O que o Brasil pode ganhar ou perder com resultado das eleições nos EUA
A chegada ao poder de Jair Bolsonaro (sem partido) em janeiro de 2019 marcou um ponto de inflexão fundamental na política externa do Brasil: pela primeira vez desde a redemocratização, o país escolhia ter como aliado prioritário e preferencial os Estados Unidos.
Bolsonaro e Donald Trump partilham o posicionamento ideológico de direita, o conservadorismo nos costumes e o estilo populista e online de fazer política.
Mas a gestão Bolsonaro defende que a aproximação de agendas dos países não é resultado apenas da simpatia mútua entre seus mandatários, mas o reconhecimento de que a relação até então morna com os americanos representava uma oportunidade desperdiçada de aumentar o fluxo de negócios bilaterais e a influência política brasileira na América Latina.
"Qualquer país no mundo que queira ser próspero tem que ter uma relação privilegiada com os Estados Unidos", definiu o então secretário especial de comércio exterior Marcos Troyjo, em conversa com investidores americanos e brasileiros em Washington no fim de 2019.
Dado o investimento feito pelo Brasil na "relação privilegiada", o resultado da atual disputa entre Trump e o democrata Joe Biden é visto como crucial para o futuro da relação entre os países e para o sucesso de ao menos parte das apostas feitas pela gestão Bolsonaro.
O ocupante da Casa Branca nos próximos quatro anos terá papel fundamental em determinar o avanço de um acordo de livre comércio dos países, a entrada do Brasil na OCDE e o papel geopolítico dos brasileiros na América Latina.
Acordo de Livre Comércio
Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial brasileiro. De lá para cá, os americanos têm perdido espaço nesse campo. E se tornou um consenso entre empresários americanos e brasileiros que a relação comercial ficará estagnada no atual patamar se os governos de ambos os países não se moverem para retirar barreiras —tarifárias e não-tarifárias— das negociações.
A chegada de Bolsonaro ao poder, no entanto, mostrou que havia vontade política de mudar a situação. "O Brasil entrou em campo", anunciou em meados do ano passado o Ministro da Economia, Paulo Guedes, empregando metáfora futebolística para se referir à possibilidade um acordo de livre comércio entre o país e os EUA.
Na ocasião, o secretário de comércio de Trump, Wilbur Ross, visitava Brasília. Da Casa Branca, Trump deu força ao entusiasmo: "Nós vamos trabalhar em um acordo de livre comércio com o Brasil. O Brasil é um grande parceiro comercial. Eles nos cobram muitas tarifas, mas, tirando isso, nós amamos essa relação."
Mais de um ano após as falas, Brasil e EUA fecharam essa semana o que tem sido chamado na imprensa americana de "miniacordo comercial". O pacote está muito longe da ambição de ser um tratado de livre comércio.
Os termos do acordo entre Itamaraty, Ministério da Economia e o Representante Comercial dos EUA (USTR, na sigla em inglês) preveem abolição de algumas barreiras não-tarifárias no comércio bilateral: a simplificação ou extinção de procedimentos burocráticos, conhecida no jargão empresarial como facilitação de comércio, a adoção de boas práticas regulatórias, que proíbem, por exemplo, que agências reguladoras de cada país mudem regras sobre produtos sem que exportadores do outro país possam se manifestar previamente, e a adoção de medidas anticorrupção.
Embora não resolvam gargalos históricos e importantes na relação comercial entre EUA e Brasil, como a barreira de 140% imposta pelos americanos à importação de açúcar brasileiro, os empresários acreditam que os acordos podem aumentar o fluxo de negócios entre os dois países —que em 2020 sofreu uma queda de mais de 25%, puxada pela pandemia de coronavírus.
Em maio desse ano, em iniciativa inédita, mais de 30 organizações empresariais dos dois países assinaram uma carta conjunta cobrando celeridade das autoridades brasileira e americana para firmar justamente o pacto recém-anunciado.
"Queremos que essa agenda do comércio entre os dois países seja vista como algo suprapartidário, que qualquer governo, de qualquer um dos países, possa levar adiante, porque é do interesse dos empresários dos dois lados", afirmou Carlos Eduardo Abiajodi, diretor de desenvolvimento da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
A preocupação dos setores produtivos era de que o processo eleitoral americano pudesse colocar a perder quase 24 meses de negociações intensas. O documento final foi assinado a 15 dias do dia da eleição.
