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Sírio tenta reconstruir vida no Uruguai após passar 12 anos preso em Guantánamo

Ahmed Adnan Ahjam foi enviado para Guantánamo em junho de 2002, após ser preso por paquistaneses - BBC Mundo
Ahmed Adnan Ahjam foi enviado para Guantánamo em junho de 2002, após ser preso por paquistaneses Imagem: BBC Mundo

Gerardo Lissardy

BBC News Mundo

25/01/2022 20h32Atualizada em 25/01/2022 20h40

Quando mencionaram Guantánamo a Ahmed Adnan Ahjam, a primeira coisa que ele fez foi lamentar que ainda existam prisioneiros lá. "Tive sorte de ter saído", disse ele.

Ele se refere aos 39 detidos que permanecem na prisão militar criada pelos Estados Unidos há 20 anos para suspeitos de terrorismo, sobre a qual foram denunciados por abusos e torturas.

Ahjam, de origem síria, foi enviado para Guantánamo em junho de 2002 após ser preso pelas forças de segurança paquistanesas e entregue aos EUA. Ele passou 12 anos e seis meses preso lá, até ser transferido para o Uruguai, com a aprovação de uma comissão intergovernamental em Washington que analisou o caso dele.

Ahjam chegou ao país sul-americano com outros cinco ex-detentos de Guantánamo, em dezembro de 2014, após um acordo bilateral.

Mas hoje, aos 44 anos, ele ainda tenta reconstruir sua vida em Montevidéu e mede suas palavras em espanhol para se referir à prisão mais polêmica dos EUA.

"Se vamos conversar, não paramos por dias, porque lá é uma vida. Mas posso te dizer: Guantánamo é como uma tumba. Quem tem sorte, sai de lá para andar na Terra novamente." diz Ahjam em entrevista à BBC Mundo.

"Símbolo da Injustiça"

Cerca de 780 detentos passaram pela prisão localizada em uma base naval dos Estados Unidos, no sudeste de Cuba, nestas duas décadas.

Os primeiros 20 chegaram em um avião militar, no dia 11 de janeiro de 2002. A polêmica surgiu imediatamente quando uma foto deles ajoelhados, mascarados e algemados, vestindo uniformes laranja, se espalhou.

Quatro meses haviam se passado desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e o governo George W. Bush escolheu o local para enviar os prisioneiros de sua "guerra ao terrorismo", sem ser regido pelas proteções da lei interna ou pela Convenção de Genebra .

A maioria dos detidos que passaram por Guantánamo nunca foi formalmente acusada ou levada a julgamento.

Cinco dos 12 prisioneiros condenados são acusados de envolvimento no planejamento dos ataques de 11 de setembro de 2001, incluindo seu suposto mentor Khalid Sheik Mohammed.

Mas o julgamento dele também não começou.

Um dos dois únicos condenados até agora em Guantánamo, Majid Kahn, denunciou vários abusos, de enemas a acorrentamentos por dias ou ameaças de seus interrogadores.

"Quanto mais eu cooperava e contava a eles, mais eles me torturavam", disse Khan a um júri militar em outubro, se declarando culpado por ajudar o grupo fundamentalista islâmico Al Qaeda.

Sete dos oficiais de alto escalão que integraram esse júri criticaram a suposta tortura que ele recebeu, chamando-a de "uma mancha na fibra moral dos Estados Unidos".

Guantánamo "tornou-se um símbolo de injustiça, racismo, islamofobia e graves violações de direitos humanos, que incluem tortura e detenção indefinida", disse à BBC Mundo Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Anistia Internacional.

"O que eu tenho claro"

Guantánamo - Getty Images - Getty Images
Em 20 anos, 780 detentos passaram pela prisão de Guantánamo. em Cuba
Imagem: Getty Images

Ahjam foi descrito em documentos dos EUA como alguém que viajou para o Afeganistão, ligado a fundamentalistas e foi capturado cruzando a região de Tora Bora para o Paquistão em 2001, durante ataques da coalizão liderada por Washington.

