Risco de golpe cresceu na América Latina, mas militares brasileiros preferem 'bastidores', diz professor de Harvard
Em "Como as Democracias Morrem", o cientista político e professor da Universidade de Harvard Steven Levitsky e o colega Daniel Ziblatt escreveram que golpes militares "clássicos" como os vistos na América Latina nos anos 1960 e 1970 eram cada vez mais raros.
Em um mundo em que populistas autoritários de direita entravam no sistema político pela porta da frente, por meio de eleições tradicionais, as democracias minguavam lentamente, sem um grande momento de ruptura como no passado.
Lançado em 2018, o livro buscava entender o contexto que possibilitou a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos, exumando crises no sistema democrático de diversos países, da Alemanha sob Hitler à Venezuela de Hugo Chávez.
Passados menos de cinco anos, contudo, o cenário parece diferente. Trump saiu de cena — e o fantasma da intervenção militar volta a rondar a América Latina.
"Pela primeira vez durante minha carreira, a região começa a 'cheirar' cada vez mais como a América Latina dos anos 1970 [quando foi palco de uma série de golpes militares]", disse Levitsky à BBC News Brasil. "Vejo níveis elevadíssimos de polarização no Chile, no Peru, no Brasil, na Bolívia, no México, na Colômbia..."
O Brasil, ele exemplifica, vive um "risco real" de ter eleições marcadas por episódios de violência em 2022 caso Bolsonaro se recuse a deixar o poder.
"[Pode ser] Algo semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos [a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro]", diz o cientista político, nomeado no ano passado diretor do Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos, de Harvard.
Ainda assim, o especialista avalia como "improvável" uma escalada que resulte em um golpe nos moldes de 1964. Nestes anos de governo Bolsonaro, diz Levitsky, os militares viram as vantagens de atuar nos bastidores, conquistando espaços de poder sem a necessidade de uma ruptura institucional.
Assim, o "custo" de se entrincheirar ao lado de Bolsonaro para defendê-lo é muito alto, pontua. Especialmente neste momento.
"Se ele [Bolsonaro] fosse popular, como Fujimori no Peru de 1991, ou Hugo Chávez na Venezuela dos anos 1990, talvez. Mas um Bolsonaro com 24% de aprovação... me surpreenderia. Alguns dos militares têm uma afinidade ideológica com Bolsonaro, mas, olhando a corporação como um todo, acho que é muito arriscado e muito custoso afundar com o navio — e o navio Bolsonaro está afundando."
A seguir, os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O senhor escreveu em Como as Democracias Morrem que a erosão das democracias acontece muitas vezes de forma imperceptível para quem olha "de dentro". Olhando de fora, como o senhor enxerga a democracia brasileira, ela estaria em risco?
Steven Levitsky - Ah sim, definitivamente. Sempre que se elege um primeiro-ministro ou um presidente que abertamente não está comprometido com as regras do sistema democrático a democracia é colocada em risco.
Nós vimos isso muito claramente nos Estados Unidos. A democracia americana sobreviveu à crise de 2020/2021, mas sofreu — e estamos falando de uma das mais antigas e estáveis democracias do mundo. Um país onde dez anos atrás ninguém acreditaria ser possível que um presidente tentasse um autogolpe, tentasse roubar as eleições, ou que se assistiriam a insurreições violentas.
Nós elegemos um presidente claramente autoritário, o colocamos na Casa Branca, e ele se recusou a aceitar que foi derrotado, tentou roubar as eleições. Nossas instituições, talvez a força da oposição, ajudaram a impedir que Trump lograsse êxito, mas a democracia americana atravessou uma grave crise.
O Brasil tem instituições democráticas bastante sólidas, talvez não tão sólidas quanto as dos Estados Unidos... Um fator que certamente ajudou a salvar a democracia americana foram os fortes controles civis sobre as Forças Armadas. O sonho de Trump era mobilizar as Forças Armadas, mas os militares se recusaram.
