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De prisão a queda de governo: como países reagiram a casos como o da boate Kiss?

Entrada da Boate Kiss, palco da tragédia que matou 242 pessoas e deixou 636 feridas em Santa Maria (RS) - Ricardo Moraes/Reuters
Entrada da Boate Kiss, palco da tragédia que matou 242 pessoas e deixou 636 feridas em Santa Maria (RS) Imagem: Ricardo Moraes/Reuters

Valentina Gindri

14/06/2023 09h01Atualizada em 14/06/2023 09h01

Jovens saem para se divertir e encontrar os amigos no que parece ser uma noite como qualquer outra. Mas em meio ao ambiente abarrotado e de música alta, uma faísca desponta: o fogo se alastra rapidamente e o pânico e a fumaça tóxica tomam conta do local. Esse pesadelo de morte e dor ocorreu com características similares em diversas partes do mundo.

Nesta terça-feira (13/06), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou a análise de um recurso que pretende restabelecer a condenação dos acusados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que deixou 242 mortos. Porém, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Antonio Saldanha. Não há prazo para retomada do processo.

Os envolvidos em tragédias recentes semelhantes foram responsabilizados de distintas formas.

Alguns casos contaram com punições mais abrangentes, outros tiverem julgamentos menos rigorosos, e há ainda os que responsabilizaram com maior severidade o setor público e suscitaram grandes mudanças políticas. De processos longos e tortuosos na Justiça a ações mais imediatas, a DW reuniu alguns casos com repercussões emblemáticas.

Argentina - Boate de Cromañón

Em 2004, 194 jovens morreram em um incêndio na boate República de Cromañón, em Buenos Aires. O fogo começou após um integrante da plateia acender um explosivo durante o concerto de rock da banda Callejeros. O espaço com capacidade para cerca de mil pessoas tinha mais de três mil na noite da tragédia, as saídas de emergência estavam obstruídas e a licença dos bombeiros, vencida.

O caso estremeceu o país e levou à destituição do então prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, considerado politicamente responsável. No total, 28 pessoas foram responsabilizadas criminalmente e 14 foram presas por incêndio culposo.

A maior pena foi de 10 anos para o dono e gerente da boate, Omar Chabán, que faleceu no cárcere em 2014. A condenação final também resultou em oito anos de prisão para o então subcomissário de segurança na cidade, cinco anos para o empresário da banda, seis anos para o sócio de Chabán, e quatro anos para o dono do complexo onde funcionava a boate.

Os seis integrantes da banda Callejeros, que inicialmente haviam sido absolvidos, posteriormente foram considerados organizadores do evento e receberam penas que variaram de cinco a sete anos de prisão. Três funcionários públicos ligados a fiscalização e controle receberam sentenças de dois a quatro anos de prisão.

O incêndio de Cromañón também desencadeou uma investigação paralela que resultou na condenação e prisão de agentes públicos e empresários envolvidos em esquemas de suborno e alvarás de funcionamento irregulares em outros estabelecimentos noturnos da cidade.

Estados Unidos - The Station

Em 2003, um incêndio atingiu a boate The Station, no estado americano de Rhode Island, matando cem pessoas e deixando outras centenas gravemente feridas. O fogo começou com a performance pirotécnica da banda de rock The Great White e as chamas espalharam-se rapidamente devido à espuma acústica inflamável que revestia o ambiente.

O empresário da turnê da banda, Daniel Biechele, foi condenado a quatro anos de prisão por homicídio culposo, mas cumpriu apenas dois, sendo liberado por mostrar remorso genuíno. Um dos proprietários do clube cumpriu dois anos de prisão e o outro prestou serviço comunitário. A boate tinha as autorizações de funcionamento em dia, o que levantou questionamentos por parte daqueles que buscavam justiça, já que a espuma imprópria foi negligenciada pela fiscalização e nenhuma autoridade pública foi punida.

Uma série de ações judiciais arrecadou cerca de 180 milhões de dólares em compensação às famílias das vítimas e aos sobreviventes com sequelas da tragédia. Os réus incluíram a banda Great White, fabricantes de espuma, o ex-inspetor de incêndio de West Warwick, a cidade de West Warwick, o estado, a Clear Channel Broadcasting, entre outros. Até mesmo a cervejaria Anheuser Busch entrou em acordo para o pagamento de 21 milhões de dólares; apesar de não reconhecer irregularidades, a empresa foi citada nas acusações por promover o show no The Station.

