Sem trabalho, com fome e medo de ir ao médico: o drama dos brasileiros ilegais na quarentena em Londres
Paulista G. pediu ajuda do governo britânico para voltar ao Brasil depois de ficar sem trabalho e dinheiro para comer; 'enquanto muitas pessoas estão dentro de casa agora, continuamos a trabalhar, nos expondo. É como se não existíssemos', diz ele à BBC News Brasil.
Às 21h56 de domingo (5 de abril), nove minutos antes do horário programado, decolava o último voo direto da companhia aérea Latam de Londres com destino a São Paulo. O próximo só partirá no fim deste mês, quando se espera que as regras de isolamento social decretadas pelo governo britânico para combater a pandemia de coronavírus comecem a ser afrouxadas. O paulista G., de 23 anos, era um dos passageiros.
Mas seu retorno ao Brasil - mais especificamente ao interior de São Paulo, onde mora sua família - não foi uma decisão fácil. Para G., era o fim abrupto de um sonho, que teve início em agosto do ano passado, quando entrou no Reino Unido com um visto de turista - válido por seis meses. Seu objetivo, na verdade, não era visitar o país, mas sim trabalhar.
Assim como muitos brasileiros que vivem em Londres, G. estava ilegal. Não se sabe ao certo quantos brasileiros vivem ilegalmente no Reino Unido, mas estimativas apontam que até metade possa estar em situação irregular.
"Reconheço que fiz algo errado (imigrar ilegalmente). Mas no Brasil eu não vivia, eu sobrevivia. Não queria me envolver com coisa errada por lá. Vim pra cá buscando uma oportunidade para mim. Queria melhorar minha vida e da minha família no Brasil", disse ele por telefone à BBC News Brasil no último sábado (4 de abril), um dia antes de embarcar.
Mas a realidade de G. mudou há cerca de um mês quando a pandemia de coronavírus se alastrou pelo mundo e chegou ao Reino Unido. Os "bicos" que eram frequentes começaram a rarear.
"Fazia muitas coisas. A maioria dos ilegais trabalha com o que muitos desprezam. Fazemos o serviço que a maioria não quer fazer. Pegamos qualquer tipo de trabalho. Entregamos comida, trabalhamos na construção, limpamos. O que sobra. Não dá para se dar ao luxo de escolher emprego nem patrão", explica.
"Mas chegou um momento que não tinha mais o que comer. Me alimentava pouco em um dia para ter alimento no seguinte. Mesmo com toda essa dificuldade, não me veio à cabeça fazer coisa errada, vender drogas ou me prostituir, como alguns fazem", ressalva.
Sem dinheiro para se alimentar e pagar o aluguel, G. diz que se viu sem alternativa. Candidatou-se a um programa do governo britânico que financia o retorno voluntário de imigrantes que violem as regras de seus vistos a seus países de origem. Como contrapartida, não pode voltar ao Reino Unido por um período de dois anos e meio.
"Por causa desse vírus, tudo ficou muito inseguro e perigoso para nós ilegais. Porque não temos direito de absolutamente nada. Não temos como fazer uma quarentena se a gente não recebe nenhum auxílio do governo. Temos que continuar trabalhando e pondo nossas vidas em risco. Ninguém pegou na minha mão e me forçou a ir embora, mas as circunstâncias me pressionaram a tomar tal decisão", diz.
"E piorou quando o governo decretou o isolamento social. Pois para que todo mundo fique em casa e obedeça às regras, há mais policiamento nas ruas. Você fica com medo de ser parado pela polícia e eventualmente descobrirem que você é ilegal".
"Somos fantasmas aqui. Vivemos nas sombras e trabalhamos escondido. Enquanto muitas pessoas estão dentro de casa agora, continuamos a trabalhar, nos expondo. É como se não existíssemos", diz.
'De quatro a seis vezes'
O caso de G. não é isolado. Segundo a ONG Casa do Brasil, que intermedia o contato de imigrantes como G. junto ao governo britânico, aumentou "de quatro a seis vezes" a procura pelo programa, devido à pandemia de coronavírus. A Casa do Brasil tem apoio do Consulado brasileiro em Londres.
