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Como cortes do governo podem paralisar pesquisas do Brasil na Antártida

A nova estação Antártida Comandante Ferraz será inaugurada em janeiro de 2020 - SECIRM/Marinha do Brasil via BBC
A nova estação Antártida Comandante Ferraz será inaugurada em janeiro de 2020 Imagem: SECIRM/Marinha do Brasil via BBC

Evanildo da Silveira - De São Paulo para a BBC News Brasil

02/10/2019 05h34

Muitos pesquisadores e bolsistas já não poderão participar de uma expedição na qual será inaugurada a nova Estação Antártica Comandante Ferraz, e projetos de pesquisas poderão ser paralisados a partir do ano que vem.

No verão austral 2019/2020, o Brasil deverá realizar a 38ª Operação Antártica (Operantar XXXVIII), expedição de pesquisa na Antártida, que vem ocorrendo desde 1982, como parte do Programa Antártico Brasileiro (Proantar). Como raríssimas vezes aconteceu, no entanto, os cortes e contingenciamentos orçamentários impostos pelo atual governo federal nas áreas de ciência e educação colocam em risco a continuidade do trabalho dos cientistas brasileiros naquelas paragens geladas.

Muitos pesquisadores e bolsistas já não poderão participar da Operantar XXXVIII, na qual será inaugurada a nova Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), e projetos de pesquisas poderão ser paralisados a partir do ano que vem.

Uma vastidão deserta e gelada de 14 milhões de quilômetros quadrados - uma vez e meia a área do Brasil -, onde a temperatura pode chegar a quase 90ºC negativos, com ventos de mais de 320 quilômetros por hora, e praticamente sem chuvas poderia ser considerada apenas uma região inóspita e estranha, de interesse para poucos, como aventureiros, amantes de boas fotos, de pinguins e das esquisitices do planeta Terra. É um grande engano.

"Apesar de ser mais conhecida pela presença de gelo e neve, a Antártida possui complexos ecossistemas, muito deles pouco conhecidos e até alguns ainda desconhecidos", diz o pesquisador Luiz Henrique Rosa, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador do projeto MycoAntar do Proantar, que estuda fungos com possíveis propriedades medicinais.

De acordo com ele, esses ecossistemas abrigam seres vivos únicos e adaptados às condições extremas da região e que estão isolados geograficamente do restante do planeta. "Em outras palavras, a Antártida possui uma biodiversidade pouco conhecida pela ciência", explica. "Por estarem sem contato com o mundo de fora, esses organismos, representados por animais, plantas e principalmente pelos micro-organismos, têm o potencial de produzirem substâncias de interesse em processos biotecnológicos."

Eles podem ser comparados a fábricas vivas, capazes de produzir diferentes substâncias bioativas, entre as quais muitas com diferentes atividades biológicas.

"Em 12 anos de pesquisas, nosso grupo já descobriu espécies selvagens de fungos produtores de substâncias antimicrobianas, antivirais (contra o vírus da dengue), tripanossomicida (que atuam contra o Trypanossoma cruzi, o agente causador da doença de Chagas) e pesticidas (capazes de inibir outros fungos e ervas daninhas para a agricultura)", conta Rosa. "Ou seja, as atividades científicas do Proantar têm grande potencial para contribuir com o setor produtivo do Brasil e na medicina, por exemplo."

Importância clilmática global

O glaciólogo Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vice-presidente do Scientific Committtee on Antarctic Research (SCAR), órgão máximo da pesquisa antártica internacional, lembra outro aspecto que reforça a importância das pesquisas na Antártida. De acordo com ele, o continente tem papel fundamental nas correntes marítimas e no clima de todo o mundo, que por sua vez influenciam, por exemplo, a riqueza marinha e o desempenho agrícola. "As regiões polares são tão importantes quanto os trópicos no sistema ambiental global", garante.

Isso ocorre, de acordo com ele, porque a circulação atmosférica e oceânica e, consequentemente, o sistema climático terrestre, decorre da transferência de energia dos trópicos para as regiões polares. "Os processos que lá ocorrem nos afetam e vice-versa", explica.

"As frentes frias, por exemplo, que podem chegar até o sul da Amazônia, são geradas no Oceano Austral. Graças às pesquisas antárticas, vamos melhorar a previsão do tempo no Brasil, essencial se quisermos aumentar nossa produtividade agrícola e diminuir o custo social de desastres climáticos. Por isso, insisto na frase, na qual o brasileiro ainda não está condicionado a pensar: a Antártida é tão importante quanto a Amazônia para o meio ambiente planetário."

Mas não é só isso. Além da importância científica, há um aspecto geopolítico que o Brasil não pode menosprezar. A Antártida possui a maior reserva de água potável do mundo e certamente pode ter riquezas minerais embaixo do manto de gelo eterno, que em alguns lugares pode chega a 5 km de espessura.

Hoje, é o único continente que não pertence a nenhum país. Para que algumas nações no futuro tenham o direito de explorar essas riquezas, foi assinado em 1959, por 44 países, o Tratado da Antártida, que regulamenta todas as atividades no continente e estabelece que ele deve ser usado apenas para fins pacíficos e de cooperação internacional para o desenvolvimento de pesquisas científicas.

