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Qual pode ser o impacto da divulgação do vídeo com falas polêmicas de Bolsonaro e seus ministros?

Bolsonaro no dia 22 de abril, quando teve reunião cujo vídeo pode vir a público - Marcos Corrêa/Presidência da República
Bolsonaro no dia 22 de abril, quando teve reunião cujo vídeo pode vir a público Imagem: Marcos Corrêa/Presidência da República

Mariana Schreiber - @marischreiber

Da BBC News Brasil em Brasília

21/05/2020 06h32

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Celso de Mello planeja decidir até amanhã se o vídeo de uma reunião do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com seus ministros no dia 22 de abril deve ser tornado público, seja integralmente ou em parte.

Há grande expectativa sobre o conteúdo da reunião porque, segundo o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, o presidente teria manifestado abertamente naquele encontro a intenção de interferir na Polícia Federal, o que Bolsonaro nega.

Além disso, o vídeo, caso divulgado na íntegra, teria potencial de causar desgaste político ao governo também devido a declarações polêmicas de alguns ministros, incluindo ataques agressivos ao STF, a governadores de estados e a outros países.

A gravação foi incluída como possível prova no inquérito que investiga se houve ingerência por Bolsonaro na PF, aberto após Moro se demitir do ministério em 24 de abril.

Ele saiu por não concordar com a decisão do presidente de demitir o então diretor-geral do órgão, Maurício Valeixo, e nomear em seu lugar o delegado Alexandre Ramagem, que acabou barrado pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes devido a sua proximidade com a família presidencial.

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil se dividem sobre se já há elementos suficientes para embasar uma denúncia criminal contra o presidente no STF independentemente do teor do vídeo. A decisão caberá ao procurador-geral da República, Augusto Aras, único que pode processar Bolsonaro criminalmente.

Por enquanto, já se sabe que o presidente falou sobre a Polícia Federal na reunião ao menos uma vez, referindo-se ao órgão por suas iniciais (PF). Isso foi revelado em manifestação da AGU (Advocacia Geral da União) solicitando a Celso de Mello que divulgue apenas parcialmente o teor do vídeo. Nesse pedido, o órgão transcreveu duas breves declarações de Bolsonaro na reunião de cerca de duas horas.

Na primeira, Bolsonaro reclama da falta de informações recebidas de três órgãos ­— Polícia Federal, Forças Armadas e Agência Brasileira de Inteligência (Abin) — e diz que por isso iria "interferir", sem especificar em qual. No segundo trecho, o presidente reclama de não estar conseguindo trocar "segurança nossa no Rio de Janeiro".

No primeiro trecho, o presidente afirma: "Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não têm informações: a Abin tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente... temos problemas... aparelhamento, etc. A gente não pode viver sem informação".

E complementa: "E não estamos tendo. E me desculpe o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça, não é extrapolação da minha parte. É uma verdade".

Cinquenta minutos depois, segundo a AGU, Bolsonaro fez uma segunda declaração.

"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f... minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", afirmou o presidente.

A AGU ressalta que o órgão responsável pela segurança do presidente e sua família é a Abin, vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional. Já Moro diz que o presidente, ao falar em "segurança" estava na verdade se referindo à superintendência da PF no Rio de Janeiro — estado que é reduto eleitoral de Bolsonaro e onde há investigações sensíveis ao interesse de sua família sendo tocadas pela Polícia Federal ou órgãos estaduais.

O comando da PF do Rio já foi trocado duas vezes no governo Bolsonaro por solicitação do presidente. Primeiro, em agosto de 2019, Ricardo Saadi foi substituído por Carlos Henrique Oliveira Sousa, mas nesse caso Moro conseguiu impor um nome de sua confiança. No início desse mês, Oliveira deu lugar a Tácio Muzzi.

O presidente, por sua vez, diz que se preocupa com sua segurança e de sua família desde que levou uma facada na campanha presidencial, em setembro de 2018. Bolsonaro também disse que reclamava na reunião da falta de relatórios de inteligência, não de informações sobre investigações.

Vídeo pode ter impacto político e jurídico

Para Davi Tangerino, professor da direito penal da FGV e da UERJ, o que já foi revelado a partir dos depoimentos de testemunhas no inquérito, da divulgação feita pela AGU e a forma como Bolsonaro realizou a troca de comando da Polícia Federal em Brasília e da superintendência do órgão no Rio de Janeiro já seriam elementos suficientes para que ele seja denunciado pelo crime de prevaricação, que consiste em "praticar indevidamente ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal", segundo o Código Penal.

Na sua avaliação, o vídeo, se de fato mostrar uma séria de falas agressivas do presidente e de ministros do governo, pode contribuir para enfraquecer Bolsonaro politicamente e reforçar os elementos que já existem para denúncia criminal.

A gravação da reunião foi exibida na semana passada para investigadores da PF e da PGR e para a defesa de Moro. Depois disso, foi vazado para a imprensa brasileira que o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, chamou o coronavírus de "comunavírus" e disse que a doença covid-19 é uma "coisa da China", com propósito de dominar outras nações.

