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Os documentos secretos que revelam sistema de lavagem cerebral de minoria étnica em campos de detenção na China

Estima-se que quase 1 milhão de pessoas tenham sido levadas para campos de detenção na China - BBC
Estima-se que quase 1 milhão de pessoas tenham sido levadas para campos de detenção na China Imagem: BBC

25/11/2019 09h00

Documentos detalham como presos só conseguem ser soltos quando provam para quatro comitês do Partido Comunista que mudaram comportamento, crença e língua; governo da China fala em campanha de difamação contra país.

Um vazamento em massa de documentos trouxe à luz, pela primeira vez, o sistema de lavagem cerebral da China contra centenas de milhares de muçulmanos em uma rede de campos de detenção de alta segurança.

O governo chinês, em resposta, diz reiteradamente que os campos na região de Xinjiang, no noroeste do país, oferecem educação voluntária e treinamentos para conter o extremismo. O embaixador chinês nos Estados Unidos classificou as revelações de "fake news".

Mas os documentos oficiais, analisados pelo programa BBC Panorama, mostram como os detidos são trancafiados, doutrinados e castigados.

O vazamento foi feito ao Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), que atuou com 17 veículos parceiros, incluindo a BBC e os jornais Le Monde, The New York Times, El País e The Guardian.

A investigação conjunta encontrou novas evidências que refutam as alegações da China sobre os campos de detenção, que foram construídos na região de Xinjiang, que faz fronteira com Índia, Mongólia, Quirguistão, Tadjiquistão, Cazaquistão e Rússia, entre outros países, nos últimos três anos.

Quase 1 milhão de pessoas, a maioria da comunidade muçulmana uigur, foram detidas sem direito a julgamento.

Entre os documentos vazados está um memorando de nove páginas enviado em 2017 por Zhu Hailun, secretário-adjunto do Partido Comunista em Xinjiang e mais alto oficial na região, para os responsáveis pelos campos de detenção.

As instruções da autoridade chinesa deixam claro que as instalações devem ser tratadas como prisões de segurança máxima, com disciplina rígida, punições e controle estrito contra fugas.

O documento inclui determinações como:

  • "Não permitir fugas nunca"
  • "Ampliar disciplinamento e punição contra violações de comportamento"
  • "Promover confissões"
  • "Fazer dos estudos de mandarim a prioridade máxima"
  • "Encorajar estudantes para transformação de fato"
  • "Garantir completude da vigilância por vídeo de dormitórios e salas de aula a fim de evitar pontos cegos"

Os documentos revelam como cada aspecto da vida do preso é monitorado e controlado: "Os estudantes precisam ter definidos a posição de sua casa, seu lugar na fila, sua cadeira na sala de aula e sua estação de trabalho, e é terminantemente proibida qualquer modificação".

"A implementação de regras de comportamento e disciplina demanda se levantar, responder a lista de chamada, se lavar, ir ao banheiro, organizar e realizar tarefas domésticas, comer, estudar, dormir, fechar a porta etc."

Outros documentos confirmam a escala extraordinária de detenções. Um deles mostra que mais de 15 mil pessoas da região sul de Xinjiang foram mandados para os campos de detenção no período de uma semana em 2017.

Sophie Richardson, diretora da Human Rights Watch para a China, afirmou que os documentos vazados deveriam servir de base para ações contra o país.

"São evidências que documentam inaceitáveis violações de direitos humanos", afirma ela. "Acho que é justo descrever cada um dos detidos como um sujeito submetido, no mínimo, a tortura psicológica, porque eles literalmente não sabem quanto tempo ficarão ali."

Um dos documentos detalha como os presos só conseguem ser soltos dos campos de detenção quando demonstram que mudaram seus comportamentos, crenças e língua.

"(É preciso) promover a confissão dos estudantes para que eles entendam profundamente a natureza criminosa, perigosa e ilegal de suas atividades pregressas", afirma o texto.

E completa: "Para aqueles que não compreendam, tenham atitudes negativas ou até resistam, é preciso adotar a educação transformadora para garantir que os resultados sejam alcançados".

Ben Emmerson QC, advogado referência na área de direitos humanos e conselheiro no Congresso Mundial Uigur, afirmou que os campos buscam mudar a identidade das pessoas.

"É muito difícil ver isso como qualquer outra coisa que não seja um sistema de lavagem cerebral em massa dirigido para uma comunidade étnica inteira. É uma transformação total que busca especificamente varrer da Terra os muçulmanos uigures de Xinjiang como um grupo cultural separado."

Os campos de detenção da China

Os muçulmanos detidos ganham pontos a favor pela "transformação ideológica, estudos, treinamento e compromisso com a disciplina", afirma um dos documentos que vieram à tona.

O sistema de punição e recompensa ajuda a determinar se os detidos podem ter contato com familiares e quando eles serão soltos. A soltura, aliás, depende que quatro comitês do Partido Comunista da China vejam evidências de que a pessoa realmente se transformou.

