"Governo Bolsonaro não tem coerência", afirma FHC
Em entrevista à DW, ex-presidente afirma que governo "é composto por peças que não se conversam muito bem", critica influência dos filhos e elogia militares por prudência e contenção.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso terminava uma reunião quando adentrou uma ampla sala de sua fundação, na região central de São Paulo, para receber a DW nesta terça-feira (26/02). Indicou as poltronas, sentou e, por uma hora, avaliou o governo Bolsonaro, descrito por ele como desordenado e com peças que não se encaixam, a crise na Venezuela e a democracia brasileira.
Ao longo do diálogo, o ex-presidente da República criticou a influência de Flávio, Eduardo e Carlos, filhos do presidente Jair Bolsonaro. "Não me lembro de nenhum governo em que a família tivesse um peso tão grande como no atual. Talvez na República Velha… Isso aqui não é uma monarquia, certo?", comentou, em tom de brincadeira.
Para Fernando Henrique, o governo é composto por alas distintas e que não se conversam, algumas delas com posições atrasadas e retrógradas. "Ganhou a direita, sem dúvida, mas é uma direita que tem ideia concreta do que vai fazer? Tenho minhas dúvidas. Que há tendências atrasadas e retrógradas, está claro. Contra o globalismo, contra identidade de gênero… isso é retrógrado e não move o povo", analisou.
Fernando Henrique afirmou que a queda do ex-ministro Gustavo Bebbiano, "em uma crise interna com os filhos", é algo inaceitável para um governo.
Sobre a Venezuela, o ex-presidente avaliou que a posição correta é a dos militares brasileiros: "Ser contra o regime, mas deixar que eles resolvam."
DW: No Twitter, o senhor caracterizou os primeiros dias do governo Bolsonaro como desordenado. Qual a sua avaliação até aqui?
Fernando Henrique Cardoso: O governo continua não só desordenado, mas também é composto por peças que não se conversam bem. Há um setor econômico que parece ter rumo, assim como o ministro da Justiça. Os outros estão tateando: um diz uma coisa, outro diz outra. Curiosamente, os ministros militares têm se manifestado com mais prudência e força de contenção do que alguns mais exacerbados. O ministro da Educação voltou atrás naquela carta que ele havia mandado para as escolas. A gente vê que vai e não vai, e isso se reflete no Congresso. Assisti à eleição do Senado, e foi caótica. Na Câmara, nem tanto, mas por força do Rodrigo Maia (DEM). Todo começo de governo é um pouco caótico, mas esse, que parecia ter rumo definido, não está conseguindo aprumar.
E os filhos de Bolsonaro parecem ter um papel nessa desordem...
Esse é um outro núcleo do governo. Tem os militares, os atrasados ideológicos e os filhos, os "garotos", como ele diz. Nunca vi nada igual. Não me lembro de nenhum governo em que a família tivesse um peso tão grande como no atual. Talvez na República Velha… Isso aqui não é uma monarquia, certo?
Família é sempre um problema. Para o presidente é melhor que a família não apareça. Não é fácil pertencer à família de quem manda. Nós não temos a tradição de ter essa confusão como está havendo agora. Além de serem filhos do presidente, há um senador, um deputado e um vereador. Têm poder e expressam poder! Presidente precisa ter uma certa distância de família e amigos. O presidente simboliza a nação, não pode ser partidário. É uma contradição. Ele precisa arbitrar conflitos. Atua e é símbolo. Precisa entender como transcender o interesse específico, e a família é um interesse muito específico.
Há uma dúvida agora: quem manda? Quem fala? Qual a influência deles? O governo está engatinhando, mas acontecem situações curiosas. O ministro das Relações Exteriores diz coisas inacreditáveis. Mas quem falou lá no Grupo de Lima? O Mourão. Nunca houve vice-presidente comandando delegação no Brasil. Ele, aliás, falou moderadamente, dizendo que não vai se envolver em conflito.
Aproveitando, qual a sua avaliação sobre a Venezuela e a participação do Brasil no conflito?
Convivi muito com Hugo Chávez. Tinha uma personalidade forte, com sensibilidade política. Era um showman, que queria chamar a atenção sempre pra si. O Maduro, eu não conheço. É bruto, não tem o mesmo jogo de cintura. A elite venezuelana sempre foi muito ligada aos Estados Unidos, e o país ficou entregue ao chavismo. Mas eu não sei como o povo está. A mídia é contra o Maduro, e eu também sou. Mas como está lá? Isso é outra coisa.