No Brasil, nós não sabemos. Os brasileiros elegeram alguém ainda mais autoritário do que Donald Trump. Jair Bolsonaro (sem partido) é uma das figuras mais autoritárias eleitas nas últimas décadas nas Américas.
O Brasil tem instituições democráticas sólidas, que podem sobreviver a Bolsonaro, mas há uma boa chance de que Bolsonaro tente usar algum tipo de medida ilegal ou mesmo de violência para tentar evitar que ele deixe o poder nas eleições de 2022. Algo semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos [a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro]. Acho que Bolsonaro é ainda mais autoritário do que Trump, e os militares têm um papel maior do que nos Estados Unidos, então é um risco real.
BBC News Brasil - Sobre a questão dos militares. No livro, o senhor argumenta que golpes militares "clássicos" como os que varreram a América Latina nos anos 1960 e 1970 são cada vez mais raros. Por outro lado, avalia que o fracasso da tentativa de autogolpe de Trump não prosperou porque ele não tinha os militares ao seu lado. Bolsonaro tem apoio de parte das Forças Armadas. Qual seria o risco de o Brasil sofrer um golpe militar "clássico" em 2022, por exemplo?
Levitsky - A América Latina tem um longo histórico de intervenções e golpes militares, então, não podemos simplesmente excluir essa possibilidade.
E o nível de polarização na América Latina é extremamente elevado neste momento. Pela primeira vez durante minha carreira, a região começa a "cheirar" cada vez mais como a América Latina dos anos 1970... Níveis elevadíssimos de polarização no Chile, no Peru, no Brasil, na Bolívia, no México, na Colômbia...
Tivemos um golpe militar clássico em Honduras em 2009, pouco mais de uma década atrás. E há uma pressão para algo semelhante a um golpe militar clássico no Peru neste momento. Espero que não vá para frente, mas o Peru não se via na iminência de um golpe militar havia décadas.
No Brasil, acho que é mais provável que os militares se arroguem o velho papel de "poder moderador", nos bastidores, ajudando a tirar alguém do poder ou a colocar, em vez de tomar o poder como em 1964. Ainda acho que um golpe como o de 1964 é improvável, mas os militares estão mais uma vez na arena política brasileira, o que acho uma tragédia, com sérias consequências negativas para a democracia.
BBC News Brasil - E por que o senhor acha que existe essa preferência pelo chamado "poder moderador" aqui?
Levitsky - Uma das razões, infelizmente, é o fato de as Forças Armadas gozarem de muito mais prestígio entre a opinião pública do que qualquer partido político. Cerca de 15% dos brasileiros dizem que confiam nos partidos políticos, enquanto quase 50%, se não estou enganado, afirmam confiar nas Forças Armadas. Essa lacuna é muito perigosa. O fato de, em uma democracia, as pessoas preferirem os militares aos políticos é perigoso, cria uma tentação para que os políticos se voltem às Forças Armadas em busca de um aliado.
Mas também acho que tem muito a ver com Bolsonaro. Ele chegou ao poder de certa forma sem partido político, nunca foi fiel a uma agremiação política... Ele queria governar sozinho, mas não se governa o Brasil sozinho. Precisava de aliados. E, para ele, por causa de sua ideologia, sua identificação com as Forças Armadas, os militares eram aliados naturais.
Não consigo te dizer porque militares da ativa e da reserva aceitaram servi-lo, mas foi praticamente um presente o que eles receberam. Se um governo oferece mais prestígio, mais espaços de poder, você aceita, certo? Está dado.
Então, tem sido um bom negócio para os militares, que há décadas não vinham sendo tratados com o mesmo prestígio. Depois da ditadura, houve um movimento sério e real para estabelecer controles civis sobre as Forças Armadas no Brasil, para afastar os militares da política, o que foi uma grande conquista dos anos 1990 e início dos 2000.