O documento, que entrou em vigor em 1961, foi assinado pelo Brasil em 1975, inicialmente como membro aderente. O país só iniciou suas pesquisas no continente gelado, no entanto, no verão austral de 1982/1983, com a Operação Antártica I.

Direito a voto e veto

O principal resultado dessa primeira expedição foi a aceitação do Brasil, em 12 de setembro de 1983, como membro consultivo do tratado, ou seja, com direito a voto e veto, privilégio apenas de outros 28 países. "Para garantir esse direito, o Artigo IV do Tratado, estabelece que os países devem realizar pesquisas contínuas e significativas na Antártida", diz o biólogo Paulo Câmara, da Universidade de Brasília (UnB), que realiza pesquisa no continente há 6 anos. "O que a falta de recursos pode colocar em risco."

Com esse objetivo o Brasil construiu a EAFC, inaugurada em 6 de fevereiro de 1984, na Baía do Almirantado, na Ilha Rei George, no Arquipélago das Shetlands do Sul, ao norte da Península Antártica.

Inicialmente ela possuía oito módulos, semelhantes a containers, número que chegou a 62, com instalações relativamente confortáveis, com compartimentos de tamanhos variados, entre eles 13 laboratórios destinados às ciências biológicas, atmosféricas e químicas, além de alojamentos que podiam acomodar até 58 pessoas, biblioteca, sala de computadores, enfermaria e um pequeno centro cirúrgico, sala de ginástica e até oficinas de veículos.

Na madrugada do dia 25 de fevereiro de 2012 ela foi destruída por um incêndio, que começou às 2h da madrugada e matou dois militares, que tentavam apagar o fogo. Uma nova base foi construída, que deverá ser inaugurada em janeiro do ano que vem. Ela já está praticamente pronta, tem 4,5 mil metros quadrados e é uma das mais modernas da Antártida.

A nova EACF terá 17 laboratórios, ultrafreezers para armazenamento de amostras coletadas pelos pesquisadores, além de alojamentos e espaços de convivência e de lazer e poderá abrigar até 65 pessoas.

Não basta, no entanto. Ela por si só não garante as pesquisas brasileiras na Antártida. São necessários recursos para financiá-las. Caso contrário, há o risco de ter uma base, mas não estudos na Antártida. Daí a preocupação da comunidade científica com os cortes orçamentários.

"No ano passado, foi aberto um edital de R$ 18 milhões para pesquisa cientifica, alardeado como o maior dos últimos anos", conta Câmara. "Esse valor deveria bancar as atividades por quatros anos, o que daria cerca de R$ 4,5 milhões por ano."

Esse montante foi reduzido, no entanto. "Com a mudança de governo, imediatamente R$ 2 milhões não foram aplicados", diz Câmara.

"Seriam bolsas da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que já estavam empenhadas. "Até hoje não entendi o que aconteceu com elas. Minha melhor explicação é que elas simplesmente sumiram, deixando o edital com apenas R$ 16 milhões da noite para o dia. As bolsas são fundamentais para o andamento do projeto, em particular para formação de recursos humanos e evitar fuga de cérebros."

Além disso, continua Câmara, recentemente as demais bolsas foram contingenciadas (menos R$ 3,7 milhões), causando um prejuízo ainda maior.

"O alardeado edital de R$ 18 milhos agora está em cerca de R$ 12 milhões, o que dá cerca de R$ 3 milhões por ano para apoiar 17 projetos. Ou seja, estamos novamente em situação de penúria, na qual há o risco de paralisação das pesquisas antárticas por falta de recursos."

Edital

Procurado pela BBC Brasil, o Ministérios da Ciência Tecnologia e Inovação e Comunicações (MCTIC) não respondeu diretamente as questões que lhe foram enviadas. Por meio de sua assessoria de imprensa, enviou uma nota padrão, na qual cita o edital de R$ 18 milhões, ao qual se referiu Câmara. Acrescenta ainda recursos liberados em anos anteriores a 2018, no valor total de R$ 5,5 milhões, que já foram gastos.

O texto reconhece que "por enquanto não há previsão de novos recursos". A nota diz ainda que "é importante ressaltar o apoio continuado do MCTIC ao Proantar e a consideração do Ministério pela ciência antártica e a eficiente e comprometida condução pela comunidade acadêmica envolvida no Programa. São anos em que, apesar das restrições fiscais, o Proantar tem se mantido ininterrupto".

Para a comunidade científica é pouco. "A situação pode ser pior a médio e longo prazo para a pesquisa antártica em 2020, pois o governo sinalizou cortes ainda mais profundos em pesquisa e educação", lamenta Rosa.

"O Proantar terá suas atividades científicas comprometidas, o que pode gerar prejuízos imensuráveis em termos da participação do Brasil no Tratado Antártico, no qual tem direito a voto sobre o futuro de cerca de 10% do mundo, a Antártida. Vale ressaltar que em nenhum outro fórum mundial o país tem tal prestígio e poder de voto, com o mesmo peso dos Estados Unidos, da Rússia e da China por exemplo."


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