Os militares brasileiros não são favoráveis a uma intervenção militar porque viram o que aconteceu na Líbia, no Iraque. Destrói tudo, e depois? Tenho a sensação de que esse Juan Guaidó, que não conheço, fez uma jogada de alto risco. Subiu a pressão externa para ter consequência interna, e isso não ocorreu. O poder não se moveu e segue com os militares. A posição correta, para mim, é a dos militares brasileiros, não dos filhos do Bolsonaro. Ser contra o regime, mas deixar que eles resolvam.
O cientista político Sérgio Fausto, em artigo recente na revista Piauí, questiona qual futuro o Brasil terá com Bolsonaro: se prevalecerão as forças do liberalismo econômico e da racionalidade burocrático-militar ou o conservadorismo militante e insensato. O que o senhor acha?
Essa é a dúvida que se tem. O liberalismo exaltado também não funciona. Os militares têm uma vantagem: eles conhecem o Brasil. Há uma espécie de tecnocracia, que por consequência é conservadora, mas não é reacionária, retrógrada. E tem o setor que possui ideias fantasiosas, como se nós estivéssemos aqui vendo "perigos do globalismo". Ora, o que é isso!
E essa interlocução com os militares? O senhor afirmou no ano passado que governos, quando não são fortes, apelam para os militares.
Lembro do governo Allende. Eu estava no Chile nessa época, e ele nomeava militar para tudo porque estava sem força política. Aqui, não sei se é falta de força política organizada, mas também porque são os que ele conhece. O Bolsonaro foi parlamentar muitos anos, mas parece que não criou relações no meio político. Os ministros militares estão sendo nomeados não por serem militares, mas porque são relativamente sensatos. O problema é que as Forças Armadas, que não tinham e não têm propósito de voltar ao poder, vão acabar comprometidas com o governo, e isso não é bom para elas.
Qual o cenário para uma reorganização política no Brasil e de qual modelo estamos falando, se avaliarmos o que foi feito desde a redemocratização?
Os partidos, no Brasil, nunca foram muito fortes. Agora estão todos fragmentados. Mas o Congresso é forte. Quando o Executivo não leva em consideração o Congresso, o risco é grande. Levar em consideração o Congresso dá trabalho porque não é um partido, mas vários. Vou utilizar uma expressão de que não gosto, mas nós nunca tivemos uma "engenharia política" nesse sistema criado na Constituição de 1988. Com medo do autoritarismo, demos total liberdade para a criação de partidos políticos, e o Brasil sempre teve uma tradição clientelista. Os partidos passaram a forçar o poder para obter vantagens. Depois de certa altura, espraiou-se a ideia de que era bom fazer partido para aumentar a capacidade de barganha. Lula e eu sabíamos manejar o parlamento, Dilma, não. Michel Temer fez mais do que eu achava possível para a ocasião, mas o sistema político seguiu fragmentado. Agora, espatifou.
O Bolsonaro vem de um partido que não existe, criado de última hora, que não está minimamente organizado. É uma transição que não acaba, e, do jeito que as coisas caminham, acho que vamos ter mais dois ou três anos de transição, sem saber onde vai terminar, até que surjam novas lideranças e se reagrupem as forças políticas. O que foi modernizado no passado perde validade porque a internet dominou tudo. A internet faz com que as pessoas saltem os partidos, as estruturas e se movimentem por conta. Não é só aqui, mas o mundo todo discute como compatibilizar a democracia representativa e a imensa mobilidade de informação à disposição das pessoas. É o Brexit na Inglaterra, o Trump nos EUA, o Bolsonaro aqui. Sei lá o que vai acontecer na Alemanha. É um mundo de interrogação, e o Brasil está inserido nisso.
O senhor esteve na Europa recentemente. O que ouviu sobre Bolsonaro?
Eles percebem a eleição no Brasil da seguinte maneira: houve um golpe para derrubar a Dilma, e o Bolsonaro é a consecução disso, com um governo de direita e fascista. De direita ele é assumidamente. Fascista, ele não é porque não tem uma ideologia consequente, mobilização popular, partido. Lá eles leem o Brasil com a tradição europeia, mas nós estamos entre o americano e a confusão caudilhesca.
