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Tensão nos três poderes? Como funciona 'sistema de freios' entre Congresso, STF e Bolsonaro

Na semana passada, o presidente da corte, Dias Toffoli, pediu uma trégua na disputa entre Poderes. "Não é mais possível atitudes dúbias", disse ele em live - Fellipe Sampaio/SCO/STF
Na semana passada, o presidente da corte, Dias Toffoli, pediu uma trégua na disputa entre Poderes. "Não é mais possível atitudes dúbias", disse ele em live Imagem: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Juliana Gragnani - @julianagragnani

Da BBC News Brasil em Londres

17/06/2020 07h52

O recente ataque com fogos de artifício por um grupo de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro contra o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) trouxe à tona, de novo, a conturbada relação entre os poderes Executivo e Judiciário, que ficou ainda mais tensa na última semana.

O presidente, que já participou de manifestações que pediam intervenção militar e fechamento do Congresso e do STF, não condenou o ataque. Bolsonaro já tinha acusado o ministro (do STF) Celso de Mello de abuso de autoridade quando este tirou o sigilo de parte de uma reunião ministerial para que fosse apurada a denúncia de suposta interferência do presidente na Polícia Federal. Um de seus ministros, Abraham Weintraub, da Educação, aparece em vídeo desta reunião se referindo a ministros do Supremo como "vagabundos" ("eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF", afirma).

Quando o ministro do STF Alexandre de Moraes barrou a nomeação de Alexandre Ramagem, delegado e amigo de Bolsonaro, para a Polícia Federal, Bolsonaro disse que "não engoliu" a decisão, e disse que Moraes chegou à corte por "amizade" com o ex-presidente Michel Temer.

Outro ponto atual de tensão é o inquérito das fake news, instaurado pelo STF, que investiga ofensas e ameaças contra integrantes da corte e a suposta participação de parlamentares bolsonaristas na divulgação de notícias falsas e organização de atos que pedem o fechamento do Supremo e do Congresso.

Por fim, na sexta (12), outro ministro do STF, Luiz Fux, concedeu uma liminar delimitando a interpretação da Constituição e da lei que disciplina as Forças Armadas. Na decisão judicial, ele esclareceu que ela não permite a intervenção do Exército sobre o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo. Não é um poder moderador, afirmou na decisão.

Bolsonaro respondeu ao ministro Fux em uma nota, com o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, afirmando que os militares "não aceitam tentativas de tomada de poder".

Essa polêmica tinha surgido da declaração feita por Bolsonaro — na mesma reunião ministerial de 22 de abril divulgada em vídeo — de que existe um dispositivo que permite aos poderes pedir intervenção militar para restabelecer a ordem, o artigo 142 da Constituição.

Bolsonaro respondeu ministro Fux em uma nota, com o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, afirmando que os militares 'não aceitam tentativas de tomada de poder' - EPA/Joedson Alves - EPA/Joedson Alves
Bolsonaro respondeu ministro Fux em uma nota, com o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, afirmando que os militares 'não aceitam tentativas de tomada de poder'
Imagem: EPA/Joedson Alves

Na semana passada, o presidente da corte, Dias Toffoli, pediu uma trégua na disputa entre os poderes. "Não é mais possível atitudes dúbias", disse ele, em afirmação direcionada "diretamente e em especial" ao chefe do Executivo, em uma live da Associação dos Magistrados Brasileiros.

Em entrevista ao site Bloomberg no fim de semana, o ministro do STF Gilmar Mendes disse entender a "irritação" de Bolsonaro com a corte suprema e o Congresso, que têm suspendido várias de suas medidas, mas que isso ocorre porque o presidente tem um poder limitado. "O grupo que o assessora tem uma ideia de um presidencialismo imperial. Tanto que ele usa muito a expressão 'estão esvaziando minha caneta, o STF tirou minha caneta', como se bastasse um decreto", afirmou ele. Para o ministro, o sistema de freios e contrapesos estabelecidos pela Constituição está mais ativo agora no governo Bolsonaro porque há "provocações', incluindo ameaças para desativá-los.

Mas como funciona este sistema de freios e contrapesos? A seguir, a BBC News Brasil explica quais são os limites da atuação de cada poder e como é mantido o equilíbrio de forças entre eles — visto como base da democracia.

Três poderes

A teoria da separação de poderes vem do século 18, do filósofo francês Montesquieu, com a ideia de não concentrá-los em uma só pessoa ou órgão, dividindo o poder para, assim, afastar governos absolutistas e normas tirânicas.

Essa teoria está na base da democracia, cada país democrático moldou seu sistema de governo em torno dessa separação de poderes.

No Brasil, existem os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E cada um desses poderes são "independentes e harmônicos", segundo o artigo 2º da Constituição Federal.

Segundo Wallace Corbo, professor da FGV Direito Rio, isso significa que "cada poder exerce suas funções sem precisar de outros poderes, mas trabalhando juntos". "Existe a ideia de consenso e colaboração. Os poderes precisam encontrar um consenso para atuar."

Bolsonaro já acusou o ministro Celso de Mello de abuso de autoridade, quando ele decidiu tornar pública grande parte de uma reunião ministerial - EPA/Joedson Alves - EPA/Joedson Alves
Bolsonaro já acusou o ministro Celso de Mello de abuso de autoridade, quando ele decidiu tornar pública grande parte de uma reunião ministerial
Imagem: EPA/Joedson Alves

O Poder Executivo é representado pelo chefe do Executivo (no Brasil, o presidente da República), com a função primordial de executar, ou seja, aplicar a lei para administrar o governo, entre outros.