"O acordo é muito importante porque, se Trump vencer, já retomamos as negociações de um ponto mais avançado. Se Biden vencer, temos um patamar mínimo estabelecido para seguir. Os americanos são pragmáticos e reconhecem a importância das relações comerciais com o Brasil", avalia Abrão Árabe Neto, vice-presidente-executivo da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (Amcham Brasil).
Os empresários, no entanto, sabem que o clima político com os democratas, partido do favorito Joe Biden, não é dos melhores. Em meados de 2020, quase todos os parlamentares democratas da Comissão de Orçamentos e Tributos da Câmara americana assinaram uma carta se dizendo contrários ao avanço de qualquer pacto comercial mais abrangente com o Brasil sob o governo de Bolsonaro.
Por lei, negociações que envolvam tarifas terão de receber aprovação do Congresso americano, além de passar também pelo Legislativo brasileiro e do Mercosul.
Até por isso, especialistas no assunto dizem que um acordo de livre comércio entre Brasil e EUA pode exigir negociações que se estendam por mais de uma década.
Com Trump, as relações comerciais entre os países mostram certa ambivalência. Em nome do estreitamento da amizade, o Brasil aumentou a importação de trigo e etanol do país e aceitou restrições na exportação de chapas de aço brasileira pelos americanos.
Por outro lado, depois de mais de três anos de restrições à carne bovina brasileira in natura, os EUA reabriram seu mercado. Além disso, foram a campo junto ao G-7 defender o Brasil em agosto de 2019 de uma reprimenda pública pelas queimadas na Amazônia, que poderia desaguar em sanções econômicas de nações europeias contra a produção agrícola brasileira.
Caso se reeleja, Trump deve manter a cadência entre fazer concessões ao aliado na América do Sul e aplicar medidas protecionistas que sejam importantes para sua política doméstica.
Se der Biden, o setor empresarial aposta em estabilidade na relação, ao menos no curto prazo. Pragmático, o democrata não é visto como alguém que irá queimar pontes com Bolsonaro logo de saída, até porque não pretende ceder espaço de influência política e economia para os rivais chineses no continente americano.
Isso não significa, porém, que o democrata evitaria temas relevantes para sua base eleitoral. "É certo que a agenda do meio ambiente, direitos humanos e direitos trabalhistas, que não está na mesa hoje na relação dos dois presidentes, deve ser incorporada às discussões bilaterais caso Biden vença", diz Árabe Neto. E tudo dependerá de como o governo Bolsonaro lidará com os novos termos da conversa.
No debate televisivo contra o oponente Donald Trump, em setembro, o democrata citou a devastação da Amazônia brasileira e afirmou que lideraria a criação de um fundo global de US$ 20 bilhões para que o Brasil preservasse a floresta em pé. Se isso não funcionasse, Biden aventou aplicar "sanções econômicas" contra o país. O governo Bolsonaro reagiu à afirmação acusando o democrata de atacar a soberania brasileira.
Ingresso na OCDE
Depois de quase um ano de pressões e de ver a atual rival Argentina largar na frente, em janeiro de 2020 o Brasil recebeu o endosso formal dos EUA a sua candidatura a membro da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o grupo dos países desenvolvidos.
"A notícia foi muito bem-vinda. Vinha trabalhando há meses em cima disso, de forma reservada, obviamente. Houve o anúncio [dos EUA], são mais de 100 requisitos para ser aceito, estamos bastante adiantados, inclusive na frente da Argentina. E as vantagens pro Brasil são muitas, equivalem ao nosso país entrar na primeira divisão", afirmou Bolsonaro, ainda em janeiro.
A OCDE, atualmente com 37 países, é um fórum internacional que promove políticas públicas, realiza estudos e auxilia no desenvolvimento de seus membros, fomentando ações voltadas para a estabilidade financeira e aprimoramento dos índices de desenvolvimento humano.
Os americanos possuem peso suficiente para equilibrar eventuais resistências europeias à entrada do Brasil e, por isso, o apoio do país era considerado central para o sucesso da investida nacional.
Dez meses após o endosso, ainda sem data para que haja uma resposta definitiva sobre a candidatura brasileira, na segunda (19/10), Bolsonaro repetiu que o governo tem um "firme propósito" de compor o grupo e voltou a agradecer aos americanos pelo seu suporte.