Ganhou a direita, sem dúvida, mas é uma direita que tem ideia concreta do que vai fazer? Tenho minhas dúvidas. Que há tendências atrasadas e retrógradas, está claro. Contra o globalismo, contra identidade de gênero… isso é retrógrado e não move o povo. O povo votou com medo da violência, medo do PT, da crise econômica e contra a corrupção. Votaram em alguém para salvar o país. Agora, o cara chegou lá e não sabe o que fazer.
A reorganização passa pelos partidos políticos? São mais de 30 no Congresso.
Quando se tem 30 não se tem nenhum. O PMDB é o partido do Estado. O PT do sonho de uma revolução socialista, com um olhar para o povo. O PSDB mais republicano do que propriamente popular. Eram os três que ainda tinham alguma semente das regras universais: educação, saúde, Estado de Direito… Pelo que eu vejo, atualmente, não há nenhum partido organizado assim. Vai se organizar? Pode até ser, mas precisará ser para os novos tempos.
A globalização, que é consequência de uma nova forma de produção, aumenta muito a produtividade, concentra renda e não cria emprego. Ainda não chegou dramaticamente aqui, mas haverá um acúmulo que advém da velha estrutura econômica, com uma novidade: o que for desenvolvido não será na base do emprego, mas da ciência e tecnologia. A renda não será do trabalho produtivo, mas do tecnológico, científico. Alguém precisará falar pelos deserdados da sorte, sem que para isso haja uma recusa da modernidade.
Mas o Brasil, como o senhor apontou há pouco, tem um governo com pessoas que negam a modernidade. A história pode nos esmagar?
Esmaga, claro. Por isso digo que esse governo tem uma dificuldade enorme, já que não tem coerência nenhuma. Isso no setor econômico também não vai funcionar. Por exemplo: resolve que vai mudar a embaixada para Jerusalém. Os árabes não gostam. Quem nos compra? Os árabes! Mesma coisa com a China, que também é compradora do Brasil. Há uma contradição entre a visão arcaica de certos setores e o interesse econômico que existe. A coisa não engata.
Em entrevista à DW, o professor Steven Levitsky, autor de Como as democracias morrem, afirmou que ainda vê a necessidade de uma frente democrática no Brasil, mesmo depois das eleições. O senhor concorda ou a questão foi superada?
Mas qual vai ser a mensagem? E que mensagem toca as pessoas? Enquanto o governo não existir na prática, não há como criticar diretamente, apenas ideologicamente. As pessoas não querem saber de crítica ideológica. Quando você mexer no interesse delas é que as coisas aparecem. Qual o interesse delas hoje? Ter emprego, saúde, educação, transporte. Se não houver crescimento na economia, as pessoas vão para a rua daqui a pouco. E, no mundo de hoje, isso não se prevê.
Nós estamos em um momento que não são os partidos que conduzem. Frente democrática ao redor do quê? Isso vai depender de pessoas que expressem um sentimento que seja compartilhado, passando pela mídia moderna. Vai acontecer? Em algum momento, talvez. Mas não vejo quem simbolize isso. É preciso ter quem simbolize e expresse ideias. Qual a liderança está emergindo com a capacidade de dizer algo sensível, contemporâneo e que leve as pessoas a apoiarem? Tudo é indecisão.
Duas pautas que mexem na vida da população são a reforma da Previdência e o pacote anticrime do Moro, por exemplo. Até que ponto a fragmentação no Congresso afeta essas medidas? A falta de articulação pode deixar o governo inerte?
Eu acho que pode acontecer. Não torço por isso, mas há a possibilidade. A população nem percebeu o pacote do Moro, porque ele mexeu em processos, e as pessoas querem é matar bandido. O que ele fez está longe desse desejo.
Sobre a reforma da Previdência, começo a ver as pessoas se preocuparem de que maneira elas serão afetadas. Esses dias fui ao costureiro, e ele me disse: "Olha o que estão fazendo com a gente outra vez". Ele percebeu a reforma negativamente. Em linguagem antiga, isso é uma luta de classes. Quem é que vai pagar o custo do ajuste fiscal? O governo está dizendo que tem propostas para diminuir os privilégios, e as pessoas estão dizendo "mas eu vou pagar. Quanto vou pagar?". Por enquanto, não começou o jogo real da reforma. A retórica do governo diz: "Vamos acabar com os privilégios". Mas vão mesmo? Com o buraco do tamanho que está, não há rico que sobreviva. Vão taxar, mas vai ser uma briga. Esse governo vai ter capacidade de levar essa briga adiante?