"Em média, recebemos de cinco a seis telefonemas por dia. Nas últimas semanas, esse número passou para 20 a 30. A imensa maioria das pessoas que nos procura está desesperada. Algumas delas não têm o que comer ou onde ficar. Como são ilegais, não têm contrato de trabalho e, portanto, não podem acessar os benefícios concedidos pelo governo por causa da crise do coronavírus", diz à BBC News Brasil Vitoria Nabas, advogada de imigração e diretora da Casa do Brasil.
Recentemente, o Reino Unido anunciou um amplo pacote de medidas para apoiar trabalhadores de carteira assinada e autônomos em meio ao caos socioeconômico causado pela doença. Por essa iniciativa, o governo paga até 80% do salário do funcionário, no limite de 2,5 mil libras por mês.
Mas nem todos têm a mesma oportunidade que G de voltar para casa. Por causa do isolamento social, o atendimento da Casa Brasil deixou de ser presencial, o que inviabiliza o retorno daqueles que ainda não tiveram o visto expirado ou perderam o passaporte.
"O programa se volta a todos os imigrantes que violem as regras de seus vistos. Uma pessoa que tenha entrado no Reino Unido com um visto de turismo e que ainda esteja válido, mas trabalhe aqui, ou seja, burlando as leis de imigração, também pode se candidatar", exemplifica Nabas.
"Ocorre que, atualmente, como não estamos fazendo atendimento presencial, devido às regras de isolamento social determinadas pelo governo, fica muito mais difícil comprovar junto ao Home Office (Ministério do Interior britânico, órgão responsável pela imigração) que esse imigrante esteja em situação ilegal. O mesmo vale para quem perdeu o passaporte", acrescenta ela.
Nabas faz uma ressalva importante: o programa é voluntário e mesmo que o candidato mude de ideia, não será forçado pelas autoridades a embarcar - e fica a cargo do governo britânico, a par da situação e com os dados do candidato, de considerar se é o caso de buscar sua deportação.
Para G. e outros imigrantes ilegais, a palavra "Home Office" continua a despertar um misto de ansiedade e medo.
É uma das atribuições do órgão fiscalizar a situação legal dos estrangeiros no país e, eventualmente, deportá-los caso fique comprovado que eles violaram as regras de imigração.
A deportação, contudo, envolve prisão ? e constrangimento público.
"Se o imigrante é deportado, ele normalmente é preso e levado a um centro de imigração. Dali ele é colocado de volta em um avião e suas algemas só são tiradas quando está dentro do avião", explica Nabas.
Medo de não ser tratado
Além de ter perdido o emprego, pesou na decisão de G. a incerteza sobre se teria acesso gratuito à saúde pública.
Qualquer visitante estrangeiro, incluindo aqueles que vivem no país sem permissão, tem que pagar por tratamentos médicos a menos que se enquadre em uma lista de exceções, como casos de emergências, atualizada com regularidade.
Os hospitais e clínicas médicas ligadas ao serviço de saúde pública (NHS, o SUS britânico) também podem solicitar ao Ministério do Interior informações sobre a nacionalidade e o status de imigração de um paciente para decidir se ele deve ser cobrado pelo tratamento - e o NHS também pode passar suas informações pessoais, como nome, número do telefone e endereço, ao Ministério do Interior.
Em nota enviada à BBC News Brasil, o Ministério do Interior afirmou que a realização tanto de testes, mesmo com resultados negativos, quanto tratamentos para o novo coronavírus, não serão cobrados de não-residentes.
"Nenhuma verificação da situação imigratória será feita para aqueles que se submetam a testes ou a tratamento para o covid-19. Também não haverá nenhuma cobrança em relação aos testes, mesmo que o resultado seja negativo", diz o comunicado do órgão enviado à BBC News Brasil.
