de "esquentar o ouro" (fraudar sua origem para lhe dar aspecto de legalidade) é comum e explicaria a aparição de Roraima nos registros de exportação do metal.
Tavares afirma que o cadastro da origem do ouro exige a indicação de uma empresa autorizada a minerar no território. "Sem esse dado, o sistema trava e não tem nem como avançar."
Ele diz acreditar que não há garimpos ilegais em Roraima fora de áreas indígenas que possam ser a origem do ouro exportado.
Regulamentação de garimpo em terras indígenas
As exportações de ouro oriundo de Roraima foram citadas num ofício enviado em março pelo senador Telmário Mota (PROS-RR) ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Augusto Heleno.
"Mesmo sem ter nenhuma mina legalizada, somente nos dois primeiros meses deste ano, Roraima exportou legalmente cem quilos de ouro para a Índia", disse o senador, que defende a regularização do garimpo em terras indígenas, prevista em projeto de lei que tramita no Congresso desde 1996 e foi proposto pelo então senador Romero Jucá (MDB-RR).
"Como não é possível impedir a exploração ilegal que não paga impostos e precisamos gerar empregos no Estado, sugerimos que a União agilize os procedimentos de legalização da exploração racional sustentável de nossos ativos minerais", afirmou Telmário na carta.
Em entrevista à BBC, o senador também disse acreditar que o ouro exportado tenha saído da Terra Indígena Yanomami. Telmário afirma que a vitória de Bolsonaro em 2018 estimulou o ingresso de garimpeiros no território e aqueceu o comércio ilegal de ouro no Estado.
"Quando o presidente falou em rever as regras para permitir a mineração (em terras indígenas), isso proporcionou uma corrida dos garimpeiros", diz Telmário.
A Presidência da República não quis comentar a fala do senador.
Efeitos do garimpo ilegal
Telmário afirma que, enquanto for ilegal, o garimpo "será uma porta aberta para um monte de irregularidades, como corrupção policial, assassinatos e contaminação de rios". Mas ele diz que a regularização da atividade controlaria os danos e garantiria melhores condições de vida aos indígenas, além de aquecer a economia local.
Já a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal organização indígena do país, é contra a regulamentação da mineração - assim como a Hutukara, maior associação yanomami, liderada por Davi Kopenawa.
"O garimpo não traz benefício pra ninguém. Só traz doença e degradação ambiental. Não tem dinheiro que pague a nossa floresta, os rios e as vidas do nosso povo", disse Kopenawa em uma reunião no Ministério Público Federal (MPF), em Brasília, em maio.
Em 2016, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Socioambiental (ISA) revelou que, em algumas aldeias yanomami, o índice de pessoas contaminadas por mercúrio chega a 92%.
Usado por garimpeiros para facilitar a aglutinação de grãos de ouro, o mercúrio se acumula ao longo de toda a cadeia alimentar, contaminando peixes e quem se alimenta deles. Em humanos, a intoxicação pela substância pode provocar danos neurológicos.
Combate ao garimpo ilegal
Cabe à Agência Nacional de Mineração e a órgãos policiais combater fraudes na comercialização de ouro. Quando o metal sai de terras indígenas, áreas que pertencem à União, a Funai e a Polícia Federal são acionadas. A fiscalização compete ainda ao Banco Central nos casos em que o ouro é destinado ao mercado financeiro.
Uma das principais fontes de informação nessas investigações são os registros de venda de ouro. A legislação determina que quem adquire o metal pela primeira vez deve guardar notas fiscais ou recibos emitidos pelos responsáveis pela extração, além de uma declaração de origem com a lavra, o Estado e o município de onde o ouro provém, e de informações sobre a licença de exploração.
A legislação segue o princípio jurídico da boa-fé, pelo qual se supõe que os dados apresentados pelo vendedor são verdadeiros. Quando há suspeitas, porém, autoridades podem requisitar os documentos para rastrear a origem do ouro.
A BBC perguntou ao Ministério da Economia quais empresas exportaram ouro oriundo de Roraima para a Índia, mas o órgão afirmou que não poderia responder por questões de sigilo fiscal e empresarial.
O ministério detém informações detalhadas sobre o ouro exportado. Parte dos dados é disponibilizada ao público de forma compartimentada pelo portal Comex Stat.
A rota do ouro até a Índia
As exportações de ouro entraram no radar de autoridades de Roraima após aparecerem no Comex Stat. Com base no sistema, a Secretaria de Planejamento do Estado publicou em março uma análise sobre a balança comercial de Roraima na qual citava as vendas para a Índia - mas não a possibilidade de que o metal tivesse origem ilegal.
O texto, assinado pelo economista Fábio Rodrigues Martinez, dizia que o ouro retirado de Roraima estava provavelmente sendo exportado por "empresas sediadas no município de Caieiras", na Grande São Paulo.
Martinez diz à BBC que chegou à informação ao pesquisar no Comex Stat quais municípios abrigavam empresas que haviam vendido ouro para a Índia no mesmo período que Roraima.
Em fevereiro, quando 43 kg de ouro roraimense foram enviados à Índia, só dois municípios foram listados pelo Comex Stat: São Paulo e Caieiras. Saíram de São Paulo 37 kg de ouro, e 670 kg saíram de Caieiras.
Como naquele mês o valor exportado por São Paulo foi inferior ao valor exportado por Roraima, Martinez deduziu que ao menos parte do ouro extraído no Estado havia passado por empresas de Caieiras antes de chegar à Índia.
A BBC buscou no cadastro do Ministério da Economia quais empresas de Caieiras estavam habilitadas a exportar ouro no período. Só uma companhia aparece nos registros, a RBM - Recuperadora Brasileira de Metais.
Em seu site, a empresa diz beneficiar "metais preciosos que estejam previamente sem condições comerciais", depositados em barras de metais impuros ou joias defeituosas, entre outros bens.
No fim de maio, a BBC perguntou à empresa se ela havia comprado ou exportado ouro de Roraima e citou a posição da ANM sobre a inexistência de minas legais no Estado. Mencionou ainda o surto de garimpo na Terra Indígena Yanomami e a suspeita de autoridades de que o território seja a origem do ouro que circula hoje em Roraima.
Apesar de repetidas cobranças, a empresa não respondeu as perguntas e enviou uma nota curta com seu posicionamento sobre o tema.
"A nós da RBM apenas compete dizer que atuamos de acordo com nosso Guia para Fornecimento de Ouro Responsável e que seguimos toda a legislação brasileira e boas práticas do ramo", afirmou a companhia.
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