Os americanos que se preparam para um 'apocalipse' causado pela polarização política
Milhões de pessoas nos Estados Unidos abastecem suas despensas, se armam e fazem treinamentos para estarem prontos para episódios de caos social e outros tipos de catástrofe - um movimento que cresceu após a chegada de Donald Trump à Presidência.
Não foi só na hora de soprar as velinhas dos seus 38 anos que a designer Kris Dantzler apagou as luzes durante a festa de aniversário, em janeiro deste ano. Ela, seu filho Nate, de 11 anos, e os convidados simularam um blecaute na casa onde a família vive, em Detroit, no Estado de Michigan, com direito a usar diferentes tipos de lanternas, acender a lareira para se aquecer da temperatura congelante do inverno, abrir comidas enlatadas e imaginar o que fariam em um cenário de falência dos serviços públicos, agitação popular, saques.
"Pode parecer estranho ou assustador, mas fazemos disso uma diversão, um jogo, ao mesmo tempo em que nos preparamos para a eventualidade de uma catástrofe", afirma a designer.
Kris se identifica como prepper, um grupo estimado por pesquisadores entre 3 e 5 milhões de americanos que mantém uma agenda semanal de afazeres em preparação para o pior, seja o apocalipse, uma invasão de zumbis, protestos em massa, um terremoto, uma epidemia mortífera. Para Kris, a polarização política parece o gatilho mais provável para uma crise de caos social.
Diante dessa possibilidade, ela se dedica há cinco anos a abastecer uma despensa de emergência, em que mantém suprimentos para satisfazer as necessidades calóricas da família por três meses, seis semanas de água potável, kits de primeiros socorros para diferentes tipos de situações, lenha para fogueira, painéis solares para produção de sua própria energia elétrica, facas de todo tipo.
Além disso, Kris fez aulas de tiro e de lutas marciais, além de aprender a caçar, limpar um animal abatido, entre outras habilidades.
A ansiedade contemporânea
É popular a imagem de um avô veterano de guerra, consumidor de teorias conspiratórias, que mantém latas de feijão e todo tipo de quinquilharia no porão de casa para prevenir desabastecimento ou privação em tempos difíceis. Ou do fazendeiro isolado e excêntrico, cético sobre o Estado e a sociedade, que transforma a casa em um bunker contra invasores.
O que se vê nos últimos cinco ou sete anos, no entanto, é o surgimento de uma onda de adultos jovens com alto grau de escolaridade, renda entre média e alta e de orientação política diversa que passou a gastar cada vez mais tempo e dinheiro para se preparar para algo muito ruim ? ainda que não haja indicativos concretos de que o pior está batendo à porta.
No fórum online Reddit, a página dedicada à comunidade prepper já conta com mais de 113 mil membros. No espaço, eles discutem desde a quantidade de desinfetantes necessários para um bom estoque até a ventilação ideal para seu bunker privado.
O próprio presidente do Reddit, Steve Huffman, se identifica como um prepper. E ele não é um caso raro no Vale do Silício. Executivos do Yahoo, Facebook e Google estão entre os que se dedicam semanalmente a se preparar para uma catástrofe. Nos fóruns de discussão de funcionários das gigantes de tecnologia, há tópicos sobre o movimento.
"Certamente os preppers do século 21 bebem dessa fonte histórica dos avôs, mas temos hoje um grupo muito grande de pessoas, extremamente diverso. É muito difícil determinar um perfil exato de que seja um prepper atualmente. Pode ser qualquer pessoa que sofra de uma ansiedade crescente detonada por incertezas em relação ao mundo atual e que decida fazer algo concreto para defender sua própria vida", explica o antropólogo e especialista nesse movimento Chad Huddleston, da Universidade Southern Illinois, nos Estados Unidos.
Uma pesquisa feita pela National Geographic em 2012 com cerca de mil americanos reforça o argumento de Huddleston: 40% dos participantes afirmaram ser sábio guardar dinheiro para uma catástrofe do que investir em uma previdência privada para a aposentadoria.
Lésbica, descendente de africanos e indígenas, eleitora ocasional tanto de democratas quanto de republicanos e opositora ferrenha do presidente Donald Trump, Kris reconhece que destoa do histórico do movimento.
"Sei que estou longe do estereótipo do homem branco, velho e conservador que decide estocar coisas em casa. Mas percebo que na comunidade há cada vez mais pessoas parecidas comigo", afirma a designer, que também conhece grupos de extrema-direita ligados à comunidade prepper.
Polarização assusta
No caso de Kris, a percepção de que a eleição de Trump provocou uma cisão racial no país, que poderia levar a uma escalada de violência entre civis ou da polícia contra negros, a levaram a intensificar seu estilo de vida prepper.
"Sempre fui contra armas. Mas, em 2016, quando me convenci que Trump ia ganhar a eleição, comprei minha primeira pistola para me defender", diz ela.