De que maneira essa capacidade se apresenta?
Força no Congresso. A reforma da Previdência gera desgaste e diminui a popularidade. Você só consegue votar quando é respeitado no Congresso. Qualquer governo precisará enfrentar a questão e vai ter que pular miudinho.
Em um artigo recente publicado no El Pais, o senhor diz que não se pode trocar a pauta social pela pauta econômica. O que isso quer dizer? O que define cada uma das duas coisas?
Quando você olha as propostas econômicas do governo atual, elas são racionais. Agora, é preciso ter noção de que se vai operar em um país onde o desemprego, a pobreza e a desigualdade são muito grandes. Essa racionalidade não vai aterrissar fácil. Mesmo que eu esteja com a racionalidade econômica, não há como implementar isso friamente. É preciso ter algumas concessões de quem pode conceder. O povo tem que sentir que quem pode está pagando também. Não tenho nenhuma influência prática no PSDB, mas, se eu tivesse, não diria para votar contra a reforma. Diria para melhorar certos quesitos.
Quais?
A idade é importante, tem as profissões que são diferentes, é preciso diferenciar um pouco mais. O governo quer diminuir a distribuição de renda na área rural e para os velhos do país. O que existe nesse caso é um pagamento que se tira de alguém para dar a quem não tem. Isso não é Previdência. Nós nunca separamos a Previdência das políticas de transferência de renda, e acho que deveríamos separar. Como financiar a transferência? Não deve ser às custas de quem paga a Previdência, para não onerá-la.
Voltando a Bolsonaro, me parece que há uma dificuldade de articulação com o Congresso, mesmo ele tendo sido parlamentar por 30 anos. O que acontece?
Nunca vi o Bolsonaro, e eu fui presidente, ministro. Isso já mostra que ele não tinha representação efetiva. Não sei se ele tem capacidade para entender o jogo dos partidos. Até aqui, não está demonstrando. Quando o presidente não tem essa capacidade, alguém precisa assumir isso. O Gustavo Bebbiano caiu em uma crise interna com os filhos, algo inaceitável.
Os interesses vão se organizar no Congresso. Os militares têm interesses corporativos. Quem vai negociar? Não está claro. O Bolsonaro não assumiu interlocução com a nação. Por exemplo: vai a Davos, fala por cinco minutos e não aparece mais.
Essa ausência passa pelas questões que envolvem o laranjal do PSL, a ligação do Flávio Bolsonaro com milicianos no Rio de Janeiro?
Claro, sem dúvida. A mídia não vai poupar ninguém. Todos os deslizes serão sublinhados o dia inteiro. Isso é da natureza do jogo democrático. Neste momento, a opinião pública votou no Bolsonaro e está com ele. Mas vai se manter? Como se mantém? É preciso dar tempo ao tempo porque o que parecia que ia resolver, que era a eleição, não resolveu.
Como o senhor tem visto o PSDB atualmente? O partido tem de seguir um caminho como o João Dória fez, mais à direita, um recuo ao centro? Qual o futuro?
Acho que o PSDB, para apoiar o Bolsonaro, precisaria avaliar. Apoiar em quê? Qual o programa? Não é o meu ponto de vista. Vamos ver como o partido vai reagir ou não ao momento. O João Dória tem expressado uma posição muito pró-Bolsonaro. A meu ver, precipitada para ele, como futuro candidato à Presidência. É um erro se jogar nos braços do Bolsonaro sem nada. O PSDB histórico tem uma posição diferente da dele.
Vou fazer 88 anos e não tenho ilusões, energia ou disposição para me opor dentro do PSDB. Faço uma crítica engajada, mais do que uma pessoa engajada. Lamento, porque o partido teve condições de fazer algo mais consequente.
Com ou sem justiça, estão todos indo para a cadeia. No caso do PSDB, o maior injustiçado foi o Eduardo Azeredo, que deixou que alguém fizesse algo com dinheiro de campanha. Agora está recorrendo… A Justiça tomou medidas em massa, e o povo gostou. Isso vai deixar margem para que esses mesmos partidos ressurjam? Eu tenho dúvidas.
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