Já o ministro da Educação, Abraham Weintraub, teria xingado ministros do STF, enquanto a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, teria defendido a prisão de governadores. O próprio Bolsonaro teria xingado o governador de São Paulo, João Doria, e integrantes do governo do Rio de Janeiro.

"A integralidade do vídeo talvez mostre um grande grupo de autoridades muito descomprometido com as instituições, usando um linguajar de conversa de botequim em uma reunião ministerial. Isso daria um contexto ruim para o presidente, reforçando a denúncia por prevaricação", acredita Tangerino.

Já Alamiro Velludo, professor de direito penal da USP, ainda não vê indícios criminais que sustentem uma denúncia contra o presidente. Na sua avaliação, apenas se vierem à tona provas de que Bolsonaro tenha atuado concretamente para interferir em investigações específicas, por exemplo, com uma fala explícita do presidente na reunião ministerial, ele poderia ser denunciado.

"Acho muito difícil tomar alguma posição do ponto de vista jurídico sem o aspecto daquilo que ocorreu na fatídica reunião ministerial", afirma.

Velludo ressalta que o Presidente da República tem a prerrogativa (o poder) de definir o comando da Polícia Federal e que essa escolha tem dimensão "técnica e política".

"Quando se outorga ao presidente essa escolha, inegavelmente representa uma escolha política. Então, é normal que o presidente escolha aquelas pessoas que ele já conheça o trabalho ou tenha tido algum nível de relação. Isso é comum, assim como na escolha dos ministros e de qualquer autoridade administrativa que se faça dentro do modelo de discricionariedade do governante", disse.

"Para que essa escolha ultrapasse a dimensão da arena política e vire um problema jurídico de irregularidade, tem que ser demonstrado muito cabalmente, a meu ver, que aquele delegado X foi nomeado para interferir numa investigação Y, ajudando C. Se não houver isso, é temerário tornar uma discordância política que existiu entre o presidente e o ex-ministro Moro num problema jurídico", reforça.

'Conjunto da obra'

Tangerino, por sua vez, considera que a identificação de uma investigação específica que teria sofrido interferência indevida pelo presidente seria necessária para uma denúncia pelo crime de obstrução de Justiça, mas não para uma denúncia por prevaricação (crime que consiste em "praticar indevidamente ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal").

Ele ressalta que a "temporalidade" dos acontecimentos reforça a versão de Moro, já que o comando da PF foi trocado dois dias após o presidente manifestar na reunião ministerial sua intenção de interferir no órgão e na "segurança" do Rio de Janeiro.

O professor da FGV destaca, ainda, o depoimento do delegado Carlos Henrique Oliveira de Souza, recém-removido da superintendência da PF no Rio de Janeiro para ser diretor-executivo da Polícia Federal, em Brasília, segundo cargo mais importante na hierarquia do órgão.

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, Oliveira de Souza corrigiu, na terça-feira (19), o depoimento que havia dado na semana passada para informar que foi convidado para deixar a superintendência do Rio já no dia 27 de abril, por Alexandre Ramagem, quando este ainda era cotado para ser o diretor-geral.

Assim, sua nova declaração entrou em contradição com o depoimento de Ramagem no inquérito, já que ele havia dito que não houve interferência na remoção de Souza pelo novo diretor-geral da PF, Rolando Alexandre de Souza. Alexandre de Souza foi escolhido para comandar a PF após Ramagem ser barrado pelo STF.

"O conjunto da obra mostra o interesse particular indevido do presidente nesse assunto (de nomeações da PF)", afirma Tangerino.

Vídeo deve ser divulgado?

De acordo com o jornal Estado de S. Paulo, o ministro Celso de Mello ficou "incrédulo" ao assistir o vídeo da reunião ministerial na segunda-feira (18). Ainda segundo o veículo, "a tendência do ministro é atender ao pedido do ex-ministro Sergio Moro e levantar o sigilo da íntegra do vídeo do presidente Jair Bolsonaro com seus auxiliares, em nome do interesse público".

A reportagem lembra que Celso de Mello já destacou em uma decisão do início deste mês "não haver, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério".

Os professores ouvidos pela BBC News Brasil, porém, consideram que o mais adequado seria o ministro liberar o conteúdo apenas dos trechos da reunião relacionados ao objeto do inquérito, ou seja, a possível interferência na PF pelo presidente. É essa a posição da PGR, enquanto a AGU sugeriu que Celso de Mello retire o sigilo de todas as falas do presidente, preservando declarações de ministros.

Para Tangerino, a liberação integral do vídeo poderia criar um precedente para futuras interferências indevidas do STF no Poder Executivo.

"Essa decisão abriria uma brecha institucional que amanhã pode ser alargada ou mal interpretada. Eu sou muito cuidadoso na abertura de exceções, porque, uma vez aberta a primeira, você não sabe como será a segunda", afirma.

"Amanhã mudam os ministros do Supremo, muda o Presidente da República, e não sabemos como esse precedente pode ser usado em outras decisões", argumenta ainda.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi publicado na primeira versão do texto, o professor da direito penal da FGV e da UERJ se chama Davi Tangerino, e não Tamarindo. O erro foi corrigido.