Hoje, tem três armas de fogo na casa: além de uma pistola, possui dois rifles para caça. "Tenho muitos amigos negros alarmados com Trump, que vivem me dizendo: 'Ele vai nos matar'. E eu digo: 'Então, se preparem'. Mas eles não fazem nada prático, apenas lamentam."
Kris não está sozinha no objeto de sua angústia. "A preocupação com distúrbios civis em torno da eleição é certamente algo que eu reconheço como sendo uma das questões centrais para os preppers agora. A polarização política é certamente um cenário consistente com a narrativa dos preppers de que a sociedade está à beira de um caos a qualquer momento: distúrbios civis, falta de energia, enfim. A polarização política se tornou o meio dominante pelo qual esse tipo de visão de colapso social pode ser imaginada", afirma o professor de criminologia Michael Mills, da Universidade de Kent, no Reino Unido, que desenvolveu diversos estudos sobre os preppers.
Para Mills, o perfil majoritário entre o grupo ainda é masculino, branco e conservador, mas ele reconhece que há um subgrupo relevante de jovens, tecnologicamente conectados e financeiramente abastados.
Em 2014, Mills percorreu os Estados Unidos em conversas com preppers. Naquele momento, segundo o pesquisador, a ansiedade se concentrava no ex-presidente Barack Obama e seu comportamento na Casa Branca - apelidados pelos preppers republicanos de "Obamageddon", o mix do nome do então presidente e o termo em inglês para apocalipse (armageddon), o fim do mundo.
De lá pra cá, a polarização política se acirrou no país: 85% dos americanos acreditam que o debate político se tornou mais agressivo e menos respeitoso nos últimos anos, de acordo com uma pesquisa feita em julho pelo Pew Research Institute.
E, embora concordem na negatividade da política, os cidadãos discordam de suas causas: 84% dos eleitores democratas ou simpatizantes dizem que Trump piorou o ambiente político, enquanto apenas 23% dos republicanos e simpatizantes concordam com isso.
O jornalista e prepper Jon Stokes, de 44 anos, expressa claramente a tensão social em torno da política. Ele acredita que as eleições de 2020, quando Trump tentará se reeleger, podem detonar um processo perigoso de agitação social.
"Não interessa qual lado vença, minha impressão é que o outro lado não estará disposto a aceitar o resultado e a situação pode escalar", diz Stokes, ex-editor da revista de tecnologia Wired.
Ele cita a situação do Chile, em que manifestações populares massivas levaram recentemente a quebra-quebra, violência dos agentes públicos de segurança e toque de recolher na capital Santiago e em outras cidades, e os protestos em Hong Kong, como um cenário que acredita ser possível para os Estados Unidos.
"Muitos dos meus amigos do Vale do Silício compartilham esse mesmo tipo de ansiedade: há uma grande sensação de incerteza e insegurança em relação às mudanças políticas."
De acordo com a revista New Yorker, o mal-estar provocado pela eleição de Trump em 2016 entre o eleitorado democrata prepper e rico levou 13,5 mil americanos a pedirem visto de residência na Nova Zelândia na semana seguinte ao anúncio do resultado eleitoral - 17 vezes o número médio de pedidos para o período.
Por ser uma ilha com muitos recursos naturais e bom índice de desenvolvimento econômico e social, o país é visto como um refúgio ideal para preppers endinheirados em situações em que seja necessário se retirar dos Estados Unidos.
Um mercado multibilionário
Quem não pretender deixar o país, tem cada vez mais opções para se refugiar na própria casa. "Temos muito orgulho em projetar o abrigo dos seus sonhos", declara em seu site a empresa americana Disaster Bunkers, que produz espaços ultra-seguros sob medida para os clientes.
Além das funcionalidades, a empresa garante design moderno e conforto nos bunkers. Um dos modelos mais baratos disponíveis sai por quase US$ 10 mil (R$ 42,5 mil reais) e oferece proteção contra bombas, armas químicas e biológicas, além de servir de abrigo antinuclear. O mercado para esse tipo de consumidor é hoje multibilionário.
"Com a mudança do perfil dos preppers, muitos negócios faliram e outros tiveram que se adaptar e oferecer coisas mais modernas e urbanas pra sobreviver. Ao mesmo tempo, é um negócio que não pode ser ignorado. Conheço muita gente que acabou atolado em empréstimos e dívidas de cartão de crédito de tanto comprar produtos pra se preparar. A demanda é grande e consistente", afirma Stokes, que hoje trabalha como editor do site ThePrepared.com, especializado em preppers.
Ele mantém um estoque de alimentos suficiente para cinco meses em sua casa, no Texas e não tem um bunker apenas porque o solo da região onde mora é muito rochoso para perfurações desse tipo.
Kris admite que seus gastos nos últimos cinco anos com a cultura prepper atingiram uma dezena de milhares de dólares. Gasto do qual ela definitivamente não se arrepende.
"Prefiro estar preparada e nada acontecer do que ser pega desprevinida. Estou pronta pra enfrentar qualquer ameaça à altura. Não abro mão do meu direito de morrer lutando."
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