Agora, os militares têm uma nova oportunidade de se aproximar do poder, mais acesso a recursos. Mas é difícil governar, então, ainda penso que os militares, de forma geral, têm dúvidas sobre governar de fato o país. E, agora, Bolsonaro perdeu apoio, perdeu prestígio tanto perante a opinião pública quanto o establishment, a elite econômica e a classe política tradicional. Então me surpreenderia uma intervenção dos militares em favor de um político tão isolado quanto Bolsonaro.
Se ele fosse popular, como Fujimori no Peru de 1991, ou Hugo Chávez na Venezuela dos anos 1990, talvez. Mas um Bolsonaro com 24% de aprovação... me surpreenderia. Alguns dos militares têm uma afinidade ideológica com Bolsonaro, mas, olhando a corporação como um todo, acho que é muito arriscado e muito custoso afundar com o navio — e o navio Bolsonaro está afundando.
BBC News Brasil - A probabilidade maior então é que eles deixem Bolsonaro derreter sozinho e sigam a vida?
Levitsky - Acho que sim. Há muito medo em relação a Lula... ainda que meus amigos mais ao centro do espectro político não estejam felizes, parece que Lula vai ser o principal candidato contra Bolsonaro no segundo turno. Parece cada vez mais inevitável.
BBC News Brasil - O que não ajuda na questão da polarização...
Levitsky - Pois é, e assim é a democracia. Não há nada que se possa fazer sobre isso. Se for isso que os eleitores quiserem, isso é o que vai acontecer.
Mas é muito importante para a democracia brasileira garantir que não haja ruptura democrática, que Lula construa uma grande coalizão democrática que inclua o centro e mesmo a centro-direita. Não deve ser apenas o PT como oposição, deve ser uma grande coalizão democrática como nos anos 1980, por exemplo, com o MDB. E eles não deveriam cometer o erro de esperar pelo segundo turno, deveriam fazê-lo no primeiro turno.
Isso não vai resolver os problemas de longo prazo do Brasil, claro. Uma grande coalizão permitiria que os brasileiros pudessem começar a confrontar seus outros problemas. Evitaria que as eleições fossem roubadas, evitaria um golpe ou uma ruptura democrática. Os brasileiros não vão conseguir começar a resolver seus problemas com Bolsonaro no poder. Ele cria novos problemas. Veja a questão trágica da saúde pública.
BBC News Brasil - O senhor comentou sobre o fato de Bolsonaro estar perdendo apoio. O que acontece quando um político eleito com a promessa de "consertar" o sistema se vê em meio a denúncias de corrupção? É mais difícil para um líder autoritário se manter no poder nesse cenário?
Levitsky - Sim, com certeza. Políticos autoritários têm mais facilidade para se manter no poder se têm sucesso — ou, pelo menos, se passam a imagem de serem bem-sucedidos.
Alberto Fujimori conseguiu porque acabou com a hiperinflação, capturou Abimael Guzmán [líder do grupo maoísta Sendero Luminoso] e derrotou o Sendero Luminoso. As coisas correram muito bem na Venezuela por pelo menos uma década com Hugo Chávez. Ele teve a sorte de se deparar com um ciclo de valorização nos preços do petróleo a partir de 2002, então, a Venezuela viveu um boom em 2004, 2005, 2006, 2007, 2008. E Chávez tirou proveito disso, conseguiu redistribuir bilhões de dólares aos pobres.
Evo Morales [presidente da Bolívia entre 2006 e 2019] e Rafael Correa [presidente do Equador entre 2007 e 2017] por muitos anos durante suas respectivas presidências tiveram êxitos que permitiram que eles consolidassem poder.
Quando as coisas não vão bem, é mais difícil dar certo. Isso foi em parte o problema de Trump, que não conseguiu responder à pandemia à altura. Lucio Gutiérrez no Equador [presidente de 2003 a 2005, quando renunciou] é outro exemplo. Nada é garantido, mas os políticos outsiders que têm um desempenho ruim, que não cumprem o que prometem, que se veem implicados no meio da velha corrupção, ou mesmo de novas denúncias, eles geralmente se veem bastante enfraquecidos.
BBC News Brasil - No começo da nossa conversa o senhor disse avaliar que a democracia brasileira está em risco. A quais sinais devemos estar atentos nesse sentido?
Levitsky - Eles não são difíceis de se encontrar, já que Bolsonaro os emite praticamente todos os dias. Um "sinal vermelho" clássico, por exemplo, é qualquer discurso sobre fraude no sistema eleitoral. Quando você tem um país em que o processo eleitoral é sabida e tradicionalmente confiável, em que qualquer especialista, doméstico ou estrangeiro, sabe que o sistema é confiável e o presidente em exercício começa a falar de fraude... você sabe que ele está tentando enfraquecer o processo eleitoral. Esse é o "sinal vermelho" número um.
Número dois seria a tentativa de enfraquecer, atacar ou controlar o Judiciário. Outro sinal, e que já vimos Bolsonaro fazer, é a tentativa de politizar as Forças Armadas. O fato de oficiais agirem em nome de Bolsonaro deveria ser considerado um duplo "sinal vermelho".
E, finalmente, eu mencionaria a incitação à violência ou a ameaça de violência. A retórica da violência já é por si só um "sinal vermelho".
BBC News Brasil - Então nem é preciso chegar às vias de fato, digamos assim. A ameaça de violência já deveria ser preocupante?
Levitsky - Sim, e essa foi uma das questões nos Estados Unidos. Por quatro anos, Trump aplaudiu grupos de milícias, e o Partido Republicano meio que se recusou a condená-los publicamente. Bom, esses caras tentaram invadir o Capitólio no dia 6 de janeiro [de 2021], promovendo violência. Recusar-se a condenar violência política ou a atividade de milícias armadas é muito, muito perigoso.
Eu me preocupo muito com o Brasil em relação a isso, porque há muita gente armada. Militares da reserva, da ativa, alguns policiais, talvez algumas milícias. Tem muita gente armada no Brasil que Bolsonaro poderia mobilizar.
BBC News Brasil - Quando o senhor escreveu Como as Democracias Morrem o mundo temia pelo futuro da democracia ante a ascensão do populismo de direita. Hoje, com Trump fora da equação, qual sua visão sobre o cenário? Ele ainda é preocupante?
Levitsky - É parecido. Mas poderia ser muito pior, se Trump tivesse sido reeleito e Bolsonaro, mais bem-sucedido. Eu teria ficado muito mais preocupado. Acho que é boa notícia para o Brasil o fato de Trump ter perdido as eleições.
E Bolsonaro, quando foi eleito, fez surgir inúmeros "imitadores" pela América Latina, políticos de direita que aspiravam ser o "Bolsonaro do Peru", o "Bolsonaro do Chile"... Felizmente, Bolsonaro tem cada vez menos servido de modelo, porque não tem sido bem-sucedido. Então, o fracasso dessas figuras autoritárias em duas grandes democracias, os Estados Unidos e o Brasil, eu diria que são bons sinais.
Dito isso, o nível de polarização segue alto em praticamente todo o mundo, mas especialmente nos Estados Unidos e na América Latina. A democracia americana segue ameaçada. O Partido Republicano continua se distanciando de seu antigo papel de partido tradicional de centro e se aproximando de um perfil autoritário.
No Brasil, no Chile, na Colômbia, no Peru, apareceram recentemente elementos à esquerda e à direita, mas mais majoritariamente à direita, que são abertamente autoritários.
Enquanto o nível de polarização estiver nos níveis que estamos vendo hoje, em certa medida semelhante ao que vimos nos anos 1970, a democracia estará em risco. Há muitas maneiras pelas quais uma democracia pode morrer, mas, em um contexto de extrema polarização, as chances de crise na democracia são sempre muito altas.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.