Os documentos vazados mostram também como o governo chinês usa vigilância em massa e um programa digital de policiamento preditivo que analisa dados pessoais.

Um dos materiais analisados pelo BBC Panorama mostra como esse sistema colocou um alerta sobre 1,8 milhão de pessoas simplesmente porque elas instalaram o aplicativo de compartilhamento Zapya em seus celulares.

As autoridades determinaram então a investigação de 40.577 dessas pessoas, uma por uma. "Se não for possível afastar as suspeitas sobre a pessoa", ela deve ser enviada para "treinamento intensivo", afirma o documento.

Um texto mostra também diretrizes explícitas para prender uigures com cidadania estrangeira e para monitorar pessoas dessa etnia que vivam no exterior, com participação da rede de embaixadas e consulados da China ao redor do mundo.

O embaixador chinês no Reino Unido, Liu Xiaoming, afirmou que essas medidas são adotadas para garantir a segurança da população e que não houve um único ataque terrorista em Xinjiang nos últimos três anos.

"A região agora desfruta de estabilidade social e união entre os grupos étnicos. As pessoas estão vivendo uma vida feliz com um senso muito mais forte de completude e segurança."

Para ele, "algumas pessoas no Ocidente, em total discordância com os fatos, tem tentado caluniar e difamar violentamente a China em relação ao que acontece em Xinjiang, numa tentativa de criar uma desculpa para interferir nos assuntos internos da China, interromper os esforços antiterroristas da China em Xinjiang e impedir o desenvolvimento constante da China".

Quem são os uigures?

Os uigures são muçulmanos que habitam predominantemente a região autônoma de Xinjiang, com cerca de 22 milhões de habitantes. Sua língua é parente do turco e os uigures se veem culturalmente e etnicamente mais ligados à Ásia Central do que ao resto da China.

Por séculos, as principais atividades econômicas da região vinham sendo a agricultura e o comércio, com cidades como Kahshgar prosperando como entrepostos da famosa Rota da Seda.

No começo do século 20, eles chegaram a declarar independência. Mas, em 1949, a região passou a ser controlada pela China comunista.

A agricultura é a principal atividade econômica da região, que é rica em minerais e petróleo. Ela recebeu uma quantidade considerável de investimentos, e testemunhou, além de um rápido crescimento econômico, uma onda de migração de colonos chineses da etnia han.

Há cerca de 10 milhões de uigures vivendo em Xinjiang, mas eles deixaram de ser maioria na região com essa migração em massa da etnia han.

Os uigures têm constantemente reclamado que a distribuição dos lucros desse crescimento é desigual. Em resposta a essas críticas, as autoridades chinesas alegam que houve melhorias nas condições de vida dos moradores da região.

Violência e vigilância

Nas últimas décadas, centenas de pessoas morreram em levantes violentos, ataques entre comunidades e repressão policial.

Em 2013, um carro ocupado por três uigures avançou contra pedestres na praça Tiananmen, em Pequim, matando duas pessoas, além dos três ocupantes do carro. O episódio foi classificado pelo governo como um grave ataque terrorista, o primeiro do gênero na história recente de Pequim.

Ao longo dos últimos quatro anos, Xinjiang tem sido alvo de algumas das medidas de segurança mais restritivas e abrangentes já implantadas por um governo contra seu próprio povo.

Isso inclui uso de tecnologia em larga escala: reconhecimento facial por câmeras, dispositivos capazes de monitorar e ler conteúdos de celulares e coleta em massa de dados biométricos.

Nos últimos anos, os uigures passaram a conviver com "verificações étnicas" em diversos pontos de checagem de pedestres e veículos, enquanto moradores chineses da etnia han são frequentemente liberados sem qualquer questionamento.

Eles também enfrentam severas restrições de viagem, tanto dentro quanto fora de Xinjiang - um decreto força os residentes a entregar os passaportes à polícia.

Novas e severas punições foram implantadas para restringir a identidade e práticas islâmicas: foram proibidos, entre outras coisas, o uso de longas barbas e lenços na cabeça, além de instrução religiosa a crianças e nomes que soem como islâmicos.

Essas políticas parecem marcar uma mudança fundamental no pensamento oficial: o separatismo da região não é apenas um problema isolado e individual, mas sim algo inerente à cultura uigur e ao islã em geral.

Essa mudança coincide com um aperto proposto pelo atual presidente do país, Xi Jinping, no qual a lealdade à família e à fé, pilares da cultura uigur, deve ser subordinada ao Partido Comunista.

Um paralelo melhor pode ser encontrado dentro do próprio passado totalitário da China. Como na Revolução Cultural, campanha do líder comunista Mao Tsé-Tung contra "partidários do capitalismo" que deixou milhões de mortos, uma sociedade está sendo informada de que precisa ser desmontada para ser salva.