China - Complexo Dongdu, boate de Natal

Em 2000, 309 pessoas morreram em um incêndio em uma discoteca na cidade de Luoyang. Autoridades condenaram 23 pessoas a penas de prisão de até 13 anos. A sentença mais longa foi para Wang Chengtai, um soldador cuja tocha iniciou o incêndio no porão do prédio comercial de Dongdu, onde o clube ficava localizado.

Dois gerentes do edifício foram condenados a nove anos de prisão. Relatórios apontaram que o prédio havia sido reprovado em 18 verificações de segurança em dois anos. Nove oficiais de incêndio e segurança de Luoyang receberam penas de prisão de sete anos por negligência do dever e abuso de poder.

Peru - Utopía

Em 2002, 29 jovens perderam a vida em um incêndio na discoteca Utopía, em Lima. A festa era também o lançamento de um perfume e contou com um extravagante show circense com centenas de bailarinos, animais exóticos e malabarismo com - é claro - fogo. O local não possuía medidas básicas contra incêndios, como extintores, e nem licença para funcionar.

O processo judicial foi encerrado somente em 2014 e atribuiu a maior pena a Percy North, administrador da boate, que cumpriu sete anos de prisão. O barman que iniciou o fogo cumpriu 15 meses de prisão. Os donos do Utopía, Édgar Paz Ravines e Alan Azizollahoff Gate foram condenados a quatro anos de prisão cada, mas fugiram do país em 2004, logo antes do primeiro júri. Os dois figuraram por anos nas listas de buscas da Interpol e o Ministério do Interior peruano incluiu seus rostos em um programa de recompensas por informação sobre seus paradeiros.

Édgar Paz Ravines foi localizado em 2018 no México e extraditado ao Peru em 2020 para cumprir a pena. Mais tarde, Alan Michael Azizollahoff Gate foi encontrado na África do Sul, e em 2020 o governo peruano efetuou seu pedido de extradição. Não foram encontradas notícias confirmando a chegada do último ao Peru.

Romênia - The Colectiv

Em 2015, na capital Bucareste, 64 pessoas morreram em decorrência de um incêndio iniciado durante o concerto da banda de rock Goodbye to Gravity na casa noturna The Colectiv.

Oito pessoas foram presas: o ex-prefeito do distrito, Cristian Popescu Piedone, condenado a quatro anos de prisão por permitir que o Colectiv operasse apesar de não atender aos padrões de segurança; três proprietários da boate; um pirotécnico; o diretor de uma empresa de fogos de artifício e dois bombeiros que haviam emitido licenças para o local. Alin Gheorghe Anastasescu, um dos proprietários, recebeu a sentença de prisão mais longa, de 11 anos. Investigações apontaram que dezenas de outros bares e boates na Romênia não cumpriam medidas de segurança contra incêndios.

O entendimento de que a corrupção e a negligência foram a gênese da tragédia despertou a raiva da população e deu início a uma onda de protestos. Cerca de 20 mil pessoas tomaram as ruas do país pedindo a queda do governo, e o então primeiro-ministro Victor Ponta resignou do cargo.

Rússia - Lame Horse

Em 2009, um incêndio na boate Lame Horse vitimou 156 pessoas na cidade de Perm. As chamas de uma performance com pirotecnia espalharam-se pelo plástico inflamável do teto e as decorações de madeira da festa. O local não possuía saídas de emergência e funcionava com diversas irregularidades.

Dias após a tragédia, quatro pessoas envolvidas no caso foram detidas, e o primeiro júri aconteceu já em 2010. O júri final se deu em 2013, resultando na prisão de oito pessoas com as respectivas sentenças: dez anos de prisão ao dono do clube, Anatoly Zak, quatro anos à gerente-executiva do clube, seis anos a outro sócio-proprietário, cinco ao diretor artístico e ao pai e filho organizadores do show com fogos de artifício. No setor público, dois inspetores de segurança de incêndio foram sentenciados a quatro e cinco anos de prisão. O inspetor-chefe de incêndio da região também foi acusado, mas teve sua pena reduzida ao pagamento de uma multa.