O Poder Legislativo tem a tarefa de legislar, ou seja, elaborar leis, e fiscalizar as ações do poder Executivo. É exercido pelo Congresso Nacional e, nos Estados, pelas Assembleias Legislativas estaduais.

O Poder Judiciário julga a aplicação das leis e zela para que estas sejam observadas e que respeitem a Constituição. É composto por vários tribunais, com o Supremo Tribunal Federal como instância máxima.

Cada um desses poderes têm funções "típicas" e "atípicas". "As funções que realizam de forma primeira são as típicas, e as funções atípicas são as que cada poder realiza de forma excepcional, sempre em casos previstos na Constituição", diz Manoela Alves, conselheira da OAB Pernambuco e professora de direito constitucional da Uninabuco, em Recife.

"A teoria dos três poderes determina que cada poder tenha sua função, mas não é única. Em situações excepcionais, esses poderes vão poder realizar atividades que são tipicamente de outros poderes", afirma. "É para manter o equilíbrio na relação, uma forma de contrabalancear os pesos."

Freios e contrapesos

Contrabalancear os pesos é uma forma de impedir que um dos poderes se exceda. Cada país tem sistemas de freios e contrapesos, ou check and balances, em inglês, mecanismos para que um poder controle o outro.

No Brasil, esses mecanismos estão estabelecidos na Constituição de 1988. Antes disso, no período da ditadura, o poder Executivo se colocava acima dos outros - o que a carta magna criada pela Assembleia Nacional Constituinte após esse período quis impedir estabelecendo certos freios.

Em reunião ministerial de 22 abril, que teve sua gravação publicada por decisão judicial, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendeu a prisão de ministros do STF - REUTERS/Adriano Machado - REUTERS/Adriano Machado
Em reunião ministerial de 22 abril, que teve sua gravação publicada por decisão judicial, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendeu a prisão de ministros do STF
Imagem: REUTERS/Adriano Machado

"No sistema, vamos ter várias situações nas quais um poder fiscaliza o outro, para não termos um poder mandando mais que o outro", diz Alves.

"O Estado só está de fato atuando no interesse comum quando consegue equilibrar suas três funções principais, que são executar, legislar e julgar, de uma forma que respeite as regras pré-definidas na Constituição."

Segundo Alves, a fiscalização entre os três poderes da forma prevista na Constituição fortalece o Estado democrático de Direito.

"A ideia de separação dos poderes é uma ideia de contenção do arbítrio. Quando separo os poderes, crio vários agentes de veto que conseguem conter uns aos outros", explica Corbo. "O nosso desenho de separação de poderes, que é muito inspirado no desenho americano, se baseia exatamente na possibilidade de vários órgãos controlarem uns aos outros."

Por exemplo, diz ele: "o Legislativo controla o Executivo, o Judiciário controla o Executivo e o Legislativo, o Legislativo e o Executivo nomeiam o Judiciário. O Legislativo pode editar uma emenda para superar uma interpretação do Poder Judiciário".

"Ao criar isso, impeço que o Davi Alcolumbre, o Rodrigo Maia, o Jair Bolsonaro, qualquer um desses agentes possa por si só governar. E quando eu impeço que qualquer agente possa por si só governar, eu não só avanço na contenção do arbítrio, como posso avançar numa democracia mais aperfeiçoada. Porque a ideia é tentar entender esses três poderes como representantes parciais da democracia."

Um dos exemplos mais claros da fiscalização de um poder pelo outro é o processo de impeachment, por exemplo. Em um processo como este, de responsabilização do presidente da República, o poder Legislativo julga (pelo Senado, com autorização da Câmara). "Isso é interferência indevida de um poder pelo outro? Não. É a maneira pela qual a separação de poderes foi estabelecida na Constituição", explica Corbo.

O Legislativo tem outras maneiras de fiscalizar o Executivo, que está "amarrado pela Constituição de 1988", diz Corbo. Pode fiscalizar por meio das Comissões Parlamentares de Inquérito (as CPIs), por exemplo. O Legislativo também pode sustar decretos do Executivo, rejeitar Medidas Provisórias (como o Congresso recentemente rejeitou uma MP que tratava da nomeação de reitores de universidades). O próprio Legislativo tem uma separação, a Câmara e o Senado, em que um controla o outro.

O Executivo, por sua vez, pode interferir na atuação do Congresso, mas não pode, como em outros países, desfazer o parlamento ou convocar novas eleições.

O presidente da República pode apresentar projetos de lei, pautando o debate legislativo, pode editar uma Medida Provisória que também vai pautar o Legislativo, pode vetar um projeto de lei aprovado pelo Legislativo.

É a presidência que envia o projeto do Orçamento para ser aprovado pela Congresso.

Já o Judiciário fica de olho nos atos do poder público; pode julgar se novas leis aprovadas no Legislativo ou se ações do Executivo violam a Constituição.

Como isso funciona? Vários agentes, como partidos, a população, organizações sociais, podem contestar a legalidade desses atos no Judiciário. Por exemplo, um partido pode ajuizar no STF uma ação questionando uma lei que acabou de ser aprovada. Em julgamento, o STF pode excluir os efeitos da lei. O mesmo pode acontecer com atos ou decretos do presidente da República.

É preciso lembrar, também, que a formação do poder Judiciário ou do Supremo Tribunal no Brasil e nos tribunais superiores sempre se dá com a participação do Executivo, que nomeia seus membros, e do Legislativo, que os aprova.

"O poder Executivo pode nomear um ministro que esteja vinculado a algum outro tipo de pensamento", diz Corbo. "Mas para alterar a composição inteira de um tribunal demora 20 anos — e a ideia é essa, que nenhum presidente seja capaz de empacotar a corte para ter um tribunal 100% composto por escolhas suas."