Eleições: ex-ministro do STF diz temer 'tempestades' com Moraes no comando do TSE
Marco Aurélio Mello diz, em entrevista à BBC News Brasil, que atuação de ex-colega é "trepidante" e defende "diálogo" no caso Daniel Silveira.
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello disse temer "tempestades" por conta da futura atuação do ministro Alexandre de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições deste ano. Segundo o ex-magistrado, Moraes tem atuado de forma "trepidante" e o momento atual demandaria "temperança".
"Receio que possamos ter tempestades [...] Não é o desejável. A atuação do juiz trepidante deve ser afastada. Vamos adotar temperança, vamos adotar compreensão sem abrir mão da prevalência das regras jurídicas", disse Marco Aurélio Mello.
A crítica atinge Alexandre de Moraes no momento em que ele é um dos protagonistas de mais uma crise entre os poderes Judiciário e Legislativo.
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Nos últimos dias, Daniel Silveira desafiou uma ordem de Alexandre de Moraes para que ele usasse tornozeleira eletrônica. O deputado é réu em um processo que tramita no STF em que é acusado de cometer ataques a membros da Corte.
Silveira disse que não a cumpriria e afirmou que passaria a dormir na Câmara dos Deputados - o que, em tese, impossibilitaria a Polícia Federal de cumprir a decisão.
Na quarta-feira (30/3), agentes da PF foram à Câmara, mas não conseguiram cumprir a determinação do ministro depois que Silveira se dirigiu ao Plenário da Casa.
Questionado sobre o impasse envolvendo Daniel Silveira e Alexandre de Moraes, Marco Aurélio defendeu que houvesse um diálogo entre os dois poderes para evitar uma crise ainda maior. "Não interessa a quem quer que seja no cenário nacional uma decisão descumprida", disse.
Marco Aurélio disse ainda não acreditar em ruptura democrática caso o presidente Jair Bolsonaro (PL) não vença as eleições. "Não acredito em golpe", afirmou.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - O deputado federal Daniel Silveira se refugiou nas dependências da Câmara dos Deputados para que a Polícia Federal não colocasse nele uma tornozeleira eletrônica fruto de uma determinação do ministro Alexandre de Moraes. Até o momento dessa entrevista, a decisão ainda não havia sido cumprida. Quão desmoralizado fica o STF quando esse tipo de situação acontece?
Marco Aurélio Mello - Nós precisamos agir no campo de uma compreensão maior, percebendo o contexto, especialmente o cargo que é ocupado pelo destinatário da medida. Se eu ocupasse ainda a cadeira de julgador, eu tenderia a concluir que é hora de temperança. Não interessa à sociedade brasileira atos trepidantes. Nós sabemos que há um respeito maior com a Casa Legislativa e que a Polícia Federal não ingressa nela sem a concordância do dirigente ou se houver a existência de prática criminosa. Nós precisamos considerar esse contexto e buscar o entendimento, quem sabe com o ministro Alexandre de Moraes conversando com o presidente (Arthur) Lira, da Câmara dos Deputados.
BBC News Brasil - A credibilidade de uma decisão judicial vem da crença de que essa decisão é técnica e não política. Um acordo entre um ministro do STF e o presidente da Câmara dos Deputados para resolver essa questão específica não dá um sinal trocado à sociedade?
Marco Aurélio Mello - Toda decisão tem um conteúdo político que repercute. A atuação do julgador é uma atuação vinculada. É possível um erro de procedimento, um erro de julgamento por parte do juiz, mas ele deve ser aferido mediante o recurso próprio e não interessa a quem quer que seja ter no cenário nacional uma decisão descumprida. Por isso, ao implementar as decisões que eu sempre implementei, eu imaginava a repercussão da decisão. Claro que eu não via o processo pela capa. Eu via o processo pelo conteúdo. Essa situação indesejável. É o que posso dizer.
BBC News Brasil - O senhor entende que o ministro Alexandre de Moraes ultrapassou algum limite legal em relação a essa decisão, como muitos militantes bolsonaristas apontam?