"Contamos com o fundamental apoio do governo dos Estados Unidos nesse processo, que será determinante para que se chegue a um rápido e favorável encaminhamento. O ingresso do Brasil na OCDE irá gerar efeitos positivos para a atração de investimentos nacionais e internacionais.
E será mais uma evidência da nossa disposição de assumir compromissos e responsabilidades compatíveis com a importância do nosso país no sistema internacional", disse o presidente.
Observadores da OCDE têm expressado preocupação tanto com o desenvolvimento da pandemia de coronavírus no Brasil —com um número considerado alto de casos e mortes—, como com os aparentes retrocessos no combate à corrupção na gestão Bolsonaro.
A Operação Lava Jato e o trabalho do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro foram citados várias vezes pelos especialistas da OCDE como exemplos de avanços do país no combate aos crimes de colarinho branco.
Nesse contexto, o apoio americano se torna ainda mais importante. E a princípio ele está assegurado se Trump se reeleger. Mas caso Biden vença a disputa, não há garantias de que a negociação que levou ao endosso americano seja cumprida. O democrata jamais se manifestou publicamente sobre o assunto.
Aliado prioritário militar e tecnológico
Nos últimos meses, o Brasil fez uma série de mudanças em seus posicionamentos geopolíticos históricos. Abandonou a postura de condenar, na ONU, o embargo econômico americano a Cuba. Sugeriu que seguiria os EUA e levaria a embaixada do país em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, em uma afronta aos palestinos que disputam o controle da cidade com os israelenses.
Elogiou a operação militar americana que matou o general iraniano Qassin Suleimani no Iraque. E garantiu que só faria negócios tecnológicos com países que respeitassem a " segurança dos dados" e a soberania brasileira, no que foi lido como um recado para a chinesa Huawei de que ela está fora do páreo na instalação da rede 5G no país.
Todos esses movimentos, que podem parecer geograficamente desconectados, são vistos por especialistas em relações internacionais como prova de um alinhamento ideológico e militar do Brasil com os EUA.
A disposição do atual governo brasileiro fez com que Trump anunciasse no ano passado o Brasil como seu "aliado preferencial extra-Otan", nome para designar países que não são membros da aliança Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) mas são aliados estratégicos militares dos EUA, ou seja, que terão um relacionamento de trabalho estratégico com as Forças Armadas americanas.
Para o Brasil, isso significa vantagens de acesso à tecnologia militar americana. No mesmo tópico, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, firmado por Bolsonaro e Trump no ano passado, permitirá que os EUA e outros países lancem foguetes e satélites a partir da base de Alcântara, no Maranhão.
O governo brasileiro afirma que o acordo estimulará o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro e poderá gerar investimentos de até R$ 1,5 bilhão na economia nacional.
De acordo com o Ministério de Ciência e Tecnologia, graças ao acordo, o Brasil poderá participar do mercado espacial global, que deve movimentar cerca de U$ 1 trilhão por ano nos anos 2040.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro demonstrou disposição de apoiar Trump em sua postura de enfrentamento ao regime de Nicolas Maduro na Venezuela. Em um episódio que levou o chanceler Ernesto Araújo a ter que se explicar no Congresso, o secretário de Estado de Trump Mike Pompeo esteve em Roraima há algumas semanas para visitar refugiados venezuelanos.
A visita de menos de quatro horas de Pompeo no Brasil, sem que o secretário sequer passasse em Brasília, foi encarado por senadores como um uso do território brasileiro para fazer ameaças veladas a Maduro, o que Araújo negou.
Alinhado tecnológica e militarmente aos EUA, o Brasil se coloca em oposição ao interesse chinês e, regionalmente, se posiciona como aliado de primeira hora em relação aos planos americanos para minar o regime Maduro na Venezuela.
E embora esses dois pontos sejam absolutamente prioritários na agenda de Trump —e devem seguir assim pelos próximos quatro anos, caso o republicano vença—, eles são também de grande importância para Biden e os democratas, em dois raros exemplos em que políticos dos dois partidos tendem a concordar.
Embora com estratégias diferentes, é esperado que, caso vença, Biden mantenha o enfrentamento com a China e a pressão para que aliados recusem soluções tecnológicas chinesas e limitem a área de influência das empresas do país.
O democrata deve ainda seguir em busca de soluções que possam levar a uma transição de poder na Venezuela e ao estabelecimento de eleições democráticas. Seja qual for o presidente americano, ele deverá contar com o Brasil para ter sucesso na empreitada.
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