No entanto, essa verificação pode acontecer caso a condição não esteja relacionada ao coronavírus, acrescentou a pasta.
Além disso, a BBC News Brasil apurou que as informações pessoais de não-residentes, incluindo de imigrantes ilegais, podem ser passados para o Ministério do Interior caso os pacientes tenham dívidas com o NHS - por exemplo, se em algum momento receberam um medicamento pelo qual deveriam pagar e não o fizeram.
Mas G. queixa-se que "essa informação (sobre a possibilidade de ser tratado gratuitamente para covid-19 em uma eventual necessidade) não chegou até mim. Acompanho as notícias. Mesmo assim, não fiquei sabendo. Não vi nenhum lugar dando essa informação para as pessoas que necessitam dessa informação".
Por causa disso, em uma carta ao governo britânico, uma coalizão de 30 ONGs pediu a suspensão de qualquer cobrança e compartilhamento de dados entre o NHS e o Ministério do Interior para que os imigrantes ilegais possam ter acesso à saúde pública gratuita sem medo.
Segundo essas entidades, caso as regras atuais permaneçam como estão, não só a saúde desses imigrantes ilegais, mas tambéma do público em geral, ficará ameaçada.
Retorno 'amargo' ao Brasil
Para G., o retorno ao Brasil tem um gosto amargo.
"Estou indo embora sem realizar meus planos. Sem poder ter ajudado a minha família. A gente conhece a realidade do Brasil. Sou de uma cidade no interior de São Paulo, onde é muito difícil para arranjar trabalho e mesmo trabalhando você recebe um salário que não é digno. O pouco que você recebe, mal dá para se alimentar, comprar uma casa e se vestir bem. No Brasil, não temos mínimas condições de vida", diz.
"Se não fosse o coronavírus, teria ficado aqui. Não estou ilegal porque eu quero. Adoraria estar pagando os meus impostos como todo cidadão. E tudo por causa de um maldito papel. Até quando um documento vai determinar quem é humano ou não? É um papel que diz o que nós somos? Achei que fosse o nosso caráter, a nossa dignidade, as nossas palavras, mas isso não vale de nada se você é um fantasma", desabafa.
"Saí do Brasil fugindo da minha realidade. Sempre estive fugindo de alguma coisa. No Brasil, é da criminalidade, do governo que rouba o nosso povo. Aqui, continuo fugindo - da polícia de imigração. O sonho de muitos brasileiros ilegais é conseguir esse papel para mostrar que somos gente", acrescenta.
G. conta que chegava a trabalhar de "15 a 18 horas por dia".
"Como ganhamos por hora, quanto mais trabalhar melhor. Mas imagine sair para trabalhar e ter que esconder o material de trabalho, mudar de rota quando tem batida no metrô", diz.
"O pior dia da minha vida aqui foi quando fui aprovado em uma entrevista de emprego e tive que mentir quando me pediram meu documento. Falei que ia buscá-lo no carro e nunca mais voltei. Tive que virar as costas para uma oportunidade honesta. Era para ser chapeiro em uma cozinha. Um trabalho tão pequeno para muitos, mas para mim gratificante. Poderia ter uma renda fixa", relembra.
Quase ao fim da conversa de 1h com a BBC News Brasil, G. faz seu último desabafo.
"Imigrante ilegal não pode reclamar. Tem muitas pessoas que tiram proveito da nossa situação. Tem muitos brasileiros que tiram proveito de brasileiros, muitos britânicos que tiram proveito de brasileiros, que nos ignoram, que sentem nojo e repúdio da gente, mas que se beneficiam do nosso trabalho indiretamente", diz.
"Quer saber como? Quem você acha que vai entregar a comida na sua casa com tudo fechado?", indaga.
"Agora, se a gente vai comer ou não, não importa. Somos esquecidos. Acho que muitos brasileiros ilegais vão morrer. Ou de fome, por não ter o que comer, ou do vírus, por não ter a quem pedir ajuda. Isso se não formos presos antes", conclui.
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