Marco Aurélio Mello - É interessante a atuação do ministro Alexandre de Moraes. Ele tem um passado ligado ao Ministério Público e nós sabemos, ele (o MP) é o Estado acusador. Um passado ligado à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, no Executivo, e também no Ministério da Justiça. Ele presidirá as eleições gerais que teremos neste ano. É interessante estar tão na vitrine como ele está atualmente? A meu ver, não. Porque quando o julgador fica na vitrine, o estilingue funciona e ele é alvo de ataques de toda a ordem. Não sei o que nós poderíamos ter futuramente com a presidência dele no Tribunal Superior Eleitoral. Em um episódio anterior, eu cheguei mesmo a um arroubo de retórica e disse que estávamos diante de um xerife. Não é um xerife com arma na cintura e a estrela no peito, mas ele é alguém que vem atuando de forma desassombrada, visando, na concepção dele, o melhor. Mas ele vem atuando de forma muito ostensiva.
BBC News Brasil - A partir desse entendimento, na sua opinião, ele vem se equivocando?
Marco Aurélio Mello - Podemos até (usar) o termo desassombrado. Eu diria que ele vem tendo uma atuação trepidante, já que os incidentes vêm se sucedendo, principalmente considerado o descompasso entre o Judiciário e o Executivo e agora o descompasso entre o Judiciário e o Legislativo. E isso não é bom.
BBC News Brasil - Nos últimos anos, a gente tem visto uma sucessão de descumprimentos de decisões do STF. A gente teve mais recentemente a recusa do presidente Bolsonaro em depor dentro de um inquérito e agora o deputado Daniel Silveira se recusando a se submeter a receber a tornozeleira eletrônica. Por que isso vem acontecendo?
Marco Aurélio Mello - Não está reinando o respeito mútuo do Judiciário pelo Executivo e do Judiciário pelo Legislativo, e vice-versa. Isso é o que nós precisamos. Nós não avançamos culturalmente com esses incidentes indesejados. Para que eles não ocorram, há de se atuar com temperança, respeitando-se, acima de tudo, não a pessoa que esteja no cargo, mas a instituição.
BBC News Brasil - Há um debate forte na academia e no mundo político sobre o que se chama de judicialização da política ou politização da justiça. Um grupo diz que isso acontece porque o Judiciário vem usurpando funções do Executivo ou do Legislativo. Outro grupo argumenta que o Judiciário vem sendo empurrado a decidir essas questões. Na sua opinião, o Judiciário é autor desse processo ou é vítima desse processo?
Marco Aurélio Mello - Eu já disse até em sessões que o Supremo vinha sendo acionado para fustigar o Executivo e o Legislativo. O que é que nós temos que fazer? O Supremo é acionado e aí ele tem que atuar segundo o figurino legal. Ele é protagonista no cenário quando há o descumprimento de certas regras por integrantes de outros poderes. É protagonista no cenário atual? É. Mas é protagonista porque nós temos esses descompassos que precisam ser afastados. Agora, não se deve atuar com punhos de aço, mas com luvas de pelica.
BBC News Brasil - Em dezembro de 2016, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), também se recusou a acatar uma decisão oriunda do STF. No caso, a decisão era sua e determinava o afastamento dele do cargo. Esse episódio abriu as portas para o que estamos vendo agora em matéria de descumprimento de decisões do STF, algo que era considerado impensável?
Marco Aurélio Mello - Em primeiro lugar, devo dizer que fui relator do caso. O ato foi submetido ao colegiado e que o decidiu de forma errônea ou de forma diversa...
BBC News Brasil - Errônea ou diversa?
Marco Aurélio Mello - Diversa. Eu não estou convencido do acerto da decisão da maioria. Qual foi a minha premissa? O senador Renan Calheiros era presidente do Senado da República e como presidente do Senado ele se mostrava o substituto, em eventualidade, do Presidente da República. Ora, se diante de um processo-crime o presidente da República fica afastado por 120 dias do exercício do cargo, logicamente o substituto não pode ter a possibilidade de substituí-lo. Mas assim não entendeu a ilustrada maioria. Ouvi, inclusive de um integrante ou de uma integrante, não vou definir o gênero, que o senador Renan Calheiros era muito importante para o Brasil.
BBC News Brasil - A gente tem visto, nos últimos anos, reuniões reservadas entre agentes políticos com ministros da Corte. Em alguns casos, são ministros de Estado e até mesmo o presidente da República, como no caso em que o ministro Dias Toffoli se encontrou reservadamente com Jair Bolsonaro. Como é possível manter a credibilidade do Judiciário diante desses encontros privados?
Marco Aurélio Mello - A cerimônia deve ser guardada. Claro que o ministro da Corte não pode se isolar, mas há convivências e convivências e aí... a leitura que o cidadão comum faz não é boa. É como se os integrantes do Supremo estivessem cooptados pelo Chefe do Poder Executivo nacional ou o presidente da Câmara ou do Senado. E isso não é positivo. Agora, autolimitação é pessoal. Nós não temos um corregedor para corrigir os atos dos integrantes.