Mas alguns desses documentos indicavam que o próprio detido negou ter se encontrado com membros da Al-Qaeda em Tora Bora, ou ter participado de treinamento e combate no Afeganistão, como os EUA suspeitavam.

Em vez disso, Ahjam sustentou que foi vendido pelas forças paquistanesas por uma recompensa paga pelos americanos.

Ao transferir ele e outros cinco ex-detentos de Guantánamo para o Uruguai, o governo dos EUA descartou que eles fossem perigosos.

Ahjam diz que sofreu abusos durante "os primeiros quatro ou cinco meses" em que esteve na prisão, como ser privado de banhos ou roupas limpas.

Ele também descreveu maus-tratos por parte de soldados de Guantánamo, por exemplo, quando deixou uma toalha em um local proibido em sua cela.

"Eles tiram você (da cela), revistam todo o seu corpo, te deixam no chão, com o pé acima da cabeça por cinco minutos e depois te devolvem para a cela", diz.

Quando perguntado se acha que Guantánamo um dia fechará, ele responde que pelo menos espera uma mudança.

"Nada dura para sempre", diz ele. "Isso é o que está claro para mim. Estava claro para mim na prisão: tudo tem um começo e um ponto final."

"Mensagens confusas"

Dos últimos quatro presidentes que os EUA tiveram, três expressaram sua vontade de fechar Guantánamo: Bush, Barack Obama e o atual presidente, Joe Biden.

Mas ao chegar à Casa Branca em 2017, Donald Trump ignorou o plano de Obama de transferir os presos restantes, e Biden não o reanimou com força em seu primeiro ano no cargo.

"O presidente Biden continua a enviar mensagens contraditórias: promete fechar Guantánamo, mas anunciou recentemente que seriam construídos novos tribunais para que as comissões militares pudessem retomar os julgamentos", diz Guevara-Rosas, da Anistia Internacional, que pede o fechamento da prisão e responsabilização pelos abusos cometidos.

Cerca de metade dos 39 presos atuais tiveram sua transferência aprovada por uma comissão do governo, cinco deles anunciados na última semana.

No entanto, há uma série de obstáculos para a realização dessas transferências.

Por um lado, tornou-se difícil para os EUA encontrar países dispostos a receber ex-detentos, mantê-los sob controle ou monitorar suas atividades.

Biden pediu ao Congresso em dezembro que elimine as restrições que existem para transferir prisioneiros de Guantánamo para outros países ou mesmo dentro dos Estados Unidos.

Mas oito senadores republicanos alertaram em uma carta ao presidente, em maio de 2021, que querem que a prisão permaneça aberta, citando preocupações de segurança.

"Embora houvesse argumentos razoáveis de seus antecessores para transferir e repatriar alguns detidos de baixo risco, todos concordamos que realocar os 40 restantes ou fechar a instalação representaria um risco desnecessário", disseram.

"O Estigma de Guantánamo"

Dois dos seis ex-detentos enviados ao Uruguai em 2014 foram posteriormente para a Turquia, diz Christian Mirza, que serviu de elo entre o grupo e o governo do então presidente José Mujica.

Os outros quatro, mal conseguiram um emprego precário.

"O estigma de Guantánamo os marcou e os marcará pelo resto de suas vidas. Não apenas eles, mas todos aqueles que saem (daquela) prisão", garante Mirza à BBC News Mundo.

Ahjam chegou ao ponto de abrir uma barraca de doces árabes em um mercado de Montevidéu, em 2018, algo que ele descreveu como um "sonho" realizado.

Mas o negócio fechou durante a pandemia e a ajuda que recebeu inicialmente do governo uruguaio expirou.

Agora, Ahjam ainda está procurando começar uma nova vida depois de Guantánamo.

"Você não sabe se está vivendo ou não, porque não tem nada pelo que viver", diz ele. "Você tem que fazer tudo, lutar, começar tudo na vida do zero."