BBC News Brasil - O senhor acha apropriado que um ministro do Supremo se encontre com ministros de Estado ou até mesmo com o Presidente da República em caráter privado?
Marco Aurélio Mello - Em caráter privado, não. Eu sempre recebia os integrantes do Legislativo nacional e os ministros de Estado. Recebi o ministro da Economia (Paulo Guedes) em meu gabinete, de forma espontânea, com a pureza da alma, e nunca sofri qualquer pressão para decidir desta ou daquela forma. Nós temos que cuidar das aparências. Não basta ser íntegro. É preciso adotar aquela máxima sobre a mulher de César.
BBC News Brasil - Uma pesquisa de dezembro de 2021 do Instituto Datafolha indica que apenas 23% dos brasileiros aprovam o trabalho do STF e que 67% por cento consideram que a atuação do STF é ruim ou regular. Por que o STF é tão malvisto no país?
Marco Aurélio Mello - Hoje, pela publicidade, que é salutar e positiva, os cidadãos em geral acompanham mais a vida do Judiciário, especialmente do Supremo. Quando o Supremo se defronta com um conflito de interesses, ele tem que decidir e, às vezes, essa postura de decisão é contramajoritária e ela não é bem acolhida pela maioria, e eu diria, principalmente, pela maioria iletrada.
BBC News Brasil - As pesquisas mais recentes indicam um possível segundo turno entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro. Em quem o senhor votaria?
Marco Aurélio Mello - Eu espero não me defrontar com essa polarização [...] Eu sou a favor de abrir-se o leque, de o eleitor ter diversas opções e ali vence a maioria porque se trata de uma eleição democrática.
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BBC News Brasil - Mas em um eventual segundo turno entre esses dois candidatos, o senhor votaria em quem?
Marco Aurélio Mello - Eu sou favorável à alternância de poder, mas o país convive com o instituto da reeleição. E o presidente Bolsonaro, que tem peculiaridades, deverá se apresentar como candidato à reeleição. Eu vou esperar o dia da eleição em si para me definir quanto ao melhor candidato para a principal cadeira do país.
BBC News Brasil - O senhor sempre se referiu de forma muito elogiosa ao ex-ministro da Justiça e ex-juiz federal Sérgio Moro. O senhor acha que acertou ao trocar a toga pela vida política?
Marco Aurélio Mello - Eu disse a ele em meu gabinete: "Como você faz isso? Vira as costas a uma cadeira efetiva sem direito a aposentadoria? Você que tinha uma caneta na mão...". E ele me respondeu à época: "Minha caneta ainda tem muita tinta". Vamos ver se realmente tem tinta. As últimas ocorrências mostram que não têm tanta tinta assim.
BBC News Brasil - As mensagens trocadas entre ele e os procuradores da antiga operação Lava-Jato mancharam a reputação do ex-ministro?
Marco Aurélio Mello - Pra mim, não. Porque pra mim é comum o diálogo entre o juiz e o integrante do Ministério Público. Não se pode presumir o excepcional, o extraordinário ou extravagante, mas sim a normalidade. O fato de ter mantido diálogos com os integrantes do Ministério Público não é um fato estranho à ordem natural do Judiciário. Para mim, não mancha em nada. Eu continuo dizendo, perplexo: como é que um herói nacional - e ele foi tido como herói nacional, colocou poderosos na cadeia - da noite pro dia se torna execrado?
BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro voltou a fazer declarações colocando em xeque a segurança e a confiabilidade do sistema de votação aqui no Brasil. Ele disse: "Não serão dois ou três que decidirão como serão contados esses votos". O senhor teme alguma tentativa de golpe ou de ruptura caso Bolsonaro não vença as eleições deste ano?
Marco Aurélio Mello - Não acredito em golpe. Agora, eu devo lembrar a todos que o exemplo vem de cima e este (exemplo) não é bom em termos de cidadania porque nós queríamos ver (em) uma Presidência da República um verdadeiro farol.
BBC News Brasil - Esse tipo de discurso não pode ter o efeito de incitar a população a não aceitar o resultado das eleições, por exemplo?
Marco Aurélio Mello - Pode. Por isso que eu disse que não é bom. Por isso é que o desejável é uma postura exemplar, uma postura que passe à sociedade segurança jurídica. Eu digo aos leitores em geral que eles podem confiar no sistema. Agora surge um paradoxo. Qual foi o sistema que viabilizou a eleição do atual Presidente da República?
BBC News Brasil - Na última semana, um ministro do Tribunal Superior Eleitoral determinou que artistas não poderiam se manifestar politicamente durante um festival de música em São Paulo. Como é que o senhor viu essa decisão e o que ela diz sobre o estado da democracia no Brasil?
Marco Aurélio Mello - Lendo o jornal, eu disse que eu só não caí para trás porque estava sentado numa cadeira. O que nos vem da Constituição Federal? Nos vem o direito maior da liberdade de expressão, de comunicação... nos veio no mesmo artigo que a censura sob qualquer tipo ela está vedada. Agora, simplesmente proibir como se o ato judicial fosse uma mordaça para que o artista não dissesse o que ele pensa sobre esta figura política ou aquela é um passo demasiadamente largo que eu não concebo como ex-julgador.
BBC News Brasil - Em outubro de 2020, o senhor promoveu uma polêmica quando concedeu um habeas corpus para André Oliveira Macedo, conhecido como André do Rap. Ele é apontado como um dos principais líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Ele nunca mais foi encontrado. O senhor se arrepende da decisão? O senhor acha que poderia ter decidido diferente?
Marco Aurélio Mello - De forma alguma. Eu volto à tecla inicial: o processo não tem capa. Defrontei-me com a situação jurídica de alguém que estava preso por período superior ao previsto na legislação [...] No habeas corpus, você precisa examinar é se há ou não é legalidade e não vendo a capa do processo [...] vendo apenas a situação concreta, concedi a liberdade.
BBC News Brasil - Mas não há aí uma contradição? No caso de André do Rap, o senhor fala que processo não tem capa, que a situação estava errada e o senhor o soltou. Mas no caso do deputado Daniel Silveira o senhor defende que haja uma concertação, um diálogo.Não há contradição nisso?
Marco Aurélio Mello - Há um diálogo institucional. Ele sempre deve ser buscado e aí conversar-se com o presidente Lira e o próprio ministro Alexandre Morais aquilatar a necessidade ou não desse ato constritivo que é a utilização humilhante tornozeleiras por um deputado federal, que é um representante do povo brasileiro. É preciso que se pense no contexto. Não é o caso do habeas corpus julgado por mim. A situação é muito diversa e o ato do ministro Alexandre teria sido praticado num inquérito que foi instaurado de ofício pelo órgão julgador e é o inquérito que eu rotulei de inquérito do fim de mundo e gera apenas insegurança.
BBC News Brasil - O STF corre o risco de sair desmoralizado desse episódio envolvendo o deputado Daniel Silveira?
Marco Aurélio Mello - Não é bom em termos de crescimento da instituição. O que se precisará ver será, em primeiro lugar, submetido ao colegiado. [...] O ideal seria a submissão ao colegiado. E segundo, se realmente for reafirmado (pelo Plenário), se haverá este ato ou não. E em terceiro lugar, se esse ato deve ou não ser submetido à Câmara dos Deputados como acontece em caso de prisão. Pra mim, precisaria ser submetido.
BBC News Brasil - O senhor já se pronunciou sobre o ministro Alexandre de Moraes como xerife. O senhor já classificou a atuação dele como desassombrada. E ele vai ser o presidente do pleito eleitoral. O senhor se preocupa com a condução que Alexandre de Moraes vai fazer na Justiça Eleitoral durante essas eleições?
Marco Aurélio Mello - O papel do Presidente é importantíssimo [...] Receio que possamos ter tempestades a partir da busca, inclusive, de registro (de candidatura) deste ou daquele candidato. Mas vamos aguardar e ver as consequências posteriores. Não é o desejável. A atuação, vou repetir, do juiz trepidante deve ser afastada.
BBC News Brasil - O senhor prevê tempestades por conta da atuação de Alexandre de Moraes?
Marco Aurélio Mello - Sim, porque sob a minha ótica a prática judicante (atuação judicial) dele vem sinalizando que ele vai ser muito incisivo como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Que os demais integrantes compreendam que nem tudo o que ele pensa que é bom para o país é aconselhável no contexto existente à época [...] Por exemplo... se por isso ou por aquilo (houver) o indeferimento do registro do atual Presidente da República numa tentativa de reeleição... aí eu não sei o que